O grande escritor Azevedo Amaral publicou no “O Jornal” um artigo intitulado “Moralismo Contemporâneo”. Por ser longo deixamos de transcrever na íntegra, esse estudo do Príncipe do jornalismo sul-americano.
“As épocas de transição em que os velhos padrões morais são lançados nos altos-fornos da vida intensa e incandescente para se refundirem valores novos, são paradoxalmente as mais propicias à eclosão dos moralistas. Nestes períodos em que o fluxo moral das ideias se reflete em uma certa confusão tumultuaria dos costumes, encontram as inteligências inclinadas à análise psicológica um estímulo particular para a pesquisa no campo obscuro e arriscado do determinismo ético. Não admira, portanto, que nos dias atuais, cujo ambiente a muitos impressiona pelas manifestações de rebeldia contra a moral antiga, surjam escritores apaixonados pelos problemas morais nem é surpreendente que eles se encontrem na classe dos jornalistas geralmente tão increpada de incompetência, para pronunciar-se autorizadamente sobre tais assumptos.
Em nenhum meio, entretanto, seria possível encontrar, nos dias que correm, condições tão favoráveis ao estudo dos problemas da psicologia e aos casos morais que dele decorrem como entre a gente que pelo trabalho de imprensa constitui a classe que se tornou naturalmente herdeira das funções e das próprias responsabilidades dos que outrora se especializavam como doutores em ética. O jornalista tornou-se na sociedade moderna o confessor e pregador. As contingências do seu mister desenvolvem-lhe uma curiosidade que o obriga a apoderar-se de segredos mesmo quando os seus depositários não tenderiam espontaneamente a confiá-los. Assim, o jornalista, além de confessor é também um inquisidor diante de cujas astúcias na violação das consciências não resiste a simplicidade dos ingênuos nem a cautelosa prudência dos homens práticos do mundo da politica e dos negócios. Perscrutador das intimidades da alma alheia, representa o jornalista outro papel como organizador da moral pública pela pregação dos únicos sermões que ainda têm alguma possibilidade de serem ouvidos.
Como todos os seus predecessores na fascinante tarefa de vivissecção psicológica do homem, os novos analistas do consciente e do subconsciente recrutados nas bancas dos jornais, sentem a preponderante atração do problema do sexo que muito antes da sistematização científica de Freud já havia sido abordado pelos fundadores das religiões como raiz inicial da arvore genealógica do Bem e do Mal.
O estudo dos fenômenos éticos tanto no campo restrito da personalidade individualizada como no conflito tempestuoso das correntes e das marés do oceano coletivo tem, em última análise, de resumir-se na investigação dos dois instintos fundamentais da fome e da geração que a orgulhosa displicência do homem civilizado insiste em repelir para uma degradante obscuridade mas que ressurgem obstinadamente por entre as festas brilhantes da cultura como esquecidos e humildes patriarcas plebeus da prole ingrata e soberba de todos os nossos sentimentos elegantes e subtis.
O impulso nutritivo foi gradualmente integrando-se no domínio da ação positiva e racional do homem ao ponto de deslocar-se do terreno crepuscular que forma a esfera da pesquisa do artista e do psicólogo para interessar preponderantemente o sociólogo e o estadista. Mas, o instinto do sexo ainda subsiste envolto na penumbra em que podem viver as criações fluidas da fantasia, como última terra ignota a desafiar o empreendimento aventuroso dos descobridores dos mistérios da sensação. A arte tem, portanto, de buscar os materiais psicológicos para as operações da sua magia nesse império ainda inexplorado da vida. Não é uma coincidência riem o efeito de tendências particulares da estesia individual que leva, portanto, todos os artistas e tanto mais quanto a sua arte for uma expressão da análise psicológica a mergulhar nos domínios da sexualidade como fonte de inspiração da sua capacidade criadora.
No momento fascinante em que as gerações atuais têm o privilegio de viver, quando o conflito violento de um passado que persiste em sobreviver e de um futuro que irrompe esmagando todas as resistências faz surgir no homem aspetos de consciências surpreendentes na audaciosa revelação de segredos que a alma humana conservara até agora recalcados no subconsciente pela compressão formidável das guardas vigilantes da moral antiga, o problema do sexo aparece com cores e formas inéditas empolgando os que dispõem da formação mental de analistas e psicólogos.
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No livro do sr. Figueiredo Pimentel o tema em torno do qual o autor esboça uma obra delicada e subtil de bem observada psicologia coletiva, é o que poderemos definir como o problema social da sexualidade em uma época de violenta transição. A família cuja historia é delineada no seu romance constitui uma expressão representativa da posição em que se encontra a tradicional instituição domestica em face da violenta concorrência econômica contemporânea cujas asperezas são cruelmente acentuadas, em certos meios burgueses, pelos imperativos categóricos de uma vida suntuária cuja observância se tornou, na prática, o mais acatado princípio ético. A sexualidade nas “Filhas do Baldomero”,(1) embora seja a força motriz do dinamismo dramático da novela aparece antes como elemento subalterno, instrumento a serviço de instintos mais aparentes na psicologia das personagens que os forçam a sustentar a luta pela vida, no único terreno em que encontravam vantagem.
A diferença entre os estados d’alma do cientista e do artista é que enquanto o primeiro enfrenta as produções mais extravagantes que se lhe deparam na observação e na experiência, sem temer-lhe as formas estranhas ou as possibilidades terríveis que encerrem, o artista está condenado pelo determinismo da sua sensibilidade a ser o escravo mais ou menos tímido do gênio que evoca.
Essa contingência da formação peculiar do artista torna-lhe o trabalho criador particularmente penoso em uma época em que a sagacidade da sua visão mental o faz tão frequentemente perceber essas figuras estranhas, que passam num malabarismo de acrobacias macabras pelo hiato que separa as coisas e as ideias a que nos habituamos ontem e às formas e os pensamentos que viverão amanhã.
Daí a tendência perigosa do artista a tornar-se nessas ocasiões o crítico da própria obra e a converter-se, mesmo, em tímido reconciliador de contrários irreconciliáveis.
O escritor delicado das “Filhas do Baldomero” veio mostrar como esses temas se delineiam entre nós oferecendo campo sugestivo à investigação do sociólogo e do psicólogo e também o precioso material que a arte pode trabalhar convertendo-o em obra de beleza.”
1928.
Azevedo Amaral
Notas de rodapé:
(1) “Filhas do Baldomero”, obra de autoria de Figueiredo Pimentel lançada em 1928. (nota MIA) (retornar ao texto)