A Doutrina Comunista do Casamento

David Riazanov


Capítulo VII


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Certos camaradas nossos tentaram referir-se a Lenine, mas não foram bem sucedidos. Não tenho a intenção de estudar aqui as idéias de Lenine sobre o casamento e a família. Posso entretanto assinalar que Lenine aderia completamente às concepções de Marx e de Engels, expostas no meu artigo. Quando em 1903, ele publicou a tradução russa da Revolução social, uma das melhores obras de Kautsky, ele julgou necessário acrescentar a esse folheto, o ultimo capitulo da segunda parte da Questão agrária, outra obra de Kautsky que ele apreciava. Tratava-se do "Futuro da habitação privada". Após Marx e Engels, Kautsky demonstra que a evolução econômica torna cada vez mais inútil a cozinha e o fogão privados e que ela abala cada vez mais a base econômica da família. Significa esse fenômeno que a própria família também desaparecerá? Não. Ela já possui um fundamento novo e superior: o indivíduo.

"Na sociedade socialista, o individualismo, isto é, a tendência para um livre desenvolvimento do indivíduo, deve adquirir incomparavelmente mais ainda o poder e a extensão que na sociedade capitalista à medida que se estender a instrução, o bem estar e o repouso... Com o individualismo alarga-se também o amor sexual individual, que não é satisfeito senão na união da vida comum com um determinado indivíduo do outro sexo... Na sociedade socialista que não conhece nem a miséria, nem a riqueza e que recalca cada vez mais a economia privada, o caráter individual da família e do casamento se manifestará em plena liberdade. Este caráter individual já serve hoje de critério moral às nossas apreciações sobre casamento e a família".

Por conseguinte, o desaparecimento da economia privada não significa em nada a abolição do casamento e da família. Com a abolição do fogão privado, a habitação privada não será abolida. A civilização moderna conhece os laços do casamento, fora da cozinha e da lavanderia. O desaparecimento da economia privada não significa mais do que a evolução da família, que de uma unidade econômica transforma-se em uma unidade puramente ética. Ela significa a realização de aspirações morais que já se manifestam nitidamente na nossa época, sob a influencia do desenvolvimento do individualismo, alimentado pelo crescimento das forças produtoras modernas.

Nossa língua não é bastante rica para que essa nova forma de monogamia seja batizada com um nome especial. É justamente para esse matrimonio individual novo que se encaminha a sociedade humana. Esse casamento baseia-se sobre o principio moral, livre dos elementos das prostituições tanto masculinas como femininas. A sociedade evolui para este ideal, libertando-se das cadeias da propriedade privada, à medida que toda espécie de bestialidade cede cada vez mais o seu poder à humanidade, à proporção que a idéia do indivíduo triunfa; não é a idéia do indivíduo, cuja desenvolvimento é comprado, na sociedade de classes, pelo preço da opressão da individualidade nas classes exploradas, mas é a idéia de um indivíduo livre e desenvolvido universalmente que não pode evoluir senão numa sociedade onde

"o livre desenvolvimento de cada um servirá de condição para o desenvolvimento de todos".

Engels observa com razão que é a mulher quem empreende a redução da poligamia. A forma superior da monogamia supõe plena liberdade de divorcio, uma pureza moral, uma honestidade perfeita, e relações entre o homem e a mulher, onde serão banidas toda mentira e hipocrisia. Essa forma firmar-se-á cada vez mais à medida que a mulher se libertar da escravidão e o homem de todos os vestígios de bestialidade; as prostituições masculinas e femininas desaparecerão à medida que imperar o respeito de si próprio e de outrem.

Nem toda cohabitação, é um casamento. O macaco é aparentado ao homem, mas o homem não deve permanecer no nível de evolução do macaco. Eu repito a idéia tão bem desenvolvida por Marx: a humanidade se liberta, deve libertar-se, e se libertará dos sentimentos de bestialidade que se desenvolvem nas capoeiras humanas. Alguns, ela não pode libertar das leis da natureza, mas ela torna humanas todas as necessidades animais; ela submete-os à inteligência. Somente os cretinos morais podem fazer alarde desse "materialismo" para os quais satisfazer a fome e o instinto sexual é a mesma coisa. O objeto da primeira necessidade é inanimado; o da outra é um ser humano capaz de gozar e sofrer.

Num certo grau do desenvolvimento fisiológico o instinto sexual é uma das principais condições do desabrochamento das forças físicas e morais. Mas é necessário que a satisfação deste instinto não constitua senão uma das relações sem as quais a vida humana não é completa; mas este fenômeno jamais deve ser considerado o principio da vida humana. Não é senão a forma mais desenvolvida do casamento individual, fundado sobre o respeito recíproco e sobre a igualdade social perfeita de dois indivíduos fisiologicamente diferentes, que, como diz Marx, "transforma o instinto natural num dos momentos da união espiritual". Para concluir, passo ao problema que é a função dessas considerações teóricas gerais e da nossa legislação da família.

Segundo a nova lei, o registro dos casamentos é efetuado no interesse do Estado e da sociedade. Da antiga lei, da qual Lenine dizia com razão quê ela era uma das leis mais radicais da Revolução de outubro, nossos inovadores mui zelosos desejaram fazer uma simples lei burguesa, declarando que o registro não é efetuado senão pelo princípio de defender o indivíduo e a propriedade. Eles faziam assim surgir a evolução do direito soviético para a nova politica econômica.

Bom militante do partido comunista, o camarada Préobrajensky sabe perfeitamente que toda discussão a esse respeito não é senão um palavreado burguês e anarquista; a sociedade não deve intervir nessas relações.

"Do ponto de vista socialista", nosso camarada Préobrajensky, "um membro da sociedade, que considera seu corpo como sua propriedade pessoal, concebe assim uma idéia absurda, pois o indivíduo não passa de um pequeno ponto isolado na evolução que uma raça executa, do passado para o futuro. Mas dez vezes mais absurda é a concepção análoga com referencia à descendência de um indivíduo".

O camarada Préobrajensky exige:

"perseguições implacáveis contra os que propagam moléstias venéreas sem refletir no crime que cometem contra os outros membros da sociedade e mesmo contra os seus camaradas de classe".

Ele admite:

"o direito imprescritível da sociedade de intervir na vida sexual com o fim de aperfeiçoar a raça pela seleção sexual artificial".

O camarada Préobrajensky deve, por conseguinte, reconhecer que tenho perfeitamente razão, quando declaro que o registro dos casamentos, combinados com a plena liberdade do divorcio, era necessário ao Estado e à sociedade. O registro representa uma forma, a mais suave, de regulamentação dos casamentos. Só esta forma dá a possibilidade de controlar as condições que a sociedade encontrando-se a caminho do socialismo, o Estado onde a classe dominante é o proletariado, estabelece aos cidadãos, no interesse do desenvolvimento da sociedade (limite de idade, saúde física e psíquica, etc.). Todas essas condições não constituem senão o mínimo das normas ditadas, segundo Préobrajensky, "pelos problemas da conservação da raça".

Vivemos hoje num período transitório, onde a sociedade evolui para uma sociedade socialista. Já realisamos as condições preliminares; o poder está nas mãos do proletariado e os principais meios de produção se encontram nas mãos da sociedade. Mas ainda não realisamos o socialismo. É uma tarefa de um grande número de anos.

A sociedade socialista, ela própria, não passa de uma primeira fase de evolução para o comunismo que é uma fase superior. Sob o regime socialista, nós nos libertaremos de uma serie de normas jurídicas e outras que ainda conservamos no período transitório. Hoje não podemos senão atenuar o efeito dessas normas, afim de que elas não prejudiquem o desenvolvimento do socialismo.

Mas na época onde o socialismo será verdadeiramente realisado, na época em que o poder do Estado será reduzido ao mínimo e onde a resistência das classes vencidas será definitivamente rompida, algumas normas, costumes e diferenças entre os homens, que teremos herdado do antigo regime, manter-se-ão ainda. A propriedade privada não se transformará mais em propriedade privada capitalista, ela não será mais um meio de exploração do homem pelo homem; mas muito tempo ainda ela será mantida, com o seu fundamento e o seu complemento: a pequena economia. Será preciso esperar muito tempo ainda até que esta desapareça, até que uma vasta rede de jardins para crianças e cozinhas coletivas liberte a mulher do seu labor, até que todas as mulheres aptas para o trabalho se tornem membros do exercito dos trabalhadores e que a jornada de trabalho seja reduzida. Somente então serão criadas as condições necessárias para a realização do comunismo. Com o desaparecimento do Estado, todo poder opressor desaparecerá também. Todo membro da sociedade será tão educado e tão consciente de seus deveres sociais, que essas obrigações serão para ele necessidades naturais. Não se terá mais necessidade de se estimular o trabalho por processos, como contratos, recompensas para aptidões superiores. Todo homem será útil à sociedade segundo suas aptidões e será recompensado segundo as suas necessidades. Toda dependência das mulheres em face dos homens, desaparecerá; a mulher deixará de ser a escrava do seu "fogão".

Nessa sociedade superior, será mantido o registro dos casamentos? Sim. Mas esse registro se tornará um dever tão natural perante a sociedade como será o trabalho. O comunismo é inconcebível sem o registro de todas as forças produtoras e de todas as necessidades da sociedade; e o homem é a força produtora mais preciosa também na sociedade comunista.

Na resolução elaborada por Marx e adotada pelo Congresso da Primeira Internacional, encontramos a seguinte passagem:

"A parte mais consciente da classe operária compreende perfeitamente que o futuro da classe, e por conseguinte o da humanidade, depende da nova geração. Esses operários compreendem que as crianças e os adolescentes devem ser libertados da influencia perniciosa do atual sistema, o que não pode ser realizado senão quando a razão social se tornar uma força social; nas condições atuais, não existem outros meios de se atingir esse principio senão os sustentados pelo poder do Estado."

A sociedade comunista não será regida senão pela razão social, que será cheia da autoridade moral que a sociedade exercerá sobre o indivíduo.

O registro dos casamentos será uma das normas adotadas no interesse do desenvolvimento da sociedade. A disciplina livre do trabalho e a livre obediência às normas estabelecidas coletivamente trarão o cumprimento das diretivas da razão social.

Será necessário ainda fazer grandes esforços afim de abolir os ignóbeis vestígios do passado, dos quais a prostituição, essa forma a mais nojenta da exploração do homem, é à mais infame.

Vede o que se passa entre nós, no estado em que o poder é exercido pelo proletariado. Somos presos de uma dolorosa vergonha, quando, no décimo ano da revolução proletária, vemos ainda a profunda humilhação das mulheres constrangidas a vender seu corpo e sua alma, para poder viver.

Só o comunismo que abole a propriedade privada e toda a sua ideologia, que abole todas as distinções sociais, dentro da sociedade, desabrochará no triunfo da humanidade sobre a bestialidade e à liberdade definitiva da mulher.


Inclusão 18/09/2011