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O desenvolvimento do pensamento e a ênfase recebem nova luz e se deslocam se o caminho da filosofia de Kant a Hegel for submetido a uma consideração sob o ponto de vista do trabalho espiritual e corporal, sua relação e sua separação radical no capitalismo. Com isso, a apreciação da filosofia sai dos enredamentos conceituais internos e do reino dos especialistas do pensamento filosófico, para o campo visual histórico e deveria, entre outras coisas, tornar-se compreensível até aos trabalhadores manuais. As especulações de Kant sobre a "coisa em si", por exemplo, tornam-se pelo menos em parte perfeitamente evidentes. Se considerarmos tão somente a obra sobre a razão teórica, como é o caso da Crítica da razão pura, se a análise se ocupar exclusivamente com as formas conceituais do trabalho intelectual na "matemática pura" e na "ciência pura da natureza", com a medição de seus limites de validade, sobretudo com sua "pura possibilidade" bem como com seu método, então está claro, que algo fica fora, ou seja o trabalho manual. O trabalho manual leva a cabo as coisas, das quais a razão teorética considera somente a "aparência", e tem um caráter de realidade diferente daquele que possa jamais competir ao objeto do conhecimento. No decurso de nossa pesquisa mostrar-se-á que o próprio trabalho (e somente como tal) se subtrai a todos os conceitos de sociedades produtoras de mercadorias, sendo a eles "transcendente", pois esses conceitos derivam em seu conjunto da conexão de apropriação, formada por essas sociedades. Certo, encobre-se tal situação ao pensamento de Kant, cujo esforço fundamental dirigiu-se a provar a autonomia autofundante do trabalho intelectual, precisamente do trabalho científico, bem como de todos os demais interesses da classe burguesa, "formada". Nisso reluz a "coisa em si" em variadas significações, antes de tudo na ética, onde ao indivíduo moral se assegura, que a "coisa em si" leva, em si mesma, sobretudo ao apoio de sua liberdade.
Mas o dualismo, que fica para Kant em todo seu esforço do começo ao fim, é um reflexo da realidade capitalista sem comparação mais fiel à verdade que os esforços de seus seguidores, que se livram do dualismo na medida em que neles tudo é puxado para dentro da "imanência do espírito". Já Fichte chama Kant de "cabeça de três quartos", porque ele não teria extraído, ele mesmo, toda a conseqüência de sua filosofia. No entanto, bem tinha acontecido a Revolução Francesa, na qual a burguesia parecia ter-se apropriado completamente de toda a realidade, sem deixar nenhuma realidade oposta. Pode-se também dizer, que após a Revolução Francesa a sociedade toda se tornara pasto do capital. Mas sob este aspecto, ao tempo de Hegel e para um espírito com sua visão, ainda nada se podia reconhecer. Ele tomou a Revolução no sentido no qual ela tinha sido entendida, leu com seus amigos Hölderlin e Schelling todos os eventos, cada notícia, que o jornal anunciava, como acontecer filosófico, olhou a Napoleão em sua entrada em Iena como ao "Espírito do Mundo", que ele "viu chegar a cavalo". Essa era a "soberania do pensamento", mas também a descolagem do terreno histórico, culminação suprema, que se prevalecia das implicações correspondentes à realização da liberdade e as entendia sistematicamente, independentemente de se as ruas de Paris e seus porões ofereciam abrigo a isso ou não. Para Hegel não bastava tomar a liberdade puramente como a exigência e o ideal, como ele tinha sido para Kant, cuja filosofia Marx denomina "a filosofia da revolução francesa", a filosofia no estágio da revolução. Para Hegel, ela se tornou lei fundamental, pela qual se move a realidade. Pensar e ser estão para ele não mais em relação como opostos, eles tornaram-se uno, e o mesmo valia correspondentemente para todas as antíteses e dicotomias da reflexão filosófica. Essa unidade aquilo que, desde sempre, tinha sido entendido com pensar e ser, ideal e realidade, essência e aparência, forma e matéria, etc.; sua unidade era aquilo que elas significavam, era sua verdade. Assim, da lógica veio a dialética. As determinações realizaram-se, mas em sua realização mudaram as condições de sua realização, de modo que cada determinação, para realizar-se, desenvolver-se, para ser ela mesma, devia tornar-se algo outro de si. A verdade tornou-se processo gerador do tempo, que devia estar certo (o que sempre ocorria) com aquilo que se encontrava no tempo e nele se realizava. O ato de nascimento (a origem burguesa do pensamento) mostra-se claramente no fato que ele era só pensamento, a dialética pura lógica, a realização nada senão filosofia, a concretização não ocorria nenhures senão na "Imanência do Espírito". O Ser, com o qual o pensar era uno, não era o ser espaço-temporal das coisas e das relações da história factual e dos fatos históricos, e sim o Ser, que Hegel puxou ao ponto de fundação da lógica, da cópula do "eu sou eu", portanto não era nada senão o ser do pensar mesmo, o ser, com o qual o pensar se confunde pensando, e, falando materialistamente, o auto-espelhamento da plena hegemonia burguesa de classe. De todas as filosofias, que "só interpretam o mundo de várias maneiras", sem "mudá-lo", a de Hegel é a mais crassa, mesmo porque ela dissipa a forma da mudança do ser, a própria dialética, em nada senão "na idéia". E para valer, para Marx a dialética devia de fato ser "entornada", melhor: ser revirada e revirada. Ela devia sobretudo deixar de ser lógica.(1) Na luta de classes para a mudança da realidade há certamente a necessidade de pensar dialeticamente, e para aprender isso pode-se ir à escola de Hegel, talvez até seguindo a sugestão de Lenin de fundar "uma sociedade para a cura da dialética hegeliana". Mas no marxismo temos a dialética não por causa de Hegel. A dialética marxista vale no sentido do ser sócia, pois o marxismo visa a tornar esse ser uma realidade, na qual o real tenha sentido e o sentido se torne realidade, onde portanto a sociedade humana sai de sua "pré-história", na qual a humanidade é bola de jogo das necessidades naturais. A serviço dessa finalidade, a história humana deve ser entendida em seu conjunto sob um postulado metodológico, pelo qual a possibilidade dessa finalidade, a possibilidade real de sua realização, é concebida já como o propriamente determinante, a lei natural dominando completamente a história humana, portanto como a verdade que está por toda parte já por baixo de seu acontecer. Esse postulado metodológico é o materialismo histórico. Com tal expressão, "materialismo histórico", entende-se que a história humana é parte da história natural, ou seja dominada em última instância por necessidades naturais. Estas necessidades naturais tornam-se humanas, ou seja a natureza experimenta sua continuação na forma de história humana lá onde começa o trabalho. Que os homens não vivem em um país das delícias, ou seja que não vivem de graça, mas nem são nutridos cegamente pela natureza como os animais, e sim vivem na medida de seu trabalho, portanto em força da sua produção, por eles mesmos gerada, empreendida e levada a termo, aqui está a base natural dos homens e o "materialismo" da história humana. "Na produção de sua vida...", assim soam as primeiras palavras, com as quais Marx começa sua exposição dos axiomas do enfoque materialista da história. Poder-se-ia também dizer que a lei fundamental do materialismo histórico é a lei do valor. Mas a lei do valor começa seu caminho só quando o produto do trabalho humano ultrapassa a pura necessidade natural e se torna "valor" inter-humano: e esse é o limiar onde começam a troca de mercadorias e a exploração, portanto onde, dito de modo não marxista, começa o "pecado original" ou, dito marxisticamente, onde se introduzem a "reificação" e a "autoalienação" dos homens, sua perversão ou danação, seu deslumbramento ou cegamento, a causalidade natural historicamente gerada da "economia" e a dominação de uma naturalidade, que é deixado aos homens superar, quando o tempo chegar. A lei do valor torna-se, em outras palavras, lei fundamental do materialismo histórico no decurso das épocas da dominação da sociedade de classe. Como, portanto, pertence a dialética às instâncias marxísticas: materialismo histórico, lei do valor, sociedade de classes, economia, autolibertação dos homens de sua pré-história? De acordo com o enfoque aqui defendido, a dialética está no pensamento marxista tal como a dialética hegeliana na lógica de Hegel. Ela está, porém, também não na história como parte de sua facticidade. Se alguém for positivista, e portanto registra a "verdade" como pedra e pedras, fato e fatos, a ele nunca a dialética daria sequer uma ensinadela. Contudo a dialética encontra-se na história, mas ela se mostra só àquele que considera a história sob o postulado metodológico do materialismo histórico. A ele ela se mostra porque a dialética é aquilo, que dela Hegel desenvolveu, unidade de pensar e de ser, de sentido e de realidade, e porque essa unidade, entendida materialisticamente, desde o começo forma a essência da história humana, mesmo para aquele que não sabe de nada melhor que das aparências e não costuma sequer começar a entender qualquer coisa dessa essência.
Quem foi então que batizou Marx: Hegel ou Kant? A resposta é menos simples que comumente se supõe. Em toda a concepção, regada a dialética, do materialismo histórico, domina uma perigosa tentação de ignorar o problema do conhecimento em vista da natureza. A natureza aparece por meio do trabalho, de sua matéria, forças, instrumentos, máquinas aparecem já como fator dado introduzido na história humana e dominado. Ela não exerce sua causalidade sobre a história como constante, e sim através do grau de desenvolvimento das forças produtivas; por isso, bem ocorrem perdas, mas no essencial as épocas se seguem uma sobre as costas das outras, porquanto as consequências possam atuar sem progresso de acordo com as significações nas relações sociais de produção. A natureza aparece portanto como uma matéria contida na história, sempre digerida através da práxis da produção. O conhecimento e a ciência da natureza exigido com isso é tratado por Marx, correspondentemente, com uma aparente naturalidade, na medida em que há algum aceno especial a ele. Parece portanto não oferecer-se nenhuma oportunidade de fazer disso um problema do conhecimento conforme a maneira kantiana. Contudo tal problema se põe.
Obviamente ele não se coloca no fundamento da filosofia como em Kant, como questão a-histórica "do conhecimento como tal" nem sequer da "possibilidade da experiência". Ele se põe como fenômeno histórico específico pela separação entre trabalho espiritual e manual, que cresce no terreno da divisão de classes na produção mercantil desenvolvida, e de maneira completamente desenvolvida pela primeira vez entre os antigos clássicos e depois por sua vez sobretudo na época moderna européia. Aqui coloca-se um problema teórico do conhecimento pelo fato histórico de que as formas do conhecimento da natureza se separam da produção manual, se autonomizam perante ela e, portanto, fluem abertamente de outras fontes que aquelas das quais flui o trabalho manual. Quais fontes possam ser essas, isso não é por sua vez nada evidente, mesmo que se partilhe a crença da teoria tradicional do conhecimento em uma capacidade humana inata de "entendimento". O fenômeno em si, pelo menos em sua forma moderna européia, é aquele mesmo, para o qual valem as questões de Kant: como é possível a pura matemática? Como é possível a pura ciência da natureza? A teoria, com a qual ele respondeu apoiava-se em análises, desenvolvidas por mais de dez anos, do método galileano e da física newtoniana, complementadas e comprovadas por trabalhos próprios em ciência natural, e em partes essenciais a teoria se constituía de conclusões dos resultados, que ele tinha alcançado. Que a "pura ciência natural" é possível, disso não há dúvida, pois ela é um dado de fato; conseqüentemente deve-se poder indagar como ela é possível. Esta era a forma de argumentação de Kant, e a mesma argumentação se torna necessária para o histórico-materialista, se ele se der bastante conta de quão essencial e inseparavelmente, por exemplo, a separação do trabalho espiritual da ciência natural em relação com o trabalho manual proletário está relacionada com a hegemonia econômica do capital sobre a produção. A hegemonia econômica não poderia ser exercida pelo capital, se a tecnologia fossa coisa dos trabalhadores. Portanto, o problema do conhecimento na formulação kantiana se coloca no terreno do materialismo histórico induzido por Hegel; não, por assim dizer, Kant ou Hegel, e sim Kant na moldura de Hegel. Na verdade não se trata nem de um nem de outro, e sim das formas de aparecimento do trabalho espiritual e de sua separação do trabalho manual, como problema parcial histórico-materialista.
Sublinhe-se que o problema parcial é de uma significação, que para nós no momento atual cresce enormemente. Quem no dia de hoje falar em revolucionar a sociedade, em transformar o capitalismo em socialismo e porventura na possibilidade de uma ordem comunista, sem saber como a ciência e a técnica científica se inserem na sociedade, de onde elas provem, de que natureza e origem é sua forma conceptual, como portanto a sociedade deve dominar o desenvolvimento da ciência em vez de ser por ele dominada e subjugada, ele se expõe à censura da absurdidade. Nas teorias existentes do conhecimento porém as formas dos conceitos do trabalho espiritual científico e filosófico não se concebem de maneira nenhuma como fenômeno histórico. Ao contrário. A forma conceptual do modo de pensar das ciências da natureza assinala-se em geral pela a-temporalidade histórica de seu conteúdo. Nas teorias do conhecimento aceita-se essa a-historicidade como fundamento dado. Uma explicação histórica da origem é declarada como impossível ou sem mais nem sequer se menciona. Certo, nas teorias do conhecimento o pensamento das ciências naturais de uma ou outra época não é avaliado como fenômeno do trabalho espiritual, o qual deve estar em uma relação social determinada de separação do trabalho manual de dado tipo. Tais parâmetros de pensamento pertencem ao materialismo histórico, mas até o momento não foram explorados para a crítica da teoria do conhecimento, para a qual eles possuem capacidade. Isso deve ser empreendido nesta pesquisa, no convencimento que uma teoria fundamental da história do trabalho intelectual e do trabalho manual contribuiria para o complemento essencial e a continuação dos conhecimentos marxistas.
O modo como temos que proceder, portanto a metodologia da coisa, bem devia pertencer a este ponto preliminar. De fato, porém, ela sempre primeiro se aplica e pressupõe que já se chegou a resultados críveis. Primeiro, torna-se evidente aquilo de que ela deve prescindir. Propor ao leitor uma metodologia ab ovo é abusar de sua paciência. Isso não deve significar que não se dá valor à metodologia. Ao contrário, deve-se dar-lhe valor tão grande, que ela se deixe avaliar adequadamente só com um pleno conhecimento da pesquisa. Portanto, ela será aqui colocada em apêndice à pesquisa. Naturalmente cada qual está livre de inverter a sequência, se lhe aprouver.
Forma do espírito ou forma da sociedade têm em comum que são "formas". O modo de pensar marxiano caracteriza-se por uma concepção das formas, na qual ele se afasta de todos os outros modos de pensar. Ele se guia a partir de Hegel, mas tão somente para também afastar-se de Hegel logo a seguir. Forma é para Marx algo temporalmente condicionado. Ela surge, passa e transforma-se no tempo. Entender forma como ligada ao tempo é sinal de pensamento dialético e deriva de Hegel. Mas em Hegel o processo de origem e mudança das formas, conforme exposto acima, é originariamente processo mental. Ele constitui a lógica. Mudanças de formas de outro tipo, como na natureza ou na história, em Hegel são sempre inteligíveis só pela relação à lógica e em analogia com ela. A concepção hegeliana da dialética atua então de tal modo que não somente autoriza o primado do espírito sobre a matéria, mas o empossa em soberania única.
Para Marx, ao contrário, o tempo, que domina a gênese e a mudança das formas, entende-se de antemão como histórico, tempo da história natural ou humana(2). Por isso não se pode descobrir também nada de antemão sobre as formas. Uma Prima Philosophia está excluída em qualquer feição no marxismo. O que se deve afirmar, deve primeiro ser encontrado pelas pesquisas. O materialismo histórico é, como dissemos, só o nome para um postulado metodológico, e mesmo isso para Marx tinha primeiramente "resultado de seus estudos".
Assim, na constituição de formas históricas de consciência não se pode deixar de fazer caso de processos de abstração, que lá se exercem. A abstração iguala-se à oficina da formação dos conceitos, e se o discurso sobre a determinação social do ser da consciência deve possuir um sentido que satisfaça à forma, então deve-se poder colocar no fundamento dela uma concepção materialista da natureza do processo de abstração. Uma formação da consciência a partir do ser social pressupõe um processo de abstração. que é parte do ser social. Só um tal fato pode tornar inteligível o que se entende com a afirmação de que "o ser social dos homens determina sua consciência". Mas com uma tal concepção, o materialista histórico está em contradição inconciliável com toda a filosofia teorética tradicional. Para a tradição de pensamento, globalmente, está certo que a abstração é a atividade própria e o privilégio exclusivo do pensamento. Falar em abstração em um sentido distinto da abstração do pensamento passa por inadmissível, mesmo em se empregando a palavra só em sentido metafórico. Mas com base em tal concepção, o postulado do materialismo histórico não pode ser levado adiante. Se o processo de formação da consciência, ou seja a abstração, for assunto exclusivo da própria consciência, então permanece um abismo entre a forma da consciência por um lado, e sua suposta determinação pelo ser, por outro lado, abismo que o materialista histórico desmente em princípio, mas de cuja ultrapassagem ele concretamente não pode dar conta satisfatoriamente.
Com certeza deve-se pensar que a própria tradição teorética é um produto da separação entre trabalho da cabeça e das mãos e foi desde seu começo com Pitágoras, Heráclito e Parmênides uma tradição de trabalhadores intelectuais para trabalhadores intelectuais, e nisso pouco mudou até hoje. O testemunho desta tradição, mesmo se representado em unanimidade ininterrupta, não tem portanto nenhum valor incontestável para um ponto de vista intelectual, que se situa na outra margem. E nós atribuímos à análise marxiana da mercadoria no começo de O capital e já no texto Para a crítica da economia política de 1859 uma significação sem par para o pensamento materialista, baseados em que o discurso é sobre uma abstração em um sentido distinto daquele de abstração do pensamento.
No contexto de sua análise da forma mercadoria, Marx fala em "abstração mercadoria" e em "abstração valor". A forma mercadoria (Warenform) é abstrata, e a abstração domina em todo o seu circuito. Em primeiro lugar, o próprio valor de troca é ele mesmo valor abstrato, em contraposição ao valor de uso das mercadorias. Somente o valor de troca é passível de diferenciação quantitativa, e a quantificação que aqui se apresenta é, por sua vez, de natureza abstrata em comparação com a determinação quantitativa de valores de uso. O próprio trabalho, como Marx sublinha com particular ênfase, torna-se fundamento da determinação da grandeza do valor e substância do valor somente enquanto "trabalho humano abstrato", trabalho humano como tal tout court. A forma em que aparece sensivelmente o valor da mercadoria, ou seja o dinheiro (quer como moeda, quer como bilhete) é riqueza abstrata, à qual já não se colocam mais limites. Como possuidor de tal riqueza o próprio homem torna-se homem abstrato, sua individualidade torna-se a essência abstrata do proprietário privado. Enfim, uma sociedade, na qual a circulação de mercadorias forma o nexo das coisas, é uma conexão puramente abstrata, na qual todo concreto se encontra em mãos privadas.
Mas a natureza da abstração mercadoria consiste em que ela não é um produto mental, nem tem sua origem no pensamento do homem, e sim em seu agir. Contudo, isso não confere a seu conceito uma significação puramente metafórica. Ela é abstração no sentido literal rigoroso. O conceito econômico de valor, que daí resulta, caracteriza-se por total falta de qualidade e por uma diferenciabilidade puramente quantitativa e por se poder utilizar para qualquer tipo de mercadorias e prestações de serviços, que possam apresentar-se em um mercado. Com estas propriedades, a abstração econômica do valor possui semelhanças externas marcantes com categorias básicas do conhecimento da natureza, sem que se manifeste a mínima relação interna entre esses dois planos totalmente heterólogos. Enquanto os conceitos do conhecimento da natureza são abstrações mentais, o conceito econômico de valor é uma abstração real. Embora ele não exista em nenhum lugar senão no pensamento humano, ele não surge do pensar. Ele é imediatamente de natureza social, tem sua origem na esfera temporal e espacial do intercâmbio entre homens. Não são as pessoas que geram esta abstração, mas seus feitos, seus negócios recíprocos o fazem. "Não o sabem, mas o fazem".
Para entender adequadamente o empreendimento marxiano da Crítica da economia política, deve-se reconhecer que o fenômeno da abstração mercadoria, ou abstração valor, descoberto na análise da mercadoria, tem a característica saliente de abstração real. É isso que julgamos indispensável. Do contrário, a descoberta marxiana da abstração mercadoria (assim entendida) encontrar-se-ia em contradição incompatível com o conjunto da tradição de pensamento teórico, e tal contradição deve ser levada a um ajuste crítico(3). Por ajuste crítico entendo aqui um procedimento, no qual nenhuma das duas teses reciprocamente contraditórias se supõe como verdadeira, e sim deve-se descobrir por critérios críticos qual delas seja verdadeira. Marx não levou um tal ajuste até seu completo desenvolvimento, e eu estou inclinado a concordar com Louis Althusser bem como com Jürgen Habermas, de que nos fundamentos teóricos do Capital está em questão algo mais, e de maior profundidade, que aquilo que se expressa na avaliação econômica. Louis Althusser é do parecer que o Capital se deva ler como resposta a uma pergunta subentendida mas não formulada por Marx(4). Jürgen Habermas vai mais longe e acusa Marx de ter ignorado as implicações teoréticas de seu ponto de vista. Eu concordo até mesmo com Habermas de que, se tais implicações se assumirem e se perseguirem de maneira consequente, a própria teoria do conhecimento experimentaria uma transformação radical, ou seja completaria sua metamorfose em teoria da sociedade(5). Porém, creio que só podemos desembaraçar-nos mais eficientemente da tradição epistemológica e idealista, se não falarmos mais em "teoria do conhecimento", mas na separação entre trabalho espiritual e trabalho manual. Pois aqui toda a colocação do problema alcança o denominador de sua significação prática.
Se não submetermos a um ajuste crítico a contradição entre a abstração real em Marx e a abstração mental na teoria do conhecimento, estaríamos com isso satisfeitos com a falta de relacionamento entre a forma de pensamento das ciências naturais e o processo histórico social. Fica-se com a separação de trabalho da cabeça e das mãos. Mas isso significa sobretudo que se admite a dominação social de classes, mesmo se esta assumir as formas de dominação socialista de burocratas. A omissão da teoria do conhecimento por parte de Marx expressa-se em erros de uma teoria da relação do trabalho mental com o trabalho manual, ou seja como descuido teorético de uma precondição para a socialização sem classes, precondição reconhecida pelo próprio Marx como essencial(6). A chamada à significação prática do problema não deve diminuir seu valor teórico. Este valor não se situa somente em uma concepção coesa em si, mas em uma concepção consistentemente crítica do pensamento marxista, motivada pela finalidade da sociedade sem classes, sua possibilidade e as condições de sua realização, de forma análoga à primazia da razão prática sobre a razão teórica em Kant. A semelhança vai tão longe, que a possibilidade da liberdade de uma sociedade sem classes depende da concepção consistentemente crítica de nosso pensamento marxista.
Às condições de uma sociedade sem classes nós acrescentamos (em consonância com Marx) a unidade do trabalho espiritual e manual ou, como ele diz, o desaparecimento de sua separação. E vamos tão longe que dizemos, que não se pode dar sequer uma olhada suficiente nas possibilidades reais e nas condições formais de uma sociedade sem classes, se faltar uma visão satisfatória da divisão do trabalho espiritual e manual e das condições precisas de seu surgimento. Tal visão prende-se aos supostos, de que as formas conceituais de conhecimento - objeto específico da teoria do conhecimento inclusive da filosofia teórica dos Gregos - formalmente podem ser deduzidas do mesmo plano ao qual pertence também o trabalho manual, ou seja o plano da existência social. Será este o caso? Esta é a questão, que aqui se pesquisa. A pesquisa prende-se portanto metodicamente à linha, sobre a qual em uma sociedade futura poder-se-á estabelecer a unidade entre cabeça e mão.
A tarefa é a comprovação crítica da abstração mercadoria. Isso é a mesma coisa que aquilo que acima denominamos de "ajuste crítico". Deve-se primeiramente comprovar o fato formal da abstração em um sentido da palavra reconhecido de um ponto de vista da teoria do conhecimento; e sem segundo lugar seu caráter real de modo que não possa ser contestado pelos argumentos da teoria do conhecimento. A comprovação da abstração mercadoria deve portanto trazer consigo a crítica concludente da teoria do conhecimento no entendimento tradicional. O critério deste entendimento tradicional é que a teoria do conhecimento implica a impossibilidade formal de uma unidade entre trabalho manual e o trabalho espiritual das ciências da natureza. Um conceito mais preciso desta unidade pode-se esperar sem dúvida como resultado da pesquisa sobre a separação dos dois e os fundamentos de seu surgimento.
À comprovação crítica da abstração mercadoria deve-se antepor primeiro uma determinação do próprio fenômeno.
O conceito marxiano de abstração mercadoria refere-se rigorosamente ao trabalho incorporado nas mercadorias e determinando a grandeza de seu valor. O trabalho criador de valor é determinado como "trabalho humano abstrato" em contraposição ao trabalho útil e concreto, criador de valor de uso. Ora, nem o trabalho é abstrato por natureza, nem sua abstração para "trabalho humano abstrato" é seu próprio produto. O trabalho não se abstrai a si mesmo. O lugar da abstração está fora do trabalho, na forma social de relacionamento própria da relação de troca. É bem verdade que, de acordo com a concepção marxiana, vale que também a relação de troca não se abstrai a si mesma. Ela abstrai (ou, digamos, abstratifica) o trabalho. O resultado dessa relação é o valor das mercadorias. O valor das mercadorias tem como forma a relação de troca abstraidora e como substância o trabalho abstratificado. Nesta determinação abstrata da "forma valor" o trabalho como "substância do valor" torna-se o fundamento puramente quantitativo da "grandeza do valor". Na análise da mercadoria do primeiro livro do Capital, o objeto da pesquisa é a natureza da grandeza do valor não menos que a natureza da forma valor somente segundo sua essência; as relações quantitativas de troca das mercadorias, como "aparecem" historicamente de fato, serão explicadas primeiramente muito mais adiante, no volume terceiro. (Para uma compreensão adequada da dialética interna e da sistemática da obra principal de Marx, mencionemos aqui os estudos excelentes de Rosdolski e de Reichelt.) Mas como também a relação essencial entre a forma de relacionamento social da troca, por um lado, e o trabalho, pelo outro, é apresentada de maneira rigorosa por Marx, sobre isso deveriam tomar lugar discussões analíticas e críticas: elas iriam atrasar e complicar o presente desenvolvimento de idéias, tanto que as remetemos para um anexo separado. O que aqui nos interessa não é o relacionamento em seu conjunto, mas só um aspecto parcial do mesmo, ou seja o poder de abstração que se deve à troca de mercadorias, não ao trabalho: "O processo de troca confere à mercadoria que ele transforma em dinheiro não seu valor, mas sua forma específica de valor." (MARX, O Capital, MEW, 23, p.105). Falamos portanto a seguir em abstração da troca, não em abstração mercadoria. Como é que a abstração da troca se deixa descrever isoladamente como puro fenômeno?
A troca das mercadorias é abstrata porque está não somente distinta, mas até temporalmente separada de seu uso. A ação da troca e a ação do uso excluem-se reciprocamente no tempo. Enquanto mercadorias são objetos de ações de troca (portanto se encontram no mercado) não podem ser utilizadas nem pelos vendedores nem pelos clientes. Só depois de completada a transação, portanto após sua passagem à esfera privada dos seus compradores, as mercadorias tornam-se disponíveis para o uso dos últimos. No mercado, nas lojas, nas vitrinas etc., as mercadorias estão quietas, prontas para um só tipo de manuseio, sua troca. Uma mercadoria assinalada por um preço definitivo, por exemplo, está sujeita à ficção de perfeita imutabilidade material, e isso não somente por parte de mãos de homens. Supõe-se até mesmo da natureza, que ela suspende sua respiração no corpo das mercadorias, enquanto o preço deve permanecer o mesmo. O fundamento é que só o negócio da troca muda o status social das mercadorias, seu status como propriedade de seu possuidor, e, para poder levar adiante essa mudança social ordenadamente e segundo suas normas próprias, as mercadorias devem permanecer excluídas de todas as mudanças físicas simultâneas ou então que se possa providenciar, que elas permaneçam materialmente imutadas. Portanto a troca é abstrata no tempo, a que ela recorre. E "abstrato" significa aqui que se evitam todos os indícios de possível uso das mercadorias. "Uso" entende-se aqui como produtivo tanto quanto consuntivo, e como sinônimo com todo o reino do relacionamento material do homem com a natureza, no sentido de Marx. "Em contraposição direta à rude objetividade sensível dos corpos das mercadorias, nenhum átomo de matéria natural entra em sua objetividade de valor". (O capital, MEW, p.62). Onde o nexus rerum social é reduzido a troca de mercadorias, deve-se produzir um vácuo em todas as atividades vitais físicas e espirituais dos homens, para que nesse vácuo tome lugar sua conexão com a sociedade. Troca de mercadorias é socialização pura enquanto tal, através de um ato que possui somente esse único conteúdo, separado de todos os outros. Contudo isso vale somente para os atos da troca, os atos recíprocos da entrega da propriedade, mas não vale para a consciência daqueles que trocam.
Pois enquanto o uso das mercadorias é excluído de tal modo das ações dos interessados durante o tempo das tratativas da troca, ele não é excluído em absoluto de seus pensamentos. Ao contrário. O uso e a utilidade das mercadorias que estão no mercado para a troca ocupa os pensamentos dos clientes com toda vitalidade. E também esse interesse não se limita a conjectura. Os clientes têm o direito de assegurar-se do valor de uso das mercadorias. Podem tomar as mercadorias para observar, eventualmente tocá-las, prová-las, experimentá-las, fazer-se exibir o uso delas, e o tratamento do uso apresentado deveria ser idêntico com aquele, para o qual as mercadorias devem ser adquiridas. Contudo a demonstração das mercadorias no mercado serve tão somente para a instrução conceptual e a formação do juízo dos clientes, portanto permanece restrita ao puro valor do conhecimento e é separada com absoluta precisão da práxis do próprio uso, mesmo que os dois sejam empiricamente de todo indistinguíveis reciprocamente. A praxis do uso é banida da esfera pública do mercado e pertence exclusivamente à esfera privada dos possuidores de mercadorias. No mercado o uso das coisas permanece "pura demonstração" para os interessados. Com a formação da essência do mercado, a imaginação dos homens separa-se do fazer e individualiza-se mais e mais como consciência privada. Esse fenômeno toma sua origem exatamente não da esfera privada do "uso", e sim daquela pública do mercado.
Portanto, não é a consciência dos atores mercantis que é abstrata. Só seu negócio o é. Ambos são necessários: a abstração do negócio e a falta de abstração na consciência que o acompanha; por isso os agentes mercantis não se conscientizam da abstração de sua ação. A abstração subtrai-se à consciência deles. Com isso, a falta de consciência dos homens perante a abstração de suas relações de troca não é nem fundamento nem condição para esta abstração.
Já esta pura fenomenologia da abstração da troca sugere que o sentido nela utilizado da palavra "abstrato" corresponde formalmente com seu uso na teoria do conhecimento. Denominamos "abstrato" aquilo que não é empírico, e o uso que se exclui da ação de troca corresponde com o conceito da empiria dentro de seus limites práticos, no âmbito de representação que lhe pertence. O que ultrapassa esses limites (ou seja propriedades das mercadorias irrelevantes para seu uso) subtrai-se à empiria do uso, mas com isso não se acrescenta nada à ação da troca. Esta é abstrata no sentido do não empírico, independentemente de quanto ampla ou estreitamente se estenderam os limites do uso das mercadorias nas várias épocas. Aliás o que está em questão aqui em ambos os campos (no da abstração da troca e no da teoria do conhecimento) é a homogeneidade da abstração.
Aqui deve ser apontada outra ulterior contradição da abstração mercadoria (respectivamente: da troca). A ação da troca exige prescindir por completo do uso (e das propriedades empíricas dos objetos trocados). Ela exerce assim a negação radical da realidade física do uso. Apesar disso, ela mesma é contudo uma ação física: ela arranca a mercadoria trocada da propriedade do vendedor e a desloca para a propriedade do comprador e movimenta o dinheiro do pagamento na direção oposta. Eu denomino isso de fisicalidade da ação de troca(7). Evidentemente, a ação da troca deve-se distinguir do transporte, o qual - por difícil e complicado que seja - tem só que providenciar que sua carga chegue intacta ao cliente.
Será necessário dizer uma palavra sobre uma nova concepção da essência da abstração. Eu considero a pura abstração em sua forma genética como uma propriedade do ser social. Ela é parte imprescindível da síntese da sociedade funcional, que caracteriza a história ocidental. De um ponto de vista burguês todos os conceitos puros, desprovidos de realidade perceptível, apresentam-se como criações do pensamento. Na prática, para a formação de tais conceitos não se pode encontrar na constituição corporal da pessoa nenhum fundamento, ao qual tais imagens correspondam. Hegel, no ponto mais elevado do pensamento burguês, serve-se da filosofia do espírito para fundamentar a posição do idealismo absoluto. De um ponto de vista materialista, ao contrário, o pensamento puro representa a socialização do pensamento. Ela deve-se ao influxo da abstração social real da ação de troca. Eu sustento portanto a tese da origem social da razão pura. Esta tese pode-se apoiar em sua demonstração deduzindo do ser social os conceitos puros da razão, mais precisamente: deduzindo-os da fisicalidade abstrata da ação de troca. Esta dedução oferece a contrapartida à difícil "dedução transcendental dos conceitos da razão pura" praticada por Kant, que foi reconhecida por Hegel como "puro idealismo".(8)
O caráter real da abstração da troca pode ser tanto menos colocado em dúvida. A abstração da ação de troca é o efeito direto de uma causalidade por manipulação e não se apresenta imediatamente de forma nenhuma no conceito. Ela surge como resultado do fato de não acontecerem operações de uso durante o tempo e no lugar onde ocorre a troca. Ordinariamente estão em vigor leis ou pelo menos ordens de mercado, para garantir tal condicionamento da troca de mercadorias. Mas o que a abstração realiza não é a lei em si, nem a proibição punindo violações das condições fundamentais. A abstração é um processo espaço-temporal; ela acontece por trás das costas dos atores participantes. Aquilo que a torna tão dificilmente descobrível é o caráter negativo de sua constelação, ou seja: ela se funda na pura ausência de um acontecer. O que aqui "enche" o espaço e o tempo é o não acontecer do uso no âmbito da troca, o vazio em uso e a esterilidade, que se estende pelo lugar e pelo tempo que a transação exige. Por isso cada ação de troca que acontece é abstrata não de maneira puramente acidental, mas em sua essência, porque de outro modo (ou seja sem situação abstraente) ela nem teria podido acontecer.
Diferentemente da ação da troca entendemos aqui o "uso" das mercadorias quer no sentido produtivo quer no do consumo e, numa produção mercantil completamente desenvolvida, como sinônimo daquele conjunto que Marx compreende sob o processo de troca material com a natureza. Enquanto a ação da troca supõe a separação do uso (mais precisamente: de ações de uso), ela postula portanto o mercado como um vácuo medido temporal e localmente, um vácuo no processo humano de metabolismo com a natureza. No meio desse vácuo a troca de mercadorias desenvolve a socialização como tal, puramente em si, in abstrato. Nossa questão (como é possível a socialização nas formas da troca de mercadorias?) poderia deixar-se formular também como questão sobre a possibilidade da socialização solta do processo humano de metabolismo com a natureza. Aquilo que capacita a troca de mercadorias para sua função socializadora (ou, conforme prefiro dizer, sua função socialmente sintética) é o fato de ser abstrata. Nossa questão inicial poderia portanto também soar assim: como é possível uma socialização pura? - segundo os mesmos critérios de "pureza", que estão na base da "ciência pura da natureza" em Kant. O ponto de partida de nossa pesquisa implica com isso a tese, que há uma questão a respeito do conteúdo: como é possível uma socialização pura? Ela contêm a chave para responder de forma espaço-temporal à questão kantiana sobre as condições de possibilidade de uma ciência pura da natureza. Esta questão, que Kant entendia em sentido idealista, pode-se traduzir em sentido marxiano: como é possível um conhecimento fidedigno da natureza de outras fontes que o trabalho manual? Colocada desta forma, a questão tem em vista o ponto de origem da separação entre trabalho intelectual e corporal como condição socialmente necessária do modo de produção capitalista. - Os corolários à colocação da questão devem elucidar a conexão sistemática, pela qual a análise ampliada das formas da abstração mercadoria (aqui empreendida) serve à crítica histórico-materialista da teoria do conhecimento - em complementado à crítica marxiana da economia política. Expliquemos isso mais em detalhe.
Na troca de mercadorias, ação e consciência, fazer e pensar dos atores da troca separam-se e percorrem caminhos distintos. Só a ação da troca é abstrata do uso, enquanto a consciência do ator não o é. Sua própria abstração confere a todas as ações de troca (independentemente do conteúdo, do tempo, do lugar onde se executam) uma uniformidade formal rigorosa, em força da qual elas formam a partir de si mesmas uma concatenação, de maneira que cada transação exerce inumeráveis repercussões sobre a conclusão de outras transações por parte de possuidores desconhecidos de mercadorias. De tal maneira, resulta um entrelaçamento dos homens "por trás de suas costas" para uma conexão existencial que se regula segundo funções da unidade - conexão na qual também a produção e o consumo ocorrem de acordo com as normas das mercadorias. Mas não são os homens que realizam isso, não são eles que dão origem a esta conexão, e sim suas ações o fazem, enquanto eles vão selecionando uma mercadoria das outras como o portador e o "cristal" de sua abstração e se referem a esse como ao idêntico comum denominador de seus "valores". "É primeiramente dentro da troca que os produtos do trabalho recebem uma objetividade de uso separada, distinta fisicamente deles, uma objetividade de valor socialmente igual." (O Capital. L. I, p.87 [da ed. alemã Dietz]). "A ação social de todas as outras mercadorias exclui portanto uma mercadoria determinada, na qual elas representam seus valores universalmente. [...] Ser equivalente geral torna-se pelo processo social função social específica da mercadoria excluída. Assim ela se torna - dinheiro." (Ibid., p.101) "O processo de troca dá às mercadorias, que ele transforma em dinheiro, não seu valor, e sim a forma específica de valor." (Ibid., p.105) "A necessidade de representar externamente esta oposição entre valor de uso e valor para a troca, impele a uma forma autônoma do valor das mercadorias e não repousa nem descansa, até que ela está definitivamente alcançada pela duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro." (Ibid., 102) "O cristal do dinheiro é um produto necessário do processo de troca, no qual diferentes produtos do trabalho são colocados como realmente equivalentes uns aos outros e portanto de fato são transformados em mercadorias." (Ibid., p.101) "A graça da sociedade burguesa está exatamente em que a priori não há nenhuma regulação consciente, social da produção. O que é razoável e necessário impõe-se somente como média que atua cegamente." (Carta a Kugelmann de 11 de julho de 1868) Isso caracteriza com bastante clareza o processo de constituição da economia sobre base capitalista como causalidade inconsciente de ações humanas, das ações na troca de mercadorias.
Mas o discurso sobre a falta de consciência do processo não nega naturalmente a consciência individual dos possuidores de mercadoria. Eles são e permanecem os atores no jogo. "As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado, nem podem trocar-se entre si mesmas. Devemos portanto procurar seus guardas, os proprietários."(O Capital, L. I, p.99 [ed. alemã cit.]) Os proprietários de mercadorias na troca estão bem atentos à coisa, ansiosos que nada lhes escape. Mas de onde tomam eles os conceitos, que estão à disposição deles? Não os tomam do tesouro de sua própria consciência; mesmo tendo-a, no meio da anarquia de uma sociedade de mercadorias, de nada ela lhes serviria para a obtenção até mesmo da necessidade mais premente. Sobretudo eles não sabem sobretudo por si, como eles devem comportar-se aqui, eles devem deixar que as mercadorias lhes digam. Devem prestar atenção aos preços das mercadorias, compará-los com outros, perseguir suas oscilações. Primeiramente com esta linguagem das mercadorias na consciência os possuidores de mercadorias tornam-se seres racionais, que dominam seu agir e conseguem o que querem. Sem esta linguagem os homens estariam perdidos em sua própria sociedade mercantil como em uma selva enfeitiçada. Esta transferência da consciência humana às mercadorias e o equipamento do cérebro humano com conceitos mercantis, estas "relações humanas das coisas e relações materiais dos homens" são aquilo que Marx denomina de coisificação (reificação). Aqui não são os produtos que obedecem aos seus produtores, e sim ao contrário, os produtores agem conforme a ordem dos produtos, tão logo estes estejam à disposição em forma de mercadorias. A forma mercadoria é a abstração real, que não tem seu lugar e sua origem senão na troca mesma, de onde ela se estende através de toda a amplidão e profundidade da produção mercantil desenvolvida, alcançando assim também o trabalho e até o pensamento.
O pensamento não é atingido diretamente pela abstração da troca, e sim primeiro quando seus resultados se defrontam com ele em forma acabada, portanto primeiro post festum da evolução das coisas. Depois sem dúvida as diferentes feições da abstração se facilitam ao pensamento sem qualquer sinal de sua origem. "O movimento de mediação desaparece em seu próprio resultado e não deixa atrás de si nenhum rastro."(O Capital., cit., p.107) Como isso acontece, será assunto que nos ocupará mais de perto em seu lugar. Aqui devia-se somente assinalar de forma mais geral a conexão funcional bem como a essencial separação do mundo do agir humano e do mundo do pensar humano em sociedades de produção mercantil desenvolvida. Isso tinha sido omitido na primeira edição deste livro.
Acrescentem-se um ou dois pontos adicionais de significação essencial para a compreensão do conjunto. O efeito fundamental da conexão da abstração da troca sobre a sociedade burguesa consiste em que nela se chega a operar uma comensuração do trabalho "morto" usado nas mercadorias e nelas objetivado. Como base de determinação da grandeza do valor (ou como "substância do valor"), o próprio trabalho é abstrato, é "trabalho humano abstrato" ou trabalho de caráter formal imediatamente social. Esta comensuração do trabalho possibilita de forma geral a coesão das "membra disiecta" da sociedade burguesa em uma economia. Esta é a significação vital da abstração real efectuada na troca para o processo de produção e reprodução da sociedade burguesa, portanto deveras "o ponto de partida ao redor do qual gira o entendimento da economia política" (O Capital, cit., p.56). "Enquanto os homens nivelam seus distintos produtos uns aos outros na troca como valores, eles igualam seus distintos trabalhos, como trabalho humano. Eles não o sabem, mas eles o fazem."(Ibid., p.88). O efeito desse nivelamento ou a comensuração dos trabalhos é a determinação do tamanho das relações de troca. "É preciso ter uma produção desenvolvida de mercadorias, antes que da própria experiência brote a seguinte intuição científica: os trabalhos privados realizados independentemente (em todos os sentidos) uns dos outros, mas como membros naturais da divisão social do trabalho são continuamente reduzidos a sua medida social proporcional, porque nas relações de troca, casuais e continuamente oscilantes, de seus produtos o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção impõe-se como uma norma da natureza, quase como a lei da gravidade, quando a casa desmorona. A determinação da grandeza do valor pelo tempo de trabalho é portanto um mistério escondido sob as movimentações aparentes dos valores relativos das mercadorias." (Ibid., p.89). Enquanto o trabalho na produção das mercadorias se realiza na forma de trabalhos privados levados adiante independentemente, a funcionalidade da sociedade incônscia depende da comensuração do trabalho objetivado segundo normas da macroeconomia. Só quando esta forma básica do trabalho que produz mercadorias é substituída por uma outra forma, só então entra em jogo também outra forma de economia, independentemente de se os homens se tornam conscientes disso ou não. Na terceira parte deste escrito voltaremos a esta observação.
Deve-se atribuir importância ao fato de que, como aqui a determinação da grandeza do valor das mercadorias é apresentada por Marx como resultado de uma causalidade puramente funcional que opera cegamente, também a constituição da forma valor mostra-se como um processo real no tempo e no espaço, puramente funcional e igualmente inconsciente. E eu sustento a necessidade de que minha dedução faça justiça a essa exigência. A determinação formal abstrata do ato da troca surge através de uma impossibilidade causal de se chegar a um contrato de troca, se fosse necessário supor que os objetos da troca durante as negociações e na transferência de posse se encontram em processo de mudança física. Somente se o estado social das mercadorias - ou seja a questão de sua posse - se puder separar claramente de seu estado físico e de seu uso, só então a troca de mercadorias pode funcionar como instituição social regular e uma transação pode referir-se a uma outra. Que isso confira um caráter abstrato às ações de troca, não pertence à finalidade da separação e de sua institucionalização jurídica; mas ela é sua consequência inevitável, sobretudo quando as transações se realizam na prática e sua execução se torna fato. A execução do ato da troca coloca em vigor a abstração, prescindindo totalmente da consciência que os atores das trocas possam ter desse efeito. Independentemente de quais traços dessa abstração se possam encontrar no pensamento dos homens, deve valer como certo que a abstração real da troca social se encontra em sua base como fonte primária.
O que se deve estabelecer na análise da forma a seguir, são os critérios pelos quais se possa decidir quais dentre as abstrações que vivem na consciência remontam à abstração real da troca e quais não. A partir do fato de que, no processo de troca, o fazer e o pensar por parte de quem troca se separam, uma verificação imediata da interrelação é impossível. Os homens não sabem de onde as formas de seu pensamento provêm e como eles possam ter chegado à posse de tais formas. Seu pensamento está cortado de sua base. Mas mesmo com uma identificação formal da abstração de pensamento e da abstração real, não se assegura ainda uma clara explicação da origem da primeira a partir da segunda. Exatamente por causa da dualidade de fazer e pensar, que reina aqui, a identificação formal somente indicaria um paralelismo entre os dois planos, o que poderia ser indício tanto de uma pura relação de analogia quanto de uma conexão de fundamentação. Para provar a conexão de fundamentação deve-se poder indicar de que modo a abstração real torna-se pensamento, qual papel ela joga no pensar e qual tarefa socialmente necessária lhe cabe.
A significação e necessidade histórica da abstração da troca em sua realidade espaço-temporal consiste em que, em sociedades produtoras de mercadorias, ela é a portadora da socialização. Na conexão da divisão do trabalho da produção de mercadorias, nenhum procedimento de uso, de consumo ou de produção, no qual se desenrola a vida dos indivíduos, pode realizar-se sem que seja mediado pela troca de mercadorias. Cada crise econômica ensina-nos que produção e uso - na medida de sua extensão e duração - são embargados, enquanto o sistema social da troca estiver quebrado. Abstemo-nos propositalmente de aprofundar as interdependências econômicas, pois aqui não temos a ver com a economia. Baste assegurar-nos do registro de que a síntese das sociedades produtoras de mercadorias se deve buscar na troca de mercadorias, mais precisamente na própria abstração da troca. Correspondentemente, empreendemos a análise formal da abstração da troca em resposta à questão: Como é possível uma síntese social nas formas da troca de mercadorias?
Mesmo nesta forma inicial e simples, esta formulação da questão lembra mais Kant que Marx. Mas é com isso um bom caso marxiano. A comparação implícita (como foi dito) não é entre Kant e Marx, e sim entre Kant e Adam Smith ou, melhor, entre a teoria do conhecimento e a economia política, das quais os nomes mencionados podem constar como os fundadores sistemáticos conhecidos. A riqueza das nações de Adam Smith, de 1776, e a Crítica da razão pura de Kant, de 1781 (primeira edição), são as duas obras em que, antes de todas as outras, se persegue a mesma finalidade com perfeita independência sistemática em campos conceitualmente desligados: a comprovação da natureza ordenada da sociedade burguesa.
Com base na pressuposição de que na natureza do trabalho humano está de produzir seus produtos como valores, Adam Smith prova que só há um curso ótimo que a sociedade possa assumir: ou seja, dar a cada possessor de mercadorias ilimitada liberdade de dispor de sua propriedade privada. Isso é para a sociedade o caminho justo normativo fundamentado na essência da própria sociedade - que seja para seu bem, como estava convenido Adam Smith, ou para sua desgraça, como Ricardo começou a desconfiar. Sabemos que a análise da mercadoria da Marx serve a demolir até mesmo este suposição básica da economia política em seu conjunto e, a partir daí, a abrir os olhos para a verdadeira dialética da sociedade burguesa. Esse é o assunto da marxiana Crítica da economia política.
A obra de Kant não tem por suposição (mas chega à conclusão) de que está na natureza do espírito humano de fazer seu trabalho separado e independente do trabalho corporal. Certo, em Kant só raramente há menção do trabalho manual e das "mãos trabalhadoras", embora seu papel social indispensável nunca esteja em dúvida. Esse papel, porém, não se estende nem à possibilidade de um conhecimento exato da natureza. A teoria da "matemática pura" e da "ciência pura da natureza" triunfa no fato de que nela não há necessidade nenhuma sequer de mencionar o trabalho corporal. Ela é conhecimento em base puramente espiritual e a própria possibilidade disso é a tarefa explicativa de sua teoria. Para Kant, as visões empiristas de Hume eram um escândalo, porque nelas se abalava a qualidade apodíctica de juízo dos conceitos puros da razão, e esta qualidade justifica a separação entre princípios a priori e princípios a posteriori do conhecimento, portanto o isolamento de uma parte de nosso ser não deduzível da natureza corporal e sensível, uma parte que ao mesmo tempo fundamenta a autonomia da pessoa espiritual com a possibilidade do conhecimento teorético da natureza. De acordo com esta autonomia, para assegurar a ordem social não são necessários nem privilégios externos, nem restrições artificiais da "maioridade", por outro lado. Quanto mais vem assegurado aos homens um "uso desimpedido de sua razão", tanto melhor se serve às necessidades sociais, ou seja à moral, ao direito e ao progresso espiritual.(9) É o único caminho fundamentado na natureza de nosso próprio poder espiritual, portanto caminho justo, aquele no qual à sociedade pode caber a ordem conforme a ela. Que esta ordem traga em si a separação de classes perante as categorias trabalhadoras, isso se dissimulou a Kant tal como aos outros filósofos do iluminismo burguês. "A filosofia da revolução francesa" - assim denominou Marx a kantiana: esta ilusão não era o último motivo para isso. Mas a separação entre as classes "formadas" e as "trabalhadoras", esse era o conceito sob o qual na Alemanha economicamente subdesenvolvida a sociedade burguesa tomou forma mais e mais, à distinção dos conceitos de capital e trabalho no ocidente, onde a economia política dominava o pensamento burguês. - Ora, onde está aqui a questão da "crítica da teoria do conhecimento" que visamos realizar?
As suposições da teoria kantiana do conhecimento são corretas na medida em que as ciências exatas são de fato tarefa do trabalho espiritual, que se realiza em completa independência do trabalho manual nas fábricas. Isso foi mencionado acima. A separação entre trabalho da cabeça e das mãos - especificamente, sobretudo a propósito à ciência da natureza e à tecnologia - tem significação igualmente imprescindível para a dominação burguesa de classe, quanto a propriedade privada dos meios de produção. Do desenvolvimento de certos dos atuais países socialistas pode-se ler hoje a verdade, de que se pode desfazer a propriedade capitalista e no entanto a oposição de classes não se dissolve. Entre a oposição de classes de capital e trabalho, por um lado, e a separação de trabalho de cabeça e mãos, por outro lado, subsiste um nexo com raízes profundas. Mas o nexo é só causal e histórico. Conceitualmente eles são totalmente disparatados, ou seja entre eles não há (quer no todo, quer nos pormenores) nenhuma ligações transversais, que permitam deduzir um do outro. Por isso se deve empreender a crítica da teoria do conhecimento em independência completa sistemática da crítica da economia política.
A questão inicial poderia naturalmente ser formulada de forma mais simples: como é possível a socialização através da troca de mercadorias? O uso da palavra "síntese" oferece porém três vantagens. Primeiro, pode-se falar facilmente de funções socialmente sintéticas da troca mercantil. Segundo, a expressão "sociedade sintética" coloca a produção de mercadorias em contraposição à ordem natural de comunidades originais comunistas ou, de qualquer modo, primitivas de modo correspondente - assim como se fala em borracha sintética em comparação com o caucho como produto natural. De fato, na objetividade-valor das mercadorias (da qual depende o efeito socializador da troca) não entra "nenhum átomo de matéria natural". A socialização, aqui, é puro feito humano, separado da relação material do homem com a natureza, e há boa base para suspeitar, que aqui está afinal escondida também a condição transcendental histórica da possibilidade de toda a atual produção sintética. Eu uso, portanto, a expressão "sociedade sintética" em um sentido diferente e com outra abrangência conceptual que a expressão "síntese social". A primeira refere-se ao a sociedades mercantis, a última se emprega como condição comum do modo de existência humano, sem restrição histórica. Neste último sentido, a expressão consegue seu terceira significação, ou seja a de um aguilhão polémico de meu questionamento contra a hipostatização kantiana de uma síntese a priori da espontaneidade do espírito, paga portanto com a mesma moeda o idealismo transcendental.
Nenhum dos três sentidos da síntese é indispensável para os fins desta pesquisa. A derivação da razão pura da abstração da troca pode-se expor também sem todos os empréstimos anti-idealistas. Mas a referência polêmica oferece a vantagem que com isso o caracter essencialmente crítico do método marxiano mantém seu tom devido. E isso perante a atual dogmatização do marxismo fundada em autoridade não é vantagem desprezível. Só pela revitalização de sua essência crítica o marxismo pode ser salvo do entorpecimento, no qual dele se abusa sob sinal trocado para legitimar relações de dominação inconfessadas.
Por trás de nossa oposição crítico-polêmica a Kant está uma concordância como medida de comparação. Estamos de acordo com Kant, que os princípios básicos de conhecimento das ciências naturais quantitativas não se podem deduzir do poder físico e fisiológico (alias manual) do indivíduo. As ciências exactas naturais pertencem aos recursos de uma produção, que abandonou os limites individuais da produção isolada de observância precapitalista. A composição dualística do conhecimento em Kant (de princípios a posteriori e princípios a priori) corresponde à contribuição dos sentidos individuais, que sempre alcançam somente tão longe quanto um par de olhos, de ouvidos, etc., e a contribuição de conteúdo imediatamente universal, que prestam os conceitos ligados à matemática. Na praxis do método experimental a contribuição da função individual de significação à "leitura" dos dados é reduzida a instrumentos de medida cientificamente construídos. A evidência científica tem certeza só para a pessoa que lê na hora, para as outras não tem senão credibilidade. Quando não for eliminavel tout court, ela é reduzida a um mínimo, e esse mínimo é o que fica do trabalhador manual no experimento, pois mesmo sua pessoa constitui o fator "subjectivo", a cujo desligamento se desliga a objetividade científica. Necessidade lógica mora somente na hipótese formulada matematicamente e nas consequências de seu âmago. Esta dualidade das fontes de conhecimento vale para nós como fato indiscutível. O que está em questão é a origem histórica, espaço-temporal do poder lógico das hipóteses, mais precisamente a origem dos elementos formais sobre os quais tal poder se funda. Mas nem Kant nem qualquer outro pensador burguês pode levar até o resultado essa questão da origem, nem sequer mantê-la como questão. Nas primeiras linhas da Introdução à segunda edição da Crítica a questão é colocada, mas a seguir esgota-se. Kant concentra as formas conceituais incertas em um princípio último básico, da "unidade originalmente-sintética da appercepção", mas mesmo para este princípio não tem ele nenhuma explicação outra, senão que ele existe em força de sua própria "espontaneidade transcendental". A explicação dispersa-se no fetichismo daquilo que se devia explicar. A partir daí, vale insistir na afirmação de que simplesmente não pode haver uma explicação genética, ou seja espaço-temporal, da origem da "pura potência da razão". A questão é selada por um dos tabus mais santificados da tradição filosófica de pensamento. O escárnio de Nietzsche - de que Kant pergunta "como são possíveis juízos sintéticos a priori" e responde, "por uma capacidade" - é perfeitamente fundamentado. Só que Nietsche mesmo não sabe nada melhor. O tabu significa que a separação existente entre trabalho da cabeça e das mãos não possui nenhum fundamento espaço-temporal, e sim de acordo com sua natureza é atemporal, de maneira que também a ordem burguesa vai manter sua justeza normativa até o fim dos tempos.
Ora, em contraste com a questão kantiana, coloquemos a nossa: Como é possível a socialização através da troca de mercadorias? Esta questão situa-se fora de todo o círculo conceptual da teoria do conhecimento e não está portanto de forma nenhuma já implicada em qualquer pressuposto teórico-cognitivo corrente. Se não tivéssemos a ver com o paralelismo com a formulação kantiana, poderíamos igualmente escolher a seguinte formulação: De onde se gerou a abstração do dinheiro? Ambas as colocações da questão mantêm-se no campo espaço-temporal do pensamento histórico materialista e são igualmente dirigidas a abstrações formais, que no campo econômico são homogêneas com aquelas dos "puros" princípios do conhecimento. Parece excluído que nenhuma pura ligação entre ambas deveria ser descoberta, se formos adiante com base na primeira.
À primeira vista não é nada evidente como a troca de mercadorias deva possibilitar a síntese social entre indivíduos, que possuem as mercadorias em propriedade privada, portanto separada. Pois a troca de mercadorias é com absoluta precisão aquela relação entre possuidores de mercadorias, que se regula totalmente segundo princípios da propriedade privada - e nenhum outro. "Coisas são em e por si externas aos homens e portanto alienáveis. Para que esta alienação seja recíproca, os homens precisam só encontrar-se implicitamente como possuidores privados daquelas coisas alienáveis e mesmo por isso como pessoas reciprocamente independentes. Tal relação de recíproca estranheza não existe porém para os membros de uma comunidade natural..."(10) Ela existe sobre a base da produção de mercadorias. Sobre seu terreno todo uso dar mercadorias - quer para consumo quer para produção - procede somente no campo privado dos possuidores de mercadorias. O processo da socialização, ao contrário, considerado formalmente por si, acontece só na troca das mercadorias por parte de seus possuidores, portanto em tratativas que decorrem sem mesclar-se com o uso das mercadorias e em separação temporal precisa dele. Portanto o formalismo da abstração das mercadorias e da síntese social, à qual ele serve, deve-se encontrar dentro da relação de troca no espaço assim precisamente medido.
Correspondentemente a sua ancoragem na propriedade privada, como forma de relacionamento de acordo com as regras da propriedade privada, a troca de mercadoria está sujeita em todo e qualquer caso individual ao princípio da oposição privada(11) de ambos os campos de propriedade. Meu - portanto não teu; teu - portanto não meu: é o princípio, que domina a lógica da relação. Esse princípio abarca qualquer particularidade na medida em que ela ganhe relevância para a transação. Ele opera também a relação de cada contraente aos objetos envolvidos na troca. Que seu interesse nos mesmos seja seu interesse e não dos outros, sua representação também seja a sua, que as necessidades, sensações, pensamentos, que estão em jogo, sejam polarizados sobre aquilo a que se referem, isso é o que conta, enquanto os conteúdos tornam-se realidades monadológicas ou solipsísticamente incomparáveis para os parceiros da troca uns perante os outros. O solipsismo, de acordo com o qual entre todos cada um por si é o único (solus ipse) que existe e consequentemente mais adiante todos os dados, enquanto possuírem objetividade, são seus dados privados,(12) - o solipsismo é a descrição exacta do ponto de vista sobre o qual os interessados estão uns perante os outros na troca. Mais precisamente, sua relação recíproca objectiva na troca é solipsismo prático, não importa o que pensem eles mesmos sobre si e seu comportamento.(13) Expressado na conceitualização dos economistas, os possuidores de mercadorias encontram-se reciprocamente na troca exatamente como se cada um fosse um Robinson em sua ilha privada de propriedade, ou seja de tal forma que as mudanças no estado da propriedade, das quais eles tratam, deixem inalterados seus campos de propriedade. A isso providencia a reciprocidade, que manda pesar cada mudança por uma outra. A reciprocidade não é algo que compense pela exclusão de uma propriedade através de princípio contraposto, e sim ela - ao contrário - universaliza-o. Como os contraentes se reconhecem reciprocamente como possuidores privados, aquela exclusão da propriedade, que ocorre em uma direcção, é correspondida por uma igual na outra direcção. O fundamento para a reciprocidade é mesmo a exclusão privada de propriedade em vigor entre os proprietários, a qual permanece intocada pela transação como "troca". O que a aquiescência à troca traz à expressão é o reconhecimento que a mudança de propriedade negociada deixa inalterados os campos de propriedade que se encontram um perante o outro. Com isso, a troca de mercadorias é articulada como uma forma de relacionamento social entre campos não misturáveis e separados de propriedade.
Expressa laconicamente o quanto possível - esta é uma descrição da recíproca relação de proprietários de mercadorias na troca, descrição que temos como exacta na medida em que ela se dispõe a qualquer aprofundamento na casuística quase infinita desse campo, que se poderia empreender, mas da qual poupamos aqui o leitor. Em outras palavras, esta descrição dá o estado objectivo do relacionamento que ocorre na troca entre possuidores de mercadorias. Que seja necessária uma análise mais circunstanciada, para trazer à luz este estado de coisas, pois ele nos circunda diariamente, isso se explica pela mesma lógica pela qual o cheiro do ar que respiramos se tornou imperceptível a nós. A circulação costumeira das mercadorias entrou tanto na rotina de seus trilhos institucionais e nos casos onde ela se prende em duras lutas de interesses é tão pouco o lugar para filosofar, que nesse lugar é impossível uma consciência da estrutura que serve de base. Só no afastamento do mercado sua estrutura chega à reflexão abstrata, ma a sistematização que ela então experimenta torna-se o fundamento, que torna incognoscível sua origem histórica.
A elaboração precisa das condições da exclusão recíproca da propriedade e do solipsismo prático (sob as quais se situa a relação de troca) é necessária para colocar em base correcta a questão da possibilidade da socialização pela troca de mercadorias. O primeiro passo na análise das mercadorias ou da troca apronta a dificuldade maior, porque a abstração penetra mais fundo que se possa suspeitar e estar preparados para aceitar à primeira vista. Deve-se colocar a questão sobre como as mercadorias sejam de todo permutáveis entre os mundos solipsísticos que negociam ao redor delas, segundo qual propriedade ou forma, e como portanto a própria troca seja possível. Onde se encontram os Robinsons uns aos outros, baseados em suas ilhas de propriedade, privadas e reciprocamente privativas? qual é o ponto de comunicação de seus negócios entre elas?
Evidentemente é este o ponto que faz com que uma pretensão de ambas as partes à propriedade de uma e a mesma coisa leve à contradição privada. O princípio: meu - portanto não teu; teu - portanto não meu, pressupõe uma unidade perante a qual o "meu" e o "teu" tornam-se primeiramente reciprocamente privativos. Trata-se de saber como definir correctamente essa unidade, pois ela é evidentemente a possibilidade de troca das mercadorias e a primeira condição fundamental de uma síntese social no caminho da exclusão privativa da propriedade entre possuidores de mercadorias.
A unidade precária das mercadorias não é evidentemente sua indivisibilidade material. Que se esteja trocando uma tonelada ou cinquenta quilos de ferro, não faz diferença nenhuma para a essência da coisa. Poder-se-ia reduzir o material até seus átomos indivisíveis, e o problema se colocaria da mesma maneira para cada um deles, se se chegasse ao ponto que eles estivessem sendo trocados. Nem se pode tratar da unicidade e insubstituibilidade das mercadorias, pois em geral as mercadorias são artigos de massa, contando que um exemplar possa substituir o outro. Mas qualquer que possa ser o exemplar individual, cada vez deve ser uma coisa que esteja pronta para a troca, e essa tem então aquela unidade tal que, ao mesmo tempo, não possa pertencer a um proprietário e ao outro, e sim somente a um ou ao outro, em propriedade separada. Supondo agora que esta unidade "descascável" pertença ao trigo, vamos descobrir que não há absolutamente nenhuma unidade da coisa-mercadoria em sua natureza corporal, em sua matéria ou natureza. A unidade que faz com que uma determinada mercadoria não possa pertencer simultaneamente a dois possuidores como propriedade separada, mas que entre eles ela deve ser "trocada" contra uma outra mercadoria - essa unidade é na verdade a unidade de seu ser, ou seja o dado de fato que cada mercadoria tem um ser indivisível e único. A unicidade do ser de cada coisa é a razão pela qual essa coisa não pode pertencer separadamente ao mesmo tempo a diversos proprietários privados, porque a apropriação privada tem o sentido que o interessado faz da coisa parte de seu próprio ser.(14) Chegamos com isso ao resultado de que a forma de trocabilidade das mercadorias é a unicidade de sua existência.
Podemos lidar com a coisa também de outro aspecto. Dissemos acima que a troca como forma de relacionamento daqueles que trocam necessita de um solipsismo prático recíproco. Mas enquanto cada qual coloca seu ser com todo o mundo de seus dados privados (ou percepções) em confronto com qualquer outro e o mundo dele, cada vez que eles se encontram na troca de suas mercadorias, o mundo é contudo, mesmo em sua realidade, somente um entre eles. A que se reduz porém essa unidade do mundo em sua realidade entre os mercantes? Tudo o que se pode perceber no mundo e nas coisas é dividido monadologicamente entre eles como sua propriedade privada. O mundo portanto possui unidade entre eles somente prescindindo da natureza deles. E não somente as percepções das coisas são trocadas entre os possuidores, mas as coisas mesmas, enquanto as percepções delas continuam a ser individuais. Segundo o ser puro como tal, portanto, as mercadorias se movem entre os possessores, prescindindo de tudo aquilo que forma as percepções privadas dos possuidores. Só em sua realidade o mundo é um entre os possessores que dele participam, enquanto o modo da participação exerce a negação subjectiva da unidade do mundo e obedece à necessidade da troca só como a constrição externa das coisas objectivas. A troca mesma providencia sua própria cegueira como relacionamento social sintético. A troca ocorre só devido ao solipsismo prático dos trocantes, que subtrai a socialização que eles praticam à possibilidade de seu conhecimento. Mas o que é que constitui a unidade do mundo em contraposição com o solipsismo dos trocantes? De novo, ela não se constitui da indivisibilidade material do mundo ou de seus componentes ou das coisas; nem também da unicidade e insubstituibilidade dos exemplares individuais, de acordo com seu ser.(15) Muito mais, é tão só a unicidade do ser de cada parte o que torna o mundo uno, por longe que se queira esticar o reino do "Mundo". O resultado é portanto o mesmo que antes: a forma de trocabilidade das mercadorias é a unicidade do ser de cada uma; é essa mesma unicidade do ser in abstrato, ou seja "independentemente" de tudo aquilo que pertence à percepção das coisas mercadorias e desagua no solipsismo prático dos trocantes uns com os outros.
Falta perguntar o que é que esta natureza da forma de trocabilidade das mercadorias confere à socialização pela troca. Ela confere à síntese social pela troca de mercadorias sua unidade. Se a circulação mercantil alcança o grau de desenvolvimento, no qual ela se torna o nexus rerum decisivo, a "duplicação da mercadoria em dinheiro e mercadoria" deve ter-se realizado; possivelmente também, pelo contrário, esta duplicação (que na história ocorreu pela primeira vez em torno do ano 700 a.C. na periferia iônica do mundo grego) leva a que a troca de mercadorias bem cedo se torne um meio determinante de socialização. O dinheiro é então o portador material da forma de trocabilidade das mercadorias, atua como forma equivalente geral das mesmas e forma de trocabilidade. A essência da mesma como unicidade do ser das mercadorias opera o efeito de que o dinheiro, de acordo com sua essência funcional, é uno: em outras palavras, só pode haver um dinheiro.(16) Naturalmente existem um grande número de divisas; mas enquanto cada uma delas exerce de fato as funções de dinheiro em seu âmbito de circulação vale entre elas o postulado, que elas devem poder-se calcular reciprocamente a um curso de câmbio claro, portanto devem comunicar funcionalmente com um e só um sistema monetário universal. A isso corresponde a unidade funcional de todas as sociedades mercantis comunicantes. Um curso das trocas, que se formou em diversos lugares do mundo em isolamento geográfico, torna-se necessariamente com a constituição de contacto desimpedido, mais cedo ou mais tarde, um nexo de interdependência, cego mas indivisível, entre os valores das mercadorias em seu conjunto. Esta unidade essencial intercomunicativa de todas as divisas em um sistema monetário, bem como a unidade da síntese social pela troca de mercadorias, que por isso é mediada, é formalmente e geneticamente (portanto, digamos, formgenéticamente) a mesma que a unidade de ser do mundo. A unidade abstratificada do mundo circula como dinheiro entre os homens e possibilita a eles uma conexão inconsciente a uma sociedade.
Para termos clareza da análise feita até aqui, seja repetido: a forma de trocabilidade é própria das mercadorias; isso vale independentemente de sua condição material, ou seja prescindindo daquilo que entra na percepção e no prático solipsismo dos indivíduos trocantes. A forma abstração da trocabilidade é portanto produto da atividade interhumana desse solipsismo, respectivamente do caráter privado da propriedade das mercadorias. A abstração surge da relação de circulação entre os homens; ela não surge no âmbito único, nem no âmbito da percepção de um indivíduo por si. Ela surge de uma maneira, que se subtrai complemente ao empirismo, o qual se reforça com base no ponto de vista da percepção do indivíduo. Pois não são os indivíduos que operam sua síntese social: seus negócios o fazem. Os negócios operam uma socialização, da qual os negociadores nada sabem no instante em que ela acontece. Apesar disso, a troca de mercadorias é um relacionamento, no qual os atores mantêm seus olhos bem abertos, um relacionamento no qual a natureza fica parada, portanto um relacionamento em que absolutamente nada não humano se imiscui, um relacionamento, enfim, que se reduz a um puro formalismo, um formalismo de "pura" abstração, mas de realidade espaço - temporal. Esse formalismo assume feição especial concreta no dinheiro. O dinheiro é coisa abstrata, um paradoxo em si, e tal coisa exerce sua ação social sintética sem nenhum entendimento humano daquilo que ele é. Apesar disso, o sentido do dinheiro não é acessível a nenhum animal, mas somente a homens. Temos agora que descrever ulteriormente este formalismo.(17)
De fato, na geração deste formalismo jogam dois processos de abstração um dentro do outro. O primeiro é a abstração, que está na base de toda transação mercantil na forma de seu isolamento e separação temporal dos atos de uso. O segundo se joga dentro da transação na feição da segregação da forma de trocabilidade das mercadorias e é efeito do solipsismo privativo recíproco dos indivíduos que trocam. Esta segunda abstração prende-se à execução do ato da troca. A separação da forma de trocabilidade é com isso imediatamente conectada à equação da troca. A equação da troca, como nivelamento das correspondências de mercadorias pelo processo de troca, é um postulado imanente à troca em sua propriedade de forma de relacionamento social entre os homens. Não é subjectivamente que valem como equivalentes as colocações de mercadorias trocadas para os possuidores de mercadorias que efectuam trocas, e sim objectivamente entre eles. A equação encontra-se implícita no reconhecimento recíproco da transação como "troca", ou seja como uma mudança de posse, a qual deixa imutada a situação de propriedade de cada um. Eu falo de situação de propriedade em vez de direito de propriedade, para com isso deixar claro, que a forma jurídica da relação não traz nada para sua explicação. A formulação jurídica supõe a equação da troca, não ao contrário.
Repito: a equação da troca é postulado relacional da troca como movimento social. O postulado é de origem social e tem valor puramente objectivo, social. As mercadorias não são iguais, a troca põe-nas iguais. Esta colocação executa uma abstração ulterior, a abstração das quantidades de mercadorias que estão à disposição para a troca em quantidades abstratas exclusivamente como tais. As mercadorias são trazidas ao mercado em quantidades determinadas de acordo com o uso, conforme seu peso ou número de peças ou unidades quantitativas, em volumes, grandezas, etc. A equação da troca apaga estas determinações quantitativas que pertencem ao valor de uso e não são equiparáveis entre umas às outras. Ela substitui estas quantidades mencionadas por uma não mencionada, que nada mais é senão pura quantidade, independentemente de qualquer tipo de qualidade. Esta quantidade em si ou em abstrato é de natureza relacional tal como a equação da troca, da qual ela surge, e prende-se também tal como a equação da troca ao ato da execução da troca. Se a execução da troca não chega a realizar-se, é pelo fato de que entre as duas colocações domina um "demais ou maior" (>) ou um "de menos ou menor" (<) em vez da necessária igualdade (=). É esta quantidade absoluta de natureza relacional, "solta" totalmente da qualidade, que está na base do pensamento matemático puro como determinação de formas. De acordo com isso, seria de esperar que o surgimento do pensamento matemático puro, em sua lógica característica, estivesse historicamente no estágio determinado de desenvolvimento, no qual a troca de mercadorias se torna forma suporte da socialização, em um ponto do tempo, que se pode conhecer pela introdução e difusão de dinheiro monetizado. Pitágoras, com quem o modo matemático de pensar apareceu pela primeira vez em sua característica própria, de acordo com a hipótese hoje dominante dos pesquisadores da antiguidade, provavelmente contribuiu ele mesmo à introdução do sistema monetário em Croton. Contudo, a questão de como os elementos formais da abstração da troca, respectivamente da mercadoria, entram na consciência, não pertence ainda a este ponto, pois primeiro temos que nos ocupar apenas com a análise da abstração real.
A troca põe as mercadorias iguais, embora elas sejam diversas. As mercadorias são necessariamente diferentes, pois não se trocaria o mesmo pelo mesmo. "Casaco não se troca por casaco, nem o mesmo valor de uso pelo mesmo valor de uso."(18) Para expressar o postulado da equação da troca e poder de qualquer forma pensá-lo, é necessário portanto um conceito mediador, pelo qual a igualdade e a diferença das mercadorias podem valer uma ao lado da outra. Este é o conceito do "valor", pelo qual a equação da troca vale como equivalência, não como igualdade, mas como equivalência.(19) O "valor" não é portanto o fundamento da equação, mas ao contrário: o postulado da relação de troca, inerente à relação de troca e necessário para a síntese social, precede o conceito de valor.(20) Isso confere ao conceito de valor a aparência como se ele apontasse para um ser puramente quantitativo contido nas mercadorias. Mas esse ser aparente não é nada mais nem nada distinto de uma relação socialmente necessária que brota do agir dos homens: nela o relacionamento social dos homens se "reifica", ou seja se transpõe para uma relação entre suas mercadorias. Carrega-se sobre as mercadorias uma natureza social, que nada tem por si a ver com coisas. Daí o "caráter fetichístico" imputado às mercadorias.
Embora a comparação desta análise da forma com a análise marxiana das mercadorias deva ser apresentada em um tratamento minucioso no anexo, é contudo inevitável aqui uma observação restrita. Consiste em que nós não podemos reconhecer à forma valor das mercadorias nenhuma relação inerente ao trabalho. Aqui não nos encontramos absolutamente em discrepância de Marx. A forma valor nega e encobre a relação quantitativa do valor com o trabalho através da "aparência objectiva" do valor das mercadorias. "Não está portanto escrito na testa do valor o que ele é." A abstração da troca é a trama da qual se tece a aparência, pois ela só surge do fato de que produção e consumo não têm lugar na troca. O trabalho onde se produzem as mercadorias, bem como os atos nos quais elas são usadas, são as mudanças fundamentais físicas, das quais a troca de mercadorias deve ser isolada para poder ter lugar. A troca de mercadorias em si não é senão um relacionamento recíproco de apropriação. O fato decisivo presente na produção de mercadorias é que sobre sua base a socialização não se enraíza no caracter social do processo de trabalho nem na mais ou menos abrangente colectividade do modo de produção (algo assim como no comunismo primitivo), mas em um sistema da apropriação formalizado e generalizado como circulação da troca. Em sua base está a cisão da produção originariamente colectiva em um sistema de produção individual com divisão do trabalho. "Somente produtos de trabalhos privados autônomos, independentes uns dos outros, podem enfrentar-se reciprocamente como mercadorias.(21) Naturalmente o mecanismo da apropriação privada nas formas da troca deve realizar, no resultado final, uma interrelação dos trabalhos privados independentes mais ou menos conforme com as necessidades sociais, a fim de que a sociedade de produção de mercadorias seja viável. "E a forma, pela qual se dissemina esta divisão proporcional do trabalho em uma sociedade, na qual a interdependência do trabalho social se faz valer como troca privada dos produtos individuais do trabalho, essa forma é mesmo o valor de troca desses produtos."(22) Todos os conceitos dominantes nas sociedades produtoras de mercadorias, conceitos orientadores do operar dos indivíduos, surgem do mecanismo da troca e da aparência objectiva, pela qual essa sociedade inconsciente se torna de todo possível. Assim como este mecanismo não consta senão dos atos recíprocos de apropriação na troca dos produtos do trabalho como valores, assim também esses conceitos são cunhados pelas relações de apropriação, que lhes emprestam significação social. Sua relação com a substância social real, ou seja o trabalho, pelo qual primeiro algo que se possa trocar vem a existir, é no geral somente uma relação indireta. Somente a crítica genética da forma desses conceitos encobridores pode trazer à vista sua relação com o trabalho. Devido à reciprocidade como troca, a apropriação assume a forma do mecanismo autoregulador, que a capacita a tornar-se portadora da síntese social; isso em contraposição à apropriação unilateral, tributária, nas "relações diretas de domínio e servidão", as quais predominam nas civilizações orientais antigas e no feudalismo.(23) Por outro lado, a troca não produz seus objetos, mas pressupõe a produção e o trabalho. Não se pode em geral trocar mais do que aquilo que se produz. A soma de todos os preços (preços de apropriação) deve ser essencialmente igual a todos os valores (valores trabalho), e também dentro desta equação global a relação entre apropriação e produção pertence à necessidade econômica causal e automática. Mas a forma valor das mercadorias, ou seja a abstração das mercadorias, não está em nenhuma conexão com o trabalho necessário para a produção das mercadorias. Não conexão, e sim separação caracteriza esta relação. Em outras palavras, a abstração das mercadorias é abstração da troca, não abstração do trabalho. A abstração do trabalho, que se encontra na produção capitalista das mercadorias, tem - como veremos mais adiante, na parte 3 deste escrito - tem seu lugar no processo de produção, não no processo de troca.
A economia das robinsonadas da teoria subjectiva do valor não tem olhos para o postulado da equivalência. Nesta disciplina teórica o aspecto social da troca, sua característica como forma social de relacionamento e portador da síntese social, é conceitualmente extinto. Que essa extinção, falando sistematicamente, seja errônea, aparece do fato que a teoria subjectiva do valor não pode dar conta nenhuma da quantificação dos valores, aos quais ela se refere, ou seja a determinação de valores numéricos para as mercadorias, respectivamente os "bens"; a quantificação nessa teoria alcança algo só pelo caminho da captação lógica. Mas a consequência metodológica é a criação da assim chamada "economia pura", que depois por sua vez deu azo à criação metodológica de uma ciência da sociedade separada da economia. Esta separação daqueles que se pertencem reciprocamente, que é aproximadamente tão velha quanto o capitalismo monopolista, leva a que ambas as disciplinas - a "economia pura" e a sociologia empírica - perdem o contacto com o processo histórico; pois o processo histórico é dominado pela pertença recíproca de economia e socialização. Isso não exclui análises penetrantes de fenômenos individuais. Mas sobre o terreno dessa separação não se podem alcançar as categorias sem as quais a conexão dos fenômenos individuais no processo histórico (respectivamente com o processo histórico) não se torna compreensível. Sobre aquilo que acontece propriamente com a sociedade desde o começo do capitalismo monopolista, não se pode esperar esclarecimento nem da "economia pura" nem da sociologia empírica; e isso não só por causa da falta de interesse por um tal esclarecimento por parte da maioria dos economistas e sociólogos, mas mesmo com base na impossibilidade metodológica de sua disciplina.
O papel do postulado da equivalência para a síntese social pela troca de mercadorias é tão evidente, que não precisa ser sublinhado. A equação da troca serve à realidade casual, puramente contingente do acontecer nas conexões da lógica da troca. As mercadorias são jogadas no mercado, arrancadas de suas conexões de origem, arrancadas, por exemplo, das ordens de comunidades naturais através de comércio pirata. No mercado elas encontram outras mercadorias de presença semelhantemente casual. Tal casualidade não precisa predominar, mas ela pode predominar. Se e até que ponto ela predomina, depende ao fim das contas do grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. Pressupondo que seus possuidores têm livre domínio sobre as mercadorias, e que reconhecem tal domínio reciprocamente, a forma homologa da equação da troca oferece, com sua completa abstração, os termos de uma "língua das mercadorias", como diz Marx, a qual com a devida ampliação do mercado possibilita uma conexão existencial de homens como de puros possessores de mercadorias, mesmo que todas as ordens distintas entre os homens sejam dilaceradas - e pela ampliação do mercado de fato devem ser dilaceradas. A rede que produz as formas da abstração da troca (ou seja a lógica da "forma valor") no mercado das mercadorias, possui a necessária funcionalidade,(24) para forçar a conexão formal interdependente do mercado sobre a base da existência das mercadorias, portanto da produção e consumo de mercadorias. Este ordenamento e seu caráter de necessidade econômica não têm, em última instância, nada mais solto como raiz senão a unidade de ser das coisas, que pelas consequências da trocabilidade das mercadorias força os homens, a encaixar-se na unidade do mesmo mundo sem compreender-se uns aos outros. Seu existir não se regula em absoluto senão de acordo com as leis de uma sociedade.
Foi exposto acima, que as formas da abstração da troca se prendem ao ato do processo de troca e possuem seu caráter regulatório. Como é que se determina agora este mesmo processo de troca, portanto o ato da entrega de posse das mercadorias entre seus agentes privados? Ou então, para premitir uma outra questão: como se determinam os próprios objetos da troca no ato da entrega da posse? Eles não podem ser expostos a nenhuma mudança física, portanto têm a determinação de absoluta constância material, é bem verdade que como postulado - respectivamente como ficção, mas ficção socialmente necessária. No ato da entrega da posse eles não são objetos de atos de uso, e isso não se constitui uma simples negação, mas como negação posta afirmativamente. Ou seja, como objetos de troca, para dizê-lo com maior precisão, eles não somente não têm nenhuma qualidade de uso, mas são muito mais positivamente desprovidos de qualidade. Por outro lado, eles só são trocados, para ser utilizados após a conclusão dos atos da troca. Suas qualidades como objetos de uso aderem portanto essencialmente a eles, enquanto eles são trocados em constância material, mas desprovida de qualidade. A característica pertinaz sem qualidade é aquilo, que a realidade lhes confere no mercado, enquanto suas propriedades de uso são - é verdade - uma realidade verificável, mas aqui são objeto somente de uma atividade pensada. Nesta natureza dupla das mercadorias não é difícil reconhecer de novo a relação de substância e acidência. Mesmo se, por assim dizer, em um determinado estágio de desenvolvimento, ambas as determinações se defrontam corporalmente pela "duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro", a mercadoria permanece com sua natureza dupla; somente que sua substancialidade sem qualidades e persistente espelha-se então na materialidade não descritiva do dinheiro, fora dela. Como na natureza não ocorre matéria não descritiva, o ouro, a prata, o cobre ou simplesmente o papel devem assumir por procuração.
A fim de que a substância não descritiva possa abranger cada objeto mercadoria não partido em seu espaço total e através do tempo, a matéria dinheiro, em evidente contraste a isso, deve poder ser dividida de acordo com as distintas grandezas de valor, portanto deve ser divisível à vontade. Atomicidade da matéria dinheiro por um lado, e indivisibilidade da mesma dentro de cada objeto mercadoria como unidade trocada de fato por outro lado, oferecem uma das contradições, com as quais a função social do dinheiro por sua determinação como forma dá azo ao pensamento de criar aquilo que Hegel designa como "metafísico".
O movimento descreve o ato de executar a troca de mercadorias, no qual a entrega de posse pactuada chega à execução. O ato de executar limita-se essencialmente à mudança substancialmente social das mercadorias em sua relação de posse em uma separação espaço-temporal inequívoca das mudanças de sua existência física. É bem verdade que esta separação não é nada mais que um postulado, mas a descrição implicada do movimento tem exatamente esse postulado como norma. Correspondentemente a descrição apresenta pura movimentação em tempo e espaço (como contínuos vazios) de substâncias abstratas, as quais por isso não são passíveis de sofrer nenhuma mudança material e nenhuma outra diferenciação a não ser quantitativa. Como a execução da entrega de posse é a finalidade, à qual servem a separação no tempo e no espaço das ações da troca e do uso, neste esquema abstrato do puro movimento encerra-se toda a abstração da troca. As outras partes e fases da abstração analisadas acima estão em sua base. Pela eliminação de qualquer ação de uso também tempo e espaço tornam-se eles mesmos abstratos. Eles perdem, tal como as mercadorias em sua determinação como "Substâncias", qualquer indício de uma determinada localidade à diferença de outra, qualquer distinguibilidade de um ponto no tempo perante outro. Eles se tornam não-históricos, portanto determinações historicamente atemporais de tempo totalmente abstrato e de espaço totalmente abstrato. A mesma abstratificação atinge o próprio processo de movimentação. Esse torna-se o mínimo daquilo, que de todo representa ainda um processo material, sobretudo ainda um acontecimento determinável no espaço e no tempo. Todos os outros processos e acontecimentos devem, ao fim ao cabo, deixar-se reconduzir de uma ou outra forma a este puro esquema de movimentação, como formas de movimento "compostas", e todos os processos se medem correspondentemente como puros processos materiais no tempo e no espaço.(25)
As mercadorias encontram-se durante todo o decurso de sua entrega de posse em sua forma de trocabilidade e em determinação quantitativa imutada. Elas devem manter inalterada sua grandeza quantitativa determinada, seu valor de troca. Esta condição empresta ao tempo e ao espaço, no qual elas se movem, sua própria continuidade e uniformidade. O movimento pode mudar e sofrer interrupções, mas o espaço e o tempo devem manter sua conexão uniforme e ininterrupta, pois sem isso se perderia o controle sobre a grandeza imutada do valor. Por outro lado, a identidade existencial das mercadorias é, na abstração de sua forma de trocabilidade, uma determinação relacional, de origem inter-humana, na qual, em cada ponto dado do tempo e em cada lugar dado do movimento, existência e grandeza do valor das mercadorias podem ser estabelecidas, mantidas e verificadas em relação com seu equivalente e na exclusão recíproca de propriedade de seus possuidores. Com relação a este caráter socialmente relacional de sua forma de trocabilidade e da determinação do valor o movimento das mercadorias no processo de troca decompõe-se tanto em momentos discretos, quanto ele por outro lado tem que cumprir a condição de continuidade. Esta contraditoriedade surge da origem social da abstração real (respectivamente, ao contrário, a reificação com respeito à relação social). Ela encontrou nos antigos expressão nos paradoxos de Zeno; e nos tempos modernos assumiu a forma da análise do movimento pelo cálculo.(26)
A abstração da troca não é a fonte do conceito de causalidade: esse remonta a fases muito mais antigas. Mas bem parece ser ela a raiz daquela equação entre causa e efeito, que identifica a "causalidade estrita". A causalidade estrita é, conforme nossa concepção, a forma na qual a alteração da natureza aparece em objetos, que se encontram em troca no mercado sob o postulado da não-alteração. Perante alterações do lado humano este postulado pode ser imposto com a autoridade da polícia do mercado. No que diz respeito a transformações da natureza, já não é mais que uma ficção, a qual não exclui a realidade das transformações, mas as submete a uma forma conceptual determinada. É a forma da equação precisa de causa e efeito, formulável matematicamente: destarte o fenômeno causal insere-se, antes e depois de seu decurso, no postulado da negação da mudança, se ele se deixar isolar como evento especificamente delimitado. A negação da transformação seria portanto o postulado lógico, do qual a relação equacional entre causa e efeito obtém sua necessidade conceptual. Aqui torna-se visível a raiz de uma nova concepção de natureza e da transformação natural fortemente diferenciada do modo de pensar mágico e mitológico. É o conceito de fenômenos, que não somente acontecem puramente da natureza, sem qualquer intervenção humana, mas correm contra todos os dispositivos e contra o postulado social da imutabilidade das mercadorias no mercado. Neles, a natureza trabalha como uma esfera claramente separada da esfera humana, como uma potência que está fora de toda comunidade com os homens, a potência da natureza como mundo puramente objectivo. A ela se refere o conceito da causalidade estrita como a uma relação de causa e efeito que se encontra no objeto. Este conceito de natureza é inconfundivelmente distinto da experiência da natureza do homem no trabalho, na qual, como diz Marx, o próprio homem opera sobre a força da natureza. Como agente da relação de mercado, o homem não é menos separado da natureza que a própria objetividade das mercadorias.
O fato que no conceito de causalidade e em sua forma estrita podem-se encontrar tão poucos até mínimos sinais de uma tal origem social, como aliás em qualquer outra "categoria da razão pura", e que neles pelo contrário o pensamento de uma tal origem aparece como coisa impossível, isso não constitui nenhuma objecção contra as deduções aqui efectuadas. Ainda evidenciar-se-á que esta cegueira genética das categorias do entendimento encontra sua fundamentação em sua origem na reflexão da abstração da troca. A própria abstração da troca tem em toda sua marcha um conteúdo formal rigorosamente atemporal, não compatível com a idéia de uma origem. De características de determinação histórica e geográfica elas tornam-se tais que admitem somente determinação matemática.
A causalidade (mais claramente: sua determinação formal como causalidade estrita) assume um lugar de excepção entre as categorias aqui consideradas. Ela não é parte da abstração da troca, mas uma consequência, um corolário seu. A ação da troca não admite nenhuma transformação material dos objetos de troca, quer ela seja julgada conforme causalidade adequada, quer não. A causalidade estrita não desempenha nenhuma função socialmente sintética. Só para evitar que se censurasse sua omissão entre as categorias da "razão pura", foi ela assumida nesta consideração. De fato, também na ciência matemática da natureza a idéia da causa nunca ocorre imediatamente para o uso, e sim somente através do rodeio e por meio da verificação experimental de hipóteses de movimento. O puro esquema de movimento é a forma de abstração propriamente portadora, gerada através da troca de mercadorias.
Sintetizo toda a parte formal da troca de mercadorias sob a expressão de segunda natureza, a qual deve ser entendida como uma realidade puramente social, abstrata e funcional em contraste com a natureza primeira ou primária, na qual nos encontramos no mesmo terreno com os animais. Nas formas de expressão da segunda natureza como dinheiro, o especificamente humano ganha em nós sua primeira manifestação objectiva, separada e objectivamente real na história. Ela realiza-se pela necessidade de uma socialização no desligamento de todas as formas de atividade do intercâmbio material entre homem e natureza. Estas formas de intercâmbio são elas mesmas parte da primeira natureza. Sobre a base da produção de mercadorias - independentemente de se forem consideradas como atos de produção, uso ou reprodução - elas são todas referidas ao âmbito privado dos possuidores de mercadorias, e os inúmeros campos privados circulam só nas formas da troca de mercadorias umas com as outras por motivos, que no conjunto se enraízam nas esferas privadas. Só o negócio é, como mencionamos acima, o aspecto social da troca, enquanto a consciência dos negociantes é privada e cega perante o caráter sócio-sintético de seu negócio. A consciência está repleta daquilo de que o negócio abstrai, e só em virtude de abstratividade sem excepção dos atos de troca de toda empiria, constitui-se o nexo da sociedade inconsciente como um nexo da segunda natureza. O trabalho entra em seu nexo somente traduzido em seu caráter formal, só como abstratamente "humano", porque a segunda natureza é de origem humana, distinguindo-se na natureza, em contraposição a ela e como fundamento da autoalienação humana, porque totalmente (vazada) nas formas da apropriação privada dos produtos do trabalho, em separação do trabalho que os criou.
Sob a expressão da "segunda natureza" eu reuno ambas as coisas: sua realidade espaço-temporal sócio-sintética e a forma ideal de uma potência cognitiva por conceitos abstratos. Pois a determinidade formal da segunda natureza é só uma e pode ser só uma. Mas é exatamente sua duplicidade e a conexão de ambas as partes na unidade desta determinidade formal. Mas para nos aproximar da transposição ou transformação da abstração real na abstração intelectual e em suas dificuldades, queremos primeiro assegurar-nos do fato de sua identidade formal essencial; dito com maior precisão, seja concedido ao leitor de se convencer a si mesmo dessa identidade formal, no exemplo de um dos elementos formais da abstração real contida no dinheiro amoedado. Ao mesmo tempo, façamos apelo a um leitor, que não possui nenhuma preparação filosófica, mas contudo está pronto a se deslocar para aquela situação histórica, que pode ter surgido nos tempos primitivos da cunhagem grega de moedas no Iônio, onde pela primeira vez o pensamento filosófico tomou forma. Naturalmente não se partiu para este nascimento da filosofia sem poderoso esforço mental, na base do qual deve ter-se encontrado uma forte motivação, mesmo se não constritiva: hoje isso não se deixa mais conhecer, mas em todo caso, adivinhar. Tenho por certo, que o dinheiro, precisamente em forma de moeda, nessa transformação jogou o papel mediador imprescindível, porque somente no dinheiro amoedado a abstração real pode aparecer. Por outro lado, é certo que para o uso puramente prático do dinheiro conforme com seu uso imediato, como meio de troca e de pagamento na troca simples de mercadorias, não se precisa de uma reflexão conceptual sobre sua natureza abstrata. Qual outra motivação pode ter dado azo à formação de conceito, não deve nos preocupar por enquanto. De qualquer forma que ela possa ter sido, nós supomos a motivação como dada, para primeiro determinar uma vez a natureza do ato da consciência, no qual a transposição da abstração real em forma conceptual pode ter-se consumado. Somente quando a natureza do processo mesmo tornou-se aproximadamente clara, pode-se falar em motivos, pelos quais se deveria pesquisar; só depois se pode julgar também qual significação se deve atribuir à pesquisa dos motivos para a tese que está aqui em debate, ou seja a tese de que a formação de conceitos da filosofia grega - mais em geral: a formação de conceitos de todo pensamento racional - tem sua raiz formal e histórica na abstração real da síntese social por meio da troca de mercadorias, ou seja na segunda natureza.
Devo aqui apelar ao leitor, primeiro para que esqueça todos os eventuais conhecimentos prévios da filosofia grega ou posterior; em segundo lugar, que aceite a suposição de uma motivação dada suficiente, para o esforço mental que lhe é exigido; e, terceiro, para que se contente com a escolha do exemplo, que decidi aduzir unicamente por razões de simplicidade para a finalidade de demonstração em questão. Ele deve responder à questão: como se pode descrever a matéria da qual é feito o dinheiro amoedado, mais precisamente: da qual ele, a rigor, deveria ser feito. Pois o dinheiro no curso de sua história foi feito às vezes de ouro, outras de prata ou de cobre ou então de alguma liga metálica e hoje ainda consiste de uma promessa em papel de uma quantidade garantida de ouro: ele pode ser considerado somente como objeto de arbitrariedade e de expediente oportuno. A multiplicidade das matérias indica já por si, que nenhuma delas pode valer como aquela essencialmente apropriada para o dinheiro. A verdade é que nenhum item do "catálogo da população das mercadorias [...], que a seu tempo tenham jogado o papel de equivalente das mercadorias" (Marx, O Capital, L.I, cap.1), faz justiça àquela determinação, que pertence especificamente à matéria monetária: ou seja, à determinação de que ela não pode ser sujeita a nenhuma alteração física no tempo. Este tempo abrange toda a duração, na qual a moeda em questão circula, inclusivamente o tempo em que ela pode ser subtraída à circulação para formar um tesouro. De fato, a inconveniência do material monetário respectivo é reconhecida de toda forma pelo próprio instituto emissor na promessa de substituir grátis cada peça monetária gasta por seu curso normal, substituí-la por uma outra de pleno peso. Portanto, um material do qual, a rigor, se deveria fazer o dinheiro, não pode existir na natureza. Ele não pertence à natureza primeira ou original; ele carece portanto também de qualquer possível perceptibilidade. Portanto, ele dever-se-ia classificar como mero conceito, puro conceito não empírico. Mas daí concluir que o material monetário existe só no pensamento, é tão absurdo, quanto procurar um modelo deste material na natureza. Dinheiro mental não pode existir. Comprar alguma coisa por uma peça de moeda, que não possui nenhuma realidade material, isso nem mesmo um Till Eulenspiegel conseguiria. Sua realidade deve ser igual àquela das coisas-mercadorias, que ele deve comprar, portanto deve possuir realidade concreta, espaço-temporal, de maneira que uma peça de dinheiro que eu possua não possa se encontrar ao mesmo tempo nas mãos de um outro. Mas a realidade material de meu dinheiro pode ser tão pouco realidade exclusiva para mim, seu possuidor, portanto uma realidade à la Berkeley ou Hume ou de qualquer idealista subjectivo. Se eu faço uso de meu dinheiro para comprar de qualquer outro uma mercadoria, então esse dinheiro deve possuir para ele exatamente a mesma realidade que para mim, e assim mesmo não só uma realidade para nós dois, mas da mesma maneira que para nós, assim ipso facto em geral para todos os que participam na circulação social desse dinheiro, portanto uma realidade com o grau máximo pensável de objetividade. E contudo não se pode descobrir em todo o mundo perceptível nenhuma representação empírica desse material, indubitável em sua realidade, material do qual propriamente uma moeda deveria ser feita. Os materiais, com os quais estamos satisfeitos na praxis da cunhagem, e que se tornaram satisfatórios nas finalidades pragmáticas da economia social, são - de acordo com o caráter formal da função do dinheiro - pura ganga da realidade dos valores de uso, dos quais exatamente a natureza desta forma faz abstração. Mas a natureza desta forma (ou a objetividade formal do valor das mercadorias), como sublinha Marx, não encontra nunca no mundo das mercadorias sua própria representação, pois ela pode espelhar-se somente no valor de uso da outra mercadoria, com a qual ela deve equivaler na troca. Isso é totalmente suficiente para as exigências da troca de mercadorias como campo de ação prática dos homens, pois evidentemente não pode existir nenhum objeto de ação prática que não seja feito de matéria natural real. Mas isso não remove ainda a distinção daquela objetividade, igualmente tão real, mas fisicamente imutável, para a qual atua o dinheiro como titular de função e na qual "não entre nenhum átomo de matéria natural". Para esta matéria imaterial, precisamente não-empírica, da qual o dinheiro amoedado virtualmente deveria ser feito, pode-se manifestamente dar uma representação genuína só fora ou além do campo conjunto da matéria natural e da empiria da percepção; em outras palavras: só na forma do conceito não empírico ou "puro". E isso é o caso não somente da restituição idêntica da matéria-moeda, mas também da representação adequada de todos os componentes da abstração real, representação que forma a parte essencial daquilo que Marx denomina "objetividade-valor" ("Wertgegenständlichkeit").
Deveria ter-se tornado evidente, que não se deve distinguir só uma, mas duas matérias do dinheiro: aquela de primeiro plano de uma função econômica, aquela única que todo mundo lembrará; e a outra de segundo plano do dinheiro como potencial portador da função da síntese da sociedade mercantil, por causa da qual bem se denomina o dinheiro como nexus rerum da sociedade. Ambas as naturezas do dinheiro distinguem-se por sua oposta materialidade. A função econômica exige uma substância material feita de elementos preciosos como ouro e prata, pelos quais cabem às mercadorias seus preços comparativos. Pelo contrário, a função sócio-sintética do dinheiro salienta-se por abstrata imaterialidade de seu substrato, porque a substancialidade do ato da troca para o tempo da transação de cada praxis de uso das mercadorias deve ser separada intransigentemente, para tornar possível a troca. Esta contraditoriedade flagrante na materialidade das duas naturezas do dinheiro na emissão do dinheiro como moeda leva - eu penso aqui só nas épocas do clássico comportamento do dinheiro - leva a uma contraditoriedade francamente palpável. A autoridade emitente determina o metal econômico do dinheiro no quantum de peso para o valor exigido da moeda e vincula isso com uma declaração de garantia, de que as moedas emitidas durante o tempo de seu curso seriam substituídas grátis por outras de pleno valor. O que significa isso? Isso significa, que o dinheiro devidamente deveria constar de um material, que não seja desgastável, mas de consistência independente do tempo. Um tal material, porém, não existe na natureza toda. Em comparação com materiais naturais ele se distingue por uma pura imaterialidade abstrata. Esta imaterialidade não é, contudo, ideal: ela possui o caráter das ações humanas espaço-temporais, que bilhões de vezes efectuam a circulação de mercadorias e de dinheiro da sociedade. Mas qual é o passo, que leva da abstração real imaterial até a abstração intelectual?
Deve-se notar com qual inadvertência se aceita a contradição entre as duas naturezas contraditórias do dinheiro na emissão de moedas ou de notas, e se aceita a praxe que daí resulta como solução bem-vinda.(27)
Semelhante desinteresse não se pode certamente supor por parte dos gregos nesta fase fundamental e inicial do dinheiro. Podemos, ao contrário, especular com grande verossimilitude, que os gregos do sétimo e sexto séculos consideraram esta rara instituição feita pelos homens e apesar disso tão obscura e estranha, na Iônia e em algumas cidades marítimas da Grécia e do Sul da Itália. Não posso duvidar, que não escapou à atenção deles nem a substancialidade imaterial da natureza sintética do dinheiro. Sobretudo parece crível que Pitágoras em Taranto e Parmênides em Elea (resp. em Velia) emitiram eles mesmos dinheiro em moedas. Tão pouco esta imaterialidade mesma é ideal, contudo uma atenção sobre ela só é possível no pensamento e em sua determinação precisa só na forma do pensar conceptual. Isso vale naturalmente não somente para esta imaterialidade em sua infinitude geral temporal. Estende-se também aos elementos de conteúdo, que ela traz consigo com a fisicalidade do ato da troca.
Esta atividade abstrata de pensamento não dispõe certamente de um saber sobre seu parentesco com o fenômeno comercial do dinheiro. O primeiro a encontrar para esse elemento da abstração real um conceito apropriado (contudo, sem a mínima suspeita de para o que seu conceito respondia e o que o teria tornado necessário para ele) foi Parménides com seu conceito ontológico do Ser. Ele diz que a coisa real não é sua aparição sensível, mas é só e unicamente o Uno, ou seja: expresso em sua língua, t o w n. Dele não há nada a afirmar, a não ser que ele é completo em si, enche o espaço e o tempo complemente, é inalterável, indivisível e imóvel; e que ele não pode passar nem também ter tido origem. O pensamento desse conceito é uma evidente unilateralização e uma absolutização ontológica da natureza do dinheiro nele identificada. Com isso são excluídas outras propriedades igualmente essenciais da mesma materialidade, as quais mais tarde outros pensadores tiveram que fazer valer. Sobre isso teremos ainda que falar.
O que precisa ser sublinhado aqui é que nem Parménides nem qualquer outro dos fundadores da filosofia grega clássica atribui a si mesmo as abstrações que ela expressa em conceitos, no sentido de que ela teria sido construída subindo da percepção múltipla dada até graus mais elevados de generalidade. Nenhum deles legitima seus conceitos fundamentais por uma representação de um tal processo constitutivo. As abstrações que servem de base aos conceitos são totalmente de outro molde, e eles encontram-se lá prontos sem qualquer dedução. Eles tiveram lugar alhures e por caminhos distintos daquele do pensamento. Assim, por exemplo, Parménides descreve, no Proêmio alegórico que ele antepõe para os leitores, como ele, alcançando no vagão da filha de Helios a morada de Dike, a deusa do Direito, para lá da articulação de dia e noite tinha alcançado o conceito de único Real, e precisamente com a admonição explícita: "Só com a razão deves tu ponderar este ensinamento muitas vezes provado, que eu irei te dizer."(28) Sem que o conceito do t o w n , portanto ser uma obra de seu pensamento, ele é igualmente ponto de partida de um pensamento fundamentado em conclusões da razão. O fundamento é o talento do pensamento conceptual com a dialética da verdade e não verdade segundo critérios conceituais de necessidade interna lógica ou de contraditoriedade. Parménides argumenta: "O pensamento e aquilo sobre o qual é o pensamento, são o mesmo. Pois tu não encontras o Pensar sem o Ser, no qual ele se expressa; pois nada é e nada será fora do pensamento." "Este é o pensamento principal", acrescenta Hegel. De fato, Hegel encontra em Parménides a fundamentação de seu próprio ontologismo conceptual.
A análise acima resultou em que a estrutura social da troca de mercadorias repousa sobre uma abstração não empírica do ato da troca e mostra uma igualdade formal (Gleichförmigkeit) com a abstração dos conceitos metodológicos básicos da ciência exacta da natureza. Vale, portanto, o seguinte: a abstração da troca não é pensamento, mas ela possui a forma do pensamento em categorias puras da razão. Com isso está claro que essas categorias, que conforme meu entendimento resultam da abstração da troca (mais precisamente: da fisicalidade da ação da troca), mostram desvios daquelas, que Kant deduz das formas do juízo. A concepção da razão pura que eu viso encontra-se mais próxima do que a kantiana àquela, que se manipula na ciência exacta da natureza da tradição mecânica clássica. Disso encontro um testemunho notável em Ernst Cassirer. Cito:
"O conceito exato de natureza enraíza-se na idéia do mecanismo e se pode primeiramente alcançar com base nessa idéia. A explicação da natureza pode tentar em seu desenvolvimento ulterior libertar-se deste primeiro esquema e colocar um outro mais geral em seu lugar: contudo o movimento e suas leis permanecem o verdadeiro problema fundamental, no qual o saber alcança clareza sobre si mesmo e sua própria clareza. A realidade é complemente reconhecida tão logo ela se resolve em um sistema de movimentos ... O movimento, em sentido científico geral, não é outra coisa senão uma determinada relação, na qual entram espaço e tempo. Espaço e tempo mesmos são porém pressupostos como membros desse relacionamento fundamental não mais em suas propriedade imediatas psicológicas e "fenomênicas", mas em suas determinações matemáticas rigorosas ... Estas exigem como fundamento o espaço contínuo e homogêneo da geometria pura ... Assim também o próprio movimento é introduzido desde o começo para dentro desse círculo de um condicionamento puramente conceptual. Só aparentemente ele forma um fato direto da percepção, e o fato fundamental, que toda observação externa nos oferece ... Mas este momento sozinho não basta de maneira nenhuma para fundamentar o conceito rigoroso do movimento, de que a mecânica precisa ... Esta transformação matemática, que o físico supõe executada, forma na verdade o verdadeiro problema original." (Ernst Cassirer, Substanzbegriff und Funktionsbegriff, Berlin, 1910, p.155-158; mais adiante terei oportunidade para ulteriores citações dessa obra.)
A determinação conceptual de espaço, tempo e movimento é a distinção essencial entre a concepção kantiana da razão pura e a minha. Em princípio esta distinção é evidente a partir de minha recondução da abstração mental às condições estruturais que estão na base da socialização, portanto ao ser social em lugar das fantasmagorias idealistas do Sujeito transcendental ou do Espírito. Nós portanto recorremos à problemática fundamental da socialização. Um nexo social de proprietários privados nunca se deixaria fundamentar sobre suas valorações de uso. Para isso os próprios indivíduos deveriam poder trocar entre si seus corpos, para evitar as incomensurabilidades de sua sensibilidade corpórea e de sua valoração pessoal. O princípio é que eu tenho certeza do sabor de uma maçã sobre minha língua, mas não posso saber que sabor tem uma maçã na boca de um outro. Se se tratasse de sabê-lo, a sociedade cairia em anarquia e em caos no limiar, no qual o fazer de cunho arcaico se transformou no negociar dos indivíduos que na idade do ferro se tornavam autônomos. A humanidade não teria sobrevivido a esse umbral. Uma síntese social entre os indivíduos separados só tornou-se possível pelo fato de que seu relacionamento recíproco, portanto a troca de mercadorias, resultou em um negócio, que leva através de toda a esfera das incomensurabilidades e está caracterizado por uma abstração radical: a própria ação da troca em sua separação do uso dos objetos respectivos durante a duração da transação. Esta ação singular só pode porém obter seu efeito social, na medida em que ela irradia todas as relações basilares para a síntese.
Uma tal irradiação é também a razão pura. Sua forma conceptual resulta no caminho pelo dinheiro diretamente da fisicalidade abstrata da ação da troca. O nascimento da razão pura ocorre, em outras palavras, não no nem através do homem, nem passo a passo, como a formação dos conceitos empíricos de nossa linguagem ordinária, mas sim em uma abstratividade formada acabada e idêntica para todos os indivíduos que se encontram nos mesmos interesses sociais. Através disso, a razão pura é uma potência desprendida da psicologia humana e produzida separadamente da subjetividade dos homens; o modo, como isso acontece, será indicado na continuação deste livro.
Este modo de conceber ajuda na explicação do milagre até então nunca decifrado da inteligência pura. A razão é um poder complemente coisificado do homem, ao qual a fisicalidade do ato da troca se transmite na forma da conversão da abstração real em abstração do pensamento, e se desloca para seu pensamento. O fenômeno paradoxal da síntese social conforme com princípios da propriedade privada se torna de certa forma tributário dos homens como instrumento da realização deles e da sobrevivência histórica da espécie. Longe, portanto, de ser o ponto brilhante da autonomia espiritual dos homens, que o idealismo nele avista, a capacidade de compreender dos homens civilizados pressupõe, conforme a concepção aqui defendida, a extensão da profundidade e da opacidade da reificação (algo que nem Marx reconheceu complemente).
Mas como é então a relação entre esta potência de compreender dada de forma latente na ação da troca, e a realidade econômica da troca de mercadorias, portanto com o valor de troca e o dinheiro, comercialmente? Será que ambos os aspectos da troca comunicam, ou são reciprocamente estranhos? O valor de troca é parte da troca de mercadorias, como a razão pura é parte da abstração da troca. Ele é o que reza seu nome - troca=valor. Ele é a propriedade característica, que compete às mercadorias pelo fato de que elas se tornam objetos de ação de troca à diferença das ações de uso. Daí a falta de clareza do valor de troca, sua generalidade social e a dimensão exclusivamente quantitativa, que lhe é própria. Sua identidade vale tanto em um ato de troca como em outro. Sua objectivação é o dinheiro. Através de sua abstratividade perante toda diferenciação de uso das mercadorias, o valor de troca coloca ambas as partes da relação de troca sem distinção iguais no que diz respeito a seus objetos, a suas ações e a ambos seus atores. Através disso o valor de troca postula a equivalência dos objetos trocados. A troca é o lugar para o ditado "o que é justo para um, é barato para o outro". A equivalência das mercadorias é sinônimo com sua trocabilidade.(29) Para determinar a proporção, na qual ambas as mercadorias que figuram na troca são reciprocamente equivalentes, o valor de troca necessita de diferenciação em relação aos distintos tipos de mercadorias. Para isso é necessária a instituição do dinheiro. No dinheiro, um determinado tipo de mercadorias, os metais preciosos, coloca-se perante todos os outros tipos de mercadorias no mercado como corporificação comum concreta e como medida de seu valor de troca. Pela "duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro" medem-se como preços das mercadorias suas relações de troca com a mercadoria dinheiro, por meio desse comum denominador. O preço das mercadorias não é mais só o valor de troca em geral, mas o valor mercantil próprio às mercadorias mesmas, que se mede conforme com seus custos de produção, mais precisamente de acordo com o tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. Graças à linguagem das mercadorias, que destarte é emprestada às mercadorias, os indivíduos podem e devem para seu sustento, enquanto se fornecem pelo mercado, comportar-se adequadamente de acordo com os princípios do balanço de sua casa e de seus empreendimentos nos negócios conforme entradas e saídas, de acordo com as exigências da sociedade sintética, sem qualquer visão por trás da superfície.
Encurtando esta exposição, torna-se evidente, que os dois aspectos da abstração da troca estão reciprocamente totalmente alheios. Não possuem nenhum conceito em comum, a definição econômica do ferro é seu preço, a física seu peso atômico. Eles são reciprocamente intraduzíveis, e nenhum dos dois aspectos permite deduzir a existência do outro.
Já foi sublinhado que a abstração da troca coloca os dois atores reciprocamente iguais. Que seja rei ou mendigo, como atores da troca não podem ser outra coisa, nada mais e nada menos, que os sujeitos de direito de suas transações. A abstratividade de sua equivalência é a raiz do conceito jurídico do direito, mesmo que a formulação dos dados do direito civil tenha podido fazer-se esperar por mais longo tempo entre os gregos que entre os romanos. Entre os gregos eles se cristalizam mais em discriminações em questões de direito civil.
Uma consequência agravante da troca de mercadorias torna-se válida com base no patriarcalismo aprofundado da sociedade em transformação. As linhagens prendem-se na separação da estrutura da troca polarizada entre a ação da troca e o uso. Os homens [machos: Männer - C.G.G.] reivindicam para si sua função como sujeitos do direito da troca e com isso o influxo determinante sobre a esfera pública e a constituição do Estado. À mulher, pelo contrário, permanece a esfera doméstica e o cuidado com o consumo e o uso das coisas no âmbito da família, a geração dos filhos e sua criação na idade tenra. Por outro lado, fica para elas também a supervisão dos escravos domésticos para os ofícios caseiros de fiar e tecer, a produção e cuidado com a vestimenta, o cultivo das plantas e a criação de animais domésticos no espaço pertencente à habitação, onde elas se encontram com o trabalho agrícola e com a responsabilidade dos homens como camponeses.
Acabo de colocar em luz a total separação interna e estraneidade dos dois aspectos da abstração da troca, o aspecto da fisicalidade da ação da troca e do panorama da natureza, bem como o aspecto do valor da mercadoria e da conexão funcional social. Deste "incomunicado" deriva a dicotomia entre natureza e sociedade, bem como aquela metodológica entre ciências da natureza e do espírito. A liquidação desta dicotomia é tanto mais necessária, enquanto Kant e Marx, que deveriam ter levado a isso, somente agravaram e endureceram a separação, - Kant, enquanto ele não levou adiante sua análise da teoria da ciência matemática da natureza até a análise da ciência real, sobretudo da economia, - Marx, enquanto ele, ao contrário, não estendeu a crítica da economia política à crítica das ciências da natureza. Assim entre esses poderosos pensadores o abismo entre ciências da natureza e ciências morais permaneceu ainda mais profundo. Através de minha derivação das categorias puras do pensamento a partir dos processos e fatos espaço-temporais, esta dicotomia desaparece. Sobre esta base deveria ser possível uma reconstrução pormenorizada da história. Por minha parte, eu viso no entanto somente o surgimento da ciência natural entre os antigos e na idade moderna.
Notas de rodapé:
(1) Para o entendimento de que a dialética não pode ser lógica, os trabalhos de Galvano della Volpe ofereceram preciosas contribuições. (retornar ao texto)
(2) "Nós conhecemos só uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser considerada em duas partes e subdividida em história da natureza e história dos homens. Ambas as partes não se devem entretanto separar do tempo..." Ideologia alemã, Feuerbach (cf. Frühschriften, ed. S.Landshut e J.P.Mayer, v.I, p.10).- O parágrafo que começa com essas frases foi riscado por Marx no Manuscrito, mas elas mantêm seu valor como expressão do pensamento marxiano. (retornar ao texto)
(3) Grifos nossos [N.d.T.] (retornar ao texto)
(4) Ler o Capital de L.Althusser, Jacques Rancière, Pierre Macherey, Étienne Balibar e Roger Establet, 2 vv., François Maspéro, Paris, 1965, 1967. - Eu poderia concordar com a intenção desse empreendimento, se a estrutura fundamental, para a qual se dirige a pesquisa, fosse reconhecida em seu correto hábito da abstração, na qual somente, porém, ela pode exercer seu poder estrutural. Mas exatamente o discurso marxiano da "abstração mercadoria" é entendido metaforicamente, enquanto deve ser tomado à letra. Assim Althusser acha necessário sublinhar "que la production de la connaissance ... constitue un processus qui se passe tout entier dans la pensée". (vol.I, p.51). O nexo formal que a estrutura buscada deveria constituir aqui, ao contrário, é cindido e dilacerado. O tema geral não proclamado do Capital e de sua fundamentação na análise da mercadoria é a abstração real ali descoberta. Seu alcance estende-se para além da pura economia, chegando a afetar a filosofia tradicional propriamente muito mais diretamente que a economia política. Somente no conhecimento desse alcance é que se pode conceber a questão materialista da forma e da estrutura, inclusive no que se refere à questão da verdade e das normas. Se esta questão tivesse sido colocada por Marx com esta abrangência, então ele teria tido que reconhecer, que sua concepção da abstração mercadoria no Capital ou não se sustenta (sendo uma pura metáfora e uma imagem enganosa da abstração) ou então não é completa. (retornar ao texto)
(5) Jürgen Habermas, Erkenntnis und Interesse. Frankfurt/M, Surkamp, 1968. Sobretudo I Parte, por ex. p.58-59, e o cap.3: "A idéia de uma teoria do conhecimento como teoria da sociedade". (retornar ao texto)
(6) Cf. a "Crítica do Programa de Gotha" e a Ideologia Alemã. (retornar ao texto)
(7) Grifos nossos [N.d.T.] (retornar ao texto)
(8) "No começo desta dedução esta filosofia é puro idealismo" (G.W.F. Hegel, Differenz des Fichte'schen und Schelling'schen Systems der Philosophie, Jena, 1801, p.1). (retornar ao texto)
(9) Cf. "Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?" ("Resposta à questão: O que é iluminismo?") de 1784. (retornar ao texto)
(10) O Capital, MEW (Dietz, v.23-25), I vol., p.102. - Poderia parecer, com isso, como se o conceito normativo da propriedade (em contraposição à posse) fosse apriori ideal da abstração da troca, em contradição a nosso enfoque materialista sobre ele. Na realidade, porém, a relação de sucessão é a contrária. O conceito de propriedade é ele mesmo resultado da abstração da troca. A compulsão a deixar manipulações de uso com objetos que estão prontos para a troca e na troca, é um simples dado da experiência: se ele for ignorado, a relação de troca cessa. Mas do fato de que a experiêcia contem uma negação - daí deriva-se uma proibição de uso, que se estende a todas as pessoas envolvidas e ganha carater normativo geral para todos os casos idênticos, mesmo se a troca permanecer um caso isolado individual. É primeiro pela subsunção sob a troca que dos fatos da posse provêm normas de propriedade. Esta sequência da troca prende-se a sua natureza como relação humana. Onde ela começou, ou seja lá "onde da comunidades acabam, no ponto de seu contato com comunidades estranhas" (MEW, 23, p.102), lá tornou-se necessário que elas se relacionassem entre si, não com a natureza, ou seja não se matassem ou roubassem, como elas fariam com animais, e sim que falem umas com as outras - por palavras ou sinais -, portanto se reconheçam reciprocamente como homens. Também isso é uma questão de fato, mas uma tal que dela resultam normas, porque ela rompe a relação natural e coloca em seu lugar uma relação social entre grupos, que se tinham já tornado por sua parte formações sociais. (O curso do último processo encontra-se exposto na convincente reconstrução de George Thompson, no cap.1 de seu livro Die ersten Philosophen - Os primeiros filósofos - 1961). Marx expressa exatamente o mesmo, quando diz: "Esta relação de direito, cuja forma é o contrato, desenvolvido legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se espelha a relação econômica [a relação fatual de posse - S.-R.]. O conteudo desta relação de direito ou de vontade é dado pela própria relação econômica." (MEW, 23, p.99) (retornar ao texto)
(11) A expressão é extraida da figura lógica da oposição privativo-contraditória. (retornar ao texto)
(12) "... to the effect that all my data, in so far as they are private to me. ...", Bertrand Russell, Human Knowledge, 1966, p.191, no capítulo "Solipsismo". O que em Russell é "dado", em Kant é "Apercepção". (retornar ao texto)
(13) Este solipsismo prático não precisa coincidir com o interesse pessoal. Alguém que proceda em substituição ou a proveito de outrem, deve proceder exatamente de acordo com os mesmos princípios. Se não o fizer, então a relação na qual ele opera não seria mais uma troca de mercadorias, e sim transformar-se-ia em outras relações. Os princípios de que tratamos aqui pertencem à forma de relacionamento da troca mercantil, não à psicologia das pessoas que nela operam. Muito mais, ao contrário, a forma de relacionamento da troca imprime nos mecanismos psicológicos dos homens, cuja vida ela domina, mecanismos tais que lhes parecem depois sua natureza humana inata. Correspondentemente a isso, muito frequentemente os dominados agem em lugar ou a proveito dos dominantes. Mas eles pensam de agir no próprio interesse, embora obedeçam puramente às leis da relação de troca. Não há lugar aqui para nos ocuparmos especificamente com a superestrutura do capitalismo tardio. Mas seria certamente fecundo para uma psicologia social materialista ampliar no futuro as teorias de W. Reich, Fromm, Marcuse, etc. com a conexão fundamental entre abstração da troca e abstração do pensamento, para fortalecer sua base materialista.[...] (retornar ao texto)
(14) De fato, no grego, por exemplo, a palavra "ousia" tem o sentido de existência e de propriedade. (retornar ao texto)
(15) A determinação da unidade do mundo pela interdependência de todas as partes é um conceito teórico: pode portanto jogar o papel no qual nós temos a ver com o "mundo" sómente como campo do ser e lugar de negócios, teatro dos negócios da troca. (retornar ao texto)
(16) "Portanto se duas mercadorias distintas, por exemplo ouro e prata, servirem simultaneamente como medidas do valor, então todas as mercadorias possuem duas expressões de preços, preços em ouro e preços em prata, que correm tranquilamente uns ao lado dos outros, enquanto a relação de valor da prata ao ouro permanecer invariada, p.ex. 1:15. Cada mudança dessa relação de valor estorva porém a relação dos preços em ouro e dos preços em prata das mercadorias, e indica assim na prática, que a duplicação da medida do valor contradiz a sua própria função."(MARX., K. O capital. L. I, cap.3. MEW, 23, p.111). (retornar ao texto)
(17) "Em contradição direta à rude objetividade sensível dos corpos das mercadorias, nenhum átomo de matéria natural entre em sua objetivização."(Ibid., p.62) Mais adiante: "O movimento mediador desaparece em seu próprio resultado e não deixa traço nenhum atrás... Daí a magia do dinheiro. A atitude puramente atomística dos homens em seu processo social de produção, e portanto a feição material de suas relações de produção, independente de seus controles e de seu agir individual consciente, aparecem primeiro no fato que os produtos de seu trabalho em geral assumem a forma de mercadorias. O enigma do fetiche do dinheiro tornou-se portanto somente o enigma das mercadorias, que se torna visível e deslumbra os olhos."(Ibid., p.107-108). (retornar ao texto)
(18) Ibid., p.56. (retornar ao texto)
(19) [No original, não se repete o termo "equivalência". No primeiro caso é "Äquivalenz", no segundo "Gleichwertigkeit".] (N.d.T.) (retornar ao texto)
(20) "Primeiramente dentro de sua troca os produtos do trabalho obtêm uma objetividade de valor socialmentte igual, separada de sua objetividade de uso sensivelmente distinta."(Ibid., p.87) (retornar ao texto)
(21) Ibid., p.57, e também p.87. (retornar ao texto)
(22) Marx, em carta a Kugelmann de 11 de junho de 1868 (grifo de Marx). (retornar ao texto)
(23) Cf. O capital, III, p.798. (retornar ao texto)
(24) Com tal efeito a distância da línguagem das mercadorias poder-se-ia falar muito bem de uma socialização funcional. (retornar ao texto)
(25) "O movimento é o modo de estar lá da matéria. Nunca e nenhures houve matéria sem movimento, nem pode haver. Movimento no universo, movimento mecânico de pequenas massas sobre os corpos celestes individuais, oscilações moleculares como calor ou como correntes elétrica ou magnética, cisão ou composição química, vida orgânica - cada átomo de matéria do mundo encontra-se em cada momento dado numa ou outra das outras formas de movimentação ou em várias simultâneas."(Friedrich Engels, Anti-Dühring, Berlin, Dietz Verlag, p.70)
"A teoria de que o mundo físico consiste só de matéria em movimento foi a base das teorias aceitas do som, calor, luz, e eletricidade."(Bertrand Russell, A history of Western philosophy, London, 1946, p.630)
É algo notável, que ainda Galileu considera o moto abstrato igual a um conceito puramente matemático. Toda a tradicional separação entre conceitos puros e empíricos perde sua base e deixa lugar para uma outra, quando a conclusão do conhecimento teorético da natureza e seu método se tornam sujeitos à autonomia original da "razão pura". Em seu lugar entra a distinção entre as abstrações implicadas (dito em poucas palavras) no valor de troca e as formas de conceitualização e representação pertencentes ao valor de uso. (retornar ao texto)
(26) A idéia de aduzir os problemas de transporte do capital comercial no século 16 e 17 como explicação da filosofia e ciência natural mecânicas, foi defendido pelo prof. Bernhard Hessen ("The social and economic roots of Newton's Principia", Amsterdam, 1931, editado como palestra), por Stephen F. Mason ("Some historical roots of the scientific revolution", Science & Society, vol.XIV, n.3, Summer 1950, e A history of the sciences, main currents..., London, 1953) e outros. Porquanto a tratação do rico material pesquisado nesses estudos seja interessante e iluminadora, eles perdem sua finalidade teorética, mas sobretudo porque permanece fora de consideração o ponto principal de conexão, ou seja que se trata do transporte e da produção de mercadorias e que porisso a análise da forma da mercadoria constitui o pressuposto para que as tarefas de explicação formuladas se possam cumprir. De fato comumente as abstrações do pensamento mecânico já são interpretadas para dentro dos problemas do transporte, para depois deduzí-las, sem dar-se conta de que o transporte como tal não contribui em nada para as formas conceituais que servem à explicação, ou então poderia ter sido evocado da mesma forma no antigo Egito ou na Mesopotâmia, tal como ao tempo de Demócrito ou de Newton. Um tal desconhecimento da natureza do problema acontece também com Henryk Großmann em sua crítica por outro lado materialmente fascinante ao trabalho de Frank Borkenhaus Transição do quadro do mundo feudal ao burguês, Estudos para a história da filosofia do período da manufatura, 1934 (H. Großmann, "As bases sociais da filosofia mecanística e a manufatura", Zeitschrift für Sozialforschung, IV, 2 [1935], p.161-229). Aqui os conceitos do pensamento mecânico serão deduzidos do tratamento prático dos mestres artesanais experimentais na invenção e produção de novos instrumentos mecânicos. De fato porém tais aparatos são compreendidos e interpretados por H. Großmann já segundo a lógica do pensamento mecânico, portanto o objeto de explicação está fundamentalmente suposto em vez de ser deduzido. A argumentação chega portanto sem querer à mesma estranha concepção, que as máquinas geram as ciências naturais, em vez de ser ao contrário. Isso é dito sem prejuízo do reconhecimento do ensaio de Großmann como um dos mais interessantes e ricos de esclarecimentos, que tenham sido escritos sobre estes temas. (retornar ao texto)
(27) Menos irrefletidos foram quando muito os autores do grande roubo postal na Inglaterra nos anos sessenta, no qual foram apanhadas notas usadas de esterlinas no valor nominal de 20 milhões destinadas ao amasso em Londres, para colocá-las de novo em circulação. Um roubo pesado de vinte milhões, que não tornou a autoridade monetária estatal mais pobre de um penny sequer. Como era governado, ao contrário, o negócio da falta de reflexão em matéria monetária na Grécia antiga e no Iônio, quando aqui ou na vizinha Lídia por volta de 630 a.C. ocorreu a primeira cunhagem? (retornar ao texto)
(28) Sigo aqui a tradução de Hegel nas Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, vo.I, Leipzig, Reclam jun., 1971, p.387ss. ("Nur mit der Vernunft mub t du diese vielgeprüfte Lehre erwägen, die ich dir sagen werde"). (retornar ao texto)
(29) O mesmo encontra-se em Marx, até mesmo sob o signo da evidência (cf. MEW, 23, p.64; O Capital, L.I, cap.1). E porque não, pois seus predecessores e contemporâneos defendiam o mesmo. Mas poucos anos depois do aparecimento de O Capital, Livro I, surgiu a teoria subjetiva do valor, a qual negava a equivalência da troca, pois a troca aqui é interpretada segundo a lógica da percepção (Wahrhandlung) (Vilfredo Pareto). Isto pode-se negar ou aceitar, mas em qualquer caso não se pode mais tratar a sinonimia mencionada como evidente. Daí meus esforços para sua fundamentação. (retornar ao texto)