MIA> Biblioteca> Temática > Novidades
No 25 de Abril tinha 17 anos, trabalhava num escritório e estudava à noite. Já tinha uma certa consciência anticolonial e simpatias de extrema-esquerda. Nesse dia não fui trabalhar. Passei-o todo na rua, principalmente na Praça da Liberdade, em perseguição dos pides e dos bufos, e nos confrontos com os polícias barricados na Câmara do Porto, de onde disparavam sobre quem se encontrava na praça. Mais tarde, aí pelas seis horas já andávamos empoleirados nos carros do MFA. Nessa noite houve grande confusão junto à esquadra da Rua do Paraíso, com vários feridos. Um grupo considerável de manifestantes exigia a libertação imediata dos presos políticos. Mais tarde foi-se para a sede da PIDE, porque se supunha que ainda lá se encontrassem alguns pides.
O 25 de Abril mudou a minha vida. Rapidamente decido integrar-me num partido de extrema-esquerda, o PCP(m-l), mais tarde PUP. Decido igualmente abandonar os estudos e a família. Principalmente porque na altura havia a ideia, comum a todos os grupos maoístas, de que era necessário manter a clandestinidade, pois havia o perigo de a situação regredir. Durante algum tempo andei a colar cartazes e a fazer pichagens às escondidas. Passado esse receio inicial, passei a andar permanentemente em comícios, a fazer agitação e propaganda e fui despedido.
Um dos acontecimentos mais marcantes, dos muitos em que estive envolvido, foi o do CICAP/RASP. A decisão dos comandos militares de encerrarem o CICAP devido às reivindicações dos soldados, fortemente influenciados pelos SUV, provocou uma enorme crise. Quando os soldados do CICAP chegaram do fim-de-semana encontraram o quartel encerrado. Convocam uma manifestção a que aderem milhares de soldados, que desfilam fardados, gritam palavras de ordem contra os altos comandos do MFA e recebem forte apoio popular. Por solidariedade, o RASP recebe-os nas suas instalações, provocando uma tremenda crise na Região Militar Norte.
Os militares não sabiam como lidar com uma situação destas. Nunca depois do 25 de Abril se vira tantos soldados na rua, em manifestação, com grande apoio popular e ainda por cima contra a cúpula do MFA. Na prática, a unidade conseguida entre os militares e o povo passava por cima das divisões partidárias. Havia gente do PS, PCP, extrema-esquerda, etc.
As pessoas estiveram concentradas cerca de uma semana junto ao quartel. Em face desta situação anormal, a esquerda e a direita militar chegaram a acordo para acabar com esta luta dos soldados. O quartel general mandou tropas da PM para cercar o RASP e normalizar a situação. Houve troca de tiros, com os civis deitados no chão sob o fogo cruzado. Os prédios defronte do quartel ficaram crivados e os seus moradores tiveram de fugir. O RASP fez sair um tanque, obrigando a PM a retirar. Mas uma manifestação do PPD, de apoio ao quartel general, tinha vindo atrás da PM e houve uma enorme batalha campal, mesmo ali, com feridos e tiros à mistura.
Mais tarde, uma manifestação do MRPP, aproveitando um comício do PS para arregimentar pessoas, tentou assaltar a sede da UDP na Praça D. João V, com bombas incendiárias e tiros.
Nos militantes maoístas daquela época havia uma dedicação e um empenho de corpo e alma, que derivava da convicção de estarmos perante uma oportunidade excepcional para se transformarem as mentalidades, transformação essa que acarretaria profundas alterações revolucionárias na sociedade portuguesa. Era sobretudo gente muito nova, vinda das escolas e do movimento estudantil, a que começaram a associar-se outros sectores populares, principalmente trabalhadores. Todos eles tinham perdido ou cortado com as suas ligações habituais, dedicando-se intensamente à actividade política. Era uma militância vista com espírito de missão, movida por uma crença ideológica muito forte. Mesmo as pessoas sem partido andavam igualmente numa agitação frenética, porque tinham uma grande expectativa em relação às mudanças e transformações das suas vidas. Acreditavam que o 25 de Abril lhes traria uma vida melhor. Só não sabiam quem iria comandar essas transformações; se os chefes militares, os líderes políticos, as personalidades, ou outros. Não tinham consciência que o futuro estava nas suas mãos, que as transformações teriam de sair delas.
★★★
“Muitos soldados, para não deixarem a família na miséria, abandonam o quartel e regressam a casa, para trabalhar na fábrica, no campo, na construção civil ou na arte. Pois aí somos dados como desertores e metem-nos na cadeia. O que é importante para os capitalistas é que a gente ‘coma e cale’. Já assim pensava da gente o Salazar, Marcelo. Spínola e agora os “democratas” do 25 de Abril.”
(Soldados em luta, jornal dos soldados em luta no RASP, nº 1, 15/10/75)
Inclusão | 23/11/2018 |