A Doutrina Comunista do Casamento

David Riazanov


Capítulo VI


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São decorridos cinquenta anos mais ou menos desde o aparecimento do livro de Morgan, e trinta e cinco da primeira edição do livro de Engels. No curso desses anos, novos estudos no domínio da vida pré-histórica da humanidade aumentaram todas as espécies de complementos e retoques às concepções de Engels. Logo que a imagem da evolução histórica das diversas formas do casamento e da família envelheceu, o principio fundamental que nega a antiga concepção da origem da família, permanece inabalável. Seu quadro magistral das relações familiares, tais como se formam na época da civilização burguesa, sob a influencia da propriedade privada, ainda hoje continua incomparável.

Deve-se primeiro que tudo assinalar que Engels concebe a monogamia como a forma superior das relações sexuais, enquanto ela parte não de um sentimento animal, mas do amor sexual individual. A forma primitiva das relações sexuais, as chamadas relações "desordenadas" não existiam senão na aurora da historia humana, na época em que os homens-macacos primitivos passaram do estado animal ao estado humano.

"Bachofen, nota Engels, tem perfeitamente razão, quando afirma que a evolução que parte do que ele chama hetairismo e que termina pela monogamia, complicou-se, em grande parte, graças às mulheres. Quanto mais as relações econômicas se desenvolvem, terminando pela destruição do comunismo primitivo e pela densidade crescente da população, mais as relações antigas entre os sexos perdem o seu caráter primitivo e simples, mais essas relações deviam ser consideradas pelas,mulheres como humilhantes e penosas, mais as mulheres deviam aspirar ao direito à castidade como à uma saúde, ao casamento mais ou menos duradouro com um só homem".

Estudando a origem da monogamia entre os gregos, Engels nota:

"a monogamia não foi originaria do amor individual, com o qual ela nada tinha de comum, pois os casamentos sempre eram de interesse. A monogamia representa a forma primitiva da família que não está fundada sobre condições naturais, mas sobre condições economicas; ela é o fruto da vitoria da propriedade privada sobre a primitiva propriedade comum".

No seu aparecimento histórico, o casamento individual constitui a conquista de um sexo pelo outro; a mulher foi conquistada pelo homem. Todavia, Engels o considera como um grande fenômeno do progresso histórico. Não é senão da monogamia que nasce o maior progresso moral; o amor sexual individual moderno, desconhecido pelo mundo antigo.

Considero inútil citar a critica da família individual por Engels.

"A emancipação das mulheres é condicionada antes de mais nada, pelo fato do sexo feminino dever todo ele se dedicar ao trabalho social; por sua vez, esse fato exige que a família individual deixe de ser a célula econômica fundamental da sociedade... Avançamos para a revolução social onde as bases econômicas da monogamia existentes desaparecerão tão inevitavelmente como o seu complemento: a prostituição".

Mas se a monogamia é condicionada por razões econômicas, não desapareceria ela por si, desde que desaparecessem as razões que a originam e a sustentam? Na época em que todos os meios de produção se tornarem propriedade social, a monogamia não será substituída por uma outra forma de relações sexuais que corresponderá melhor à sociedade socialista?

"Pode-se afirmar com razão, diz Engels, que longe de desaparecer, a monogamia antes será realizada pela primeira vez. Pois na época em que os meios de produção se tornarem propriedade social, o trabalho a alugar, o proletariado, desaparecerá e por consequência, a necessidade para um certo numero de mulheres (avaliado pela estatística), de se entregarem por dinheiro será suprimida. Com o desaparecimento da prostituição, a monogamia, em lugar de desaparecer, se tornará enfim uma realidade para os homens também".

As mulheres serão libertadas então, de todos os laços que lhes são impostos pela sociedade burguesa. A tirania domestica desaparecerá. A mulher não estará mais ligada ao fogo. A educação dos filhos tornar-se-á uma obra social; a diferença entre os filhos "legítimos" e "não regularizados" desaparecerá. Mas será que precisamente essa circunstancia acabará pela restauração das antigas formas das relações sexuais que correspondem melhor à ordem social comunista?

Essa questão, Engels a estabelece da seguinte maneira:

"Este fenômeno", escreve ele, "não se tornará uma razão suficiente para o desenvolvimento gradual das relações sexuais desordenadas e à indulgência sempre crescente da opinião publica em face da honra das virgens e do pudor feminino? Não vemos, finalmente, que no mundo moderno, por contraditórias que sejam, a monogamia e a prostituição são sempre contradições inevitáveis, pólos de uma única ordem social? Poderá a prostituição desaparecer sem arrastar consigo a monogamia?"

Engels responde categoricamente: não! Já citei a sua opinião sobre o sentimento do amor individual moderno, sobre o amor sexual individual moderno: ele vê nisso "o maior progresso moral", Precisamente no desenvolvimento deste fator, que na época da evolução da monogamia não existia senão em embrião, Engels vê uma garantia contra a restauração das relações sexuais "desordenadas" ou "não ordenadas". Suas conclusões são reforçadas por uma exposição sobre a historia do amor sexual individual.

"Até o principio da Idade Média, não podia haver questão do amor sexual individual. Embora a beleza, os gostos comuns, etc., evocassem nos humanos o desejo das relações sexuais; os homens, bem como as mulheres, não eram, todavia, indiferentes à escolha dos individues com quem eles ou elas entretinham relações intimas. Mas este fenômeno está longe ainda do amor sexual moderno".

Em que se distingue, pois, o amor sexual moderno?

"1.°) Ele supõe o amor recíproco da parte do ser amado; neste sentido, a mulher é igual ao homem, enquanto que na época do Eros antigo, os amores das mulheres não eram sempre consultados; 2.°) O amor sexual conhece um tão elevado grau de intensidade e de continuidade que a separação e a não posse são para os dois seres uma grande desgraça; eles são capazes de dar tudo, inclusive a sua vida; contanto que se possam possuir um a outro, o que trazia na antiguidade vários casos de adultério. Finalmente um critério novo aparece hoje: não se pergunta mais se o ato sexual se realiza no casamento ou fora dele; constata-se somente se ele nasceu ou não do amor e do amor recíproco".

Engels faz também uma exposição sobre o amor sexual individual, da Idade Média e dos tempos modernos. Ele estuda a questão: como, sob a influencia de novas condições econômicas se modificam as condições dos casamentos; como a liberdade de escolha foi conquistada pelos dois sexos.

"A plena liberdade na consumação dos casamentos só pode ser realizada depois da abolição da produção capitalista e das relações econômicas criadas por essa ultima, pois esta abolição suprimirá todos os interesses econômicos que exercem ainda hoje uma considerável influencia na escolha dos esposos. Depois de que, somente a inclinação recíproca terá valor".

Engels repete o pensamento que Marx expunha nos seus artigos da mocidade. A evolução da humanidade se exprime pela libertação continua do homem do elemento bestial, não do poder da natureza, mas do da bestialidade. Toda historia da civilização humana é uma libertação continua do homem dos obstáculos do reino animal; ela é a humanização progressiva dessa natureza que o homem ainda tinha na aurora da historia. Um homem social coloca-se no lugar do antigo homem natural: a antiga consciência natural da tribo é cada vez mais substituída pela consciência social. À desigualdade natural, a historia humana acrescenta diferentes formas da desigualdade social. A sociedade capitalista criou todos os postulados materiais e intelectuais necessários à destruição da desigualdade social. Essa igualdade completa certamente não pode abolir as distinções naturais que existem e existirão, com efeitos da diferença fisiológica dos sexos, mas a evolução ulterior da civilização deve terminar no desaparecimento de todos os obstáculos criados pela sociedade, pela economia e politica, à sua igualdade. Lembremos as palavras de Fourier, citadas por Marx e Engels. Quando o amor sexual se liberta de todos os elementos da bestialidade e do constrangimento franco ou disfarçado, e que ele se transforma, como diz Marx, num momento de união espiritual, criado pela igualdade social perfeita do homem e da mulher, só então nascerão os fundamentos de uma forma nova superior da monogamia.

"O amor sexual, continua Engels, é exclusivo por sua própria natureza, embora essa exclusividade seja realizada hoje somente pela mulher; por esse fato, o casamento baseado sobre o amor sexual deve ser monógamo, por sua própria natureza. Já temos constatado como Bachofen tinha razão vendo na passagem do casamento de grupo ao casamento individual obra das mulheres; não é senão a evolução da bigamia à monogamia que deve ser atribuída aos homens. Esta ultima passagem se reduziu essencialmente à agravação do estado da mulher, enquanto facilitava a infidelidade do homem. Desde que desaparecerem essas considerações econômicas devido as quais as mulheres se resignavam à infidelidade dos homens (elas receavam pelo seu futuro e o dos seus filhos) a emancipação das mulheres, conquistada graças a esse fato, contribuirá antes à monogamia dos homens do que à poliandria das mulheres".


Inclusão 16/09/2011