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Tive uma grande esperança no 25 de Abril. Pensei: “Vou ter melhores condições de vida, vou deixar de ser espezinhada no trabalho, os meus filhos vão ter um futuro diferente, boas escolas”. Por todos os trabalhos onde tinha andado, desde os dez anos, fui maltratada, pagavam mal, exigiam mais do que as nossas possibilidades. Na Messa, os salários foram sempre superiores aos das outras empresas metalomecânicas mas a repressão era muito grande. Éramos tratadas como escravas, não se podia ir à casa de banho — havia um painel no fundo de uma secção de 300 mulheres e uma chapa para se ir à casa de banho... Havia os polícias de secção, chefes de departamento e de grupo, de mãos atrás das costas, a passearem-se pela secção, e à mais pequenina coisa era-se logo sancionado. Às vezes chegava a casa tonta de tanto trabalhar, porque na altura tinha uma produção de 90 máquinas diárias e passava o dia quase sem poder levantar os olhos do trabalho... Nove horas, com um intervalo de almoço de uma hora, dez minutos para o pequeno-almoço e outros dez para o lanche. Nem sequer podíamos ir lavar as mãos.
Quando chegou o 25 de Abril, foram abolidas as chapas, foram saneados os directores, os chefes passaram a ter medo e deixaram de policiar. A questão dos salários melhorou bastante, mas «o salário igual para trabalho igual» nunca se pôs em prática, era treta, só se falava cá fora. É preciso que se diga que na Messa não houve afirmação nenhuma da mulher. Produziam muito mais do que os homens mas continuaram a ganhar menos e apesar de serem 85% do pessoal só houve uma mulher na comissão de trabalhadores.
A nossa greve foi uma das primeiras após o 25 de Abril, durou uma semana até sanearmos os indivíduos que lá estavam. Também, saíram dali mas deram-lhes outros bons tachos.
Quem organizou a luta foi um grupo de extrema-esquerda, que já lá estava organizado antes do 25 de Abril. Cheguei a passar panfletos para dentro da fábrica na barriga, porque como grávida não era revistada; uma vez tive a casa invadida pela PIDE de armas em punho. Entretanto, começou a haver grande rivalidade política lá dentro e desinteressei-me daquilo. Nunca embandeirei em arco, nunca andei em grandes manifestações de punho no ar, os partidos não me diziam grande coisa. Eu era mais pelo trabalho prático. Era eu que escrevia os jornais de parede.
Sobretudo fui sempre activa no grupo de teatro. Com «As Espingardas da Mãe Carrar», de Brecht, corremos o país durante um ano, representávamos nos quartéis, nas colectividades, em aldeias... As populações mais fechadas não as encontrei no Norte, mas sim no Alentejo. Apesar de o nosso grupo ser composto por pessoas de várias ideologias, a extrema-esquerda estava em maioria e por isso éramos muito combatidos pelo PCP. Desmobilizavam as pessoas, criavam imensas dificuldades. Também nos aconteceu representarmos sob ameaça de matracas. O espectáculo era seguido de debate e aí sofremos várias ameaças, inclusive de jovens que se identificavam como do CDS, mandados pelos próprios padres. Mas como a população estava em superioridade, acabávamos por vencer a situação. Penso que o trabalho de dinamização cultural foi óptimo e que devia ter continuado. Fizemos 155 espectáculos, depois parámos. Eu já não aguentava, fiz uma dilatação nas cordas vocais, porque eram 45 minutos em palco a falar e a gritar.
E fiz isto sem largar o trabalho. A firma tinha sido aconselhada a conceder-me tolerância de ponto, mas eu nunca me quis valer disso; às oito eu estava a picar o cartão. Inclusive durante um período de oito dias de ocupação da fábrica em que nem eu nem as outras pessoas que estavam nesse trabalho dormimos. Para que os patrões nunca tivessem pé para dizer «vens falar da política, mas no fim não queres é trabalhar». Nessa altura tinha três filhos pequenos — o mais velho com 11, 12 anos de idade, e o mais novo com meses —, que levava comigo. Só quando os espectáculos eram próximo pedia a alguma vizinha que ficasse com eles.
Quando começou a haver salários em atraso, chegou-se a um consenso e toda a gente veio em manifestação a pé para Lisboa, porque estavam a tocar-nos no bolso. A fábrica nunca parou, mas trabalhava a meio gás. Foram-se acumulando milhares de máquinas, que não saíam devido ao boicote. A maior fatia ia para os Estados Unidos — mandavam o material para trás. “Vêm de Portugal? Então não estão em boas condições.”
Tentou-se transformar a empresa, até fizemos termoventiladores para o mercado interno. E houve negociações com a Suécia para a máquina eléctrica... Mas o final seria infeliz, por culpa da administração, uns indivíduos vindos de Moçambique; enquanto estiveram na administração, compraram moradias e passaram a viver muitíssimo bem. Depois puseram lá o Rocha de Matos, um homem que empresa onde entre é para fechar. No meio disto, a comissão de trabalhadores andava dum lado para o outro à espera de soluções oficiais. Acabou em derrota.
★★★
“Disciplina:
1º Denunciar e desde já tomar posição contra todas as medidas de repressão, policiamento e vexames que os operários e operárias da Messa têm sofrido por parte de certos chefes e hierarquia superior (...) como proibição de ir à casa de banho ou sair do local de trabalho, proibição de ler propaganda do sindicato e colocação de chapas nas bancadas dizendo “Improdutivo” ou “Posto sob observação” (...).
2º Aproveitamento por parte de certos chefes do seu lugar privilegiado para se dirigirem especialmente às operárias em termos vexatórios e muito pouco adequados a quem tem de ganhar o pão durante um dia de trabalho intenso.
Parágrafo único — Os operários e operárias da Messa declaram que estas coisas têm de acabar e que passarão imediatamente à acção, quer arrancando as chapas, quer não tolerando as prepotências dos chefes, quer indo à casa de banho ou a outro lugar qualquer quando disso tiverem necessidade. (...)
Subsídios:
1º Os operários e operárias da Messa não consideram justo que:
(Extractos da “Proposta dos operários da Messa”, 9 de Abril de 1974)
Inclusão | 23/11/2018 |