A inspiradora de Luiz Carlos Prestes

Figueiredo Pimentel


I. Intróito


capa

O cavalo não queria prosseguir porque sentira a fêmea. Orelhas atentas, narinas dilatadas, impaciente e indisciplinado, teimava em não retomar o atalho por onde mais depressa chegaria á cidade. Ao seu nitrido respondeu a égua, ao longe. O animal tornou-se, então, mais desobediente.

Venâncio vergastou-lhe as orelhas, mas o animal continuava empacado, querendo voltar-se para onde se encontrava a égua. Ao sentir a tala, levantou as patas dianteiras e, numa reviravolta acrobática, pôs-se quase de pé.

— Êta, bicho bom! disse Venâncio esporeando o animal assanhado que recomeçou a rinchar.

Só então o cavaleiro percebeu a causa daquela indisciplina.

Sob as grandes árvores, onde os raios do sol mal penetravam, viu um animal arreado, preso ao tronco de uma enorme arvore.

Estaria ali uma mulher?

A mulher sente mais do que os homens a poesia, a atração das águas cantantes. E aquele recanto era tão sombrio e poético….

Vinha da mata umbrosa o ruido do despenhar da cascata. Velhas e grandes árvores escondiam as pedras por onde tombava a água aos borbotões.

Venâncio teve o pressentimento de que ali se achava uma mulher. A curiosidade começou a espicaçá-lo. Amarrou o irrequieto cavalo a um tronco e caminhou para o lugar em que estava a égua tordilha.

Aquele recanto silencioso, perdido no seio da mata, onde raramente passaria um cavaleiro, devia ser propício aos espíritos românticos.

Uma mulher ali…. Seria possível.

Dez horas. O sol banhava a mata com sua luz gloriosa, mas o recanto era sombrio, apenas uns raios dourados filtravam por entre a espessa ramaria. Pouco além tombavam as águas; a cascata parecia iluminada apenas pela luz doce e morta de um luar de inverno.

Vinha da ramaria o alegre gorjeio da passarada em festa.

Cauteloso, procurando abafar o estalido das folhas secas que juncavam o solo, Venâncio foi se aproximando do sítio ameno e ouviu a voz suave da mulher. Que doce e maviosa canção! Parou emocionado, sustendo o folego.

Continuavam os pássaros a doce cavatina. As águas também cantavam. Só o arrulho das rolas era triste como um agouro... Outros pássaros cantavam. Venâncio procurava esconder-se cada vez mais. A voz da mulher o perturbava. Emoção. Curiosidade. Uma aventura...

Seria formosa? Era uma voz educada e suave que penetrava os seus ouvidos como um acorde de violino. Feria. Emocionava. Encantava.

Venâncio aproximava-se cada vez mais cauteloso. A voz da mulher, a curiosidade de vê-la, a emoção, o próprio ambiente, tudo perturbava os sentidos de Venâncio.

Como o caçador que percebe onde está a presa e vai quase sem respirar, sem ver onde pisa, com os olhos fitos para a frente, sem se preocupar com o que se passa ao redor, assim o moço alongava a vista, procurando o local, com tática.

Ao vê-lo aproximar-se começou a égua a escoucear. Rinchava dando o sinal.

— Princesa! Espera um pouco. Nos já vamos.

Ao ouvir essa voz Venâncio abaixou-se como se estivesse sendo visto. Roupa pendurada num galho despertou sua atenção. Roupa de casimira, culote; perneiras. Roupas internas, de seda amarela. O moço segurou uma das peças e sentiu o perfume de carne moça. Os pensamentos maus povoavam o seu cérebro escaldante. Sentia-se tonto. Pensava em agarrar a moça de surpresa. Ninguém veria. Estavam sós na mata deserta. O gozo de um corpo nu, jovem e belo... E se fosse feia? Mas devia ser jovem; a voz era de mulher moça. Amedrontada, sob a ameaça do revolver ela cederia fatalmente... Não! Ele era um homem de bem e não um covarde. Seria incapaz de praticar tamanha infâmia, de abusar de uma moça indefesa. Sentia repugnância em pensar em tal ignomínia. Queria sacudir os pensamentos maus e procurava ver a moça.

Trepando numa pedra ficou então deslumbrado.

Nascendo das águas, qual a flor de lótus, a moça surgia majestosa.

Ela observava o corpo no espelho da água, enamorada da própria sombra. Dir-se-ia que procurava na carícia das águas, no fundo do lago, o desejado amante.

Venâncio ficou hipnotizado diante da beleza da mulher. Corpo escultural, de impecáveis linhas. Pele moreno claro, cabelos de ouro velho caídos até os ombros. Seios rijos. Mulher maravilhosamente bela. Um mármore de Luni. Cabeça de impressionante majestade.

Passou nua por Venâncio, que se escondia cada vez mais, e apanhou a roupa.

Venâncio atordoado, sem se mover, continha a respiração. Estava maravilhado diante daquele quadro inesperado. Encanto Beleza.

A dois passos, aquela mulher o perturbava com seu corpo nu. Sentia o perfume da carne em flor. A voz num canto suave, sem palavras, penetrava os ouvidos de Venâncio que teve ímpetos de se atirar sobre esse corpo que o atarantava com sua beleza impressionante.

A moça começou a vestir-se calmamente. Sacudiu a cabeleira farta, com a imponência de um índio ao fazer balouçar o seu cocar de penas de cores.

Parecia um sonho. E ele só despertou desse estado sonolento quando a viu tomar as rédeas da égua e saltar para a sela. O animal partiu em disparada. Venâncio pensou alcançá-lo mais adiante.

Correndo para onde estava o cavalo, a uns cem metros, montou-o ligeiro e saiu em disparada.

Também o animal queria ir ao encalço da égua. O desejo era o mesmo. A tentação da carne….

A galope, na direção em que desaparecera a moça, o cavaleiro partiu em grande disparada.

Que caminho teria seguido? Este? Aquele? Confusão e dúvida. Perdeu a pista.

Desconhecendo aquelas paragens, hospede recente das terras gaúchas, Venâncio sentia-se embaraçado. Seu coração batia fortemente.

A maior emoção de sua vida. O corpo deslumbrante, daquela mulher sensual, cuja beleza não vira ainda semelhante, o encantava.

Não lhe saía da imaginação o corpo nu da mulher esplêndida que acariciava os próprios seios, erguendo-os, como se os oferecesse à própria volúpia. Aspirava o perfume dos seios suspensos em suas mãos como se fossem uma braçada de rosas. Suas narinas se dilatavam numa sensualidade de fêmea no cio….

Beleza. Arte. Perfeição.

O sol espalhava sua luz pelos campos, queimando as pastagens, — o beijo do verão dourando os trigais….

Passavam os carros de bois. Venâncio procurava, em vão, a moça vestida de verde, que sumira montando a égua tordilha. Ninguém a vira. Todas as perguntas ficavam sem respostas. Um vaqueiro dera, por fim, uma informação preciosa.

— Talvez seja a neta do Coronel Hilpert. Ela costuma passear a cavalo, pelas manhãs. Se é loura e bonitona deve ser ela mesmo.

Agradecendo a informação, Venâncio partiu mais satisfeito. Quem seria essa mulher? E esse coronel Hilpert?

Regressou ao Hotel em que estava hospedado, depois da longa e fatigante caminhada a cavalo. Chegou atordoado como se viesse de uma noite de jogo em que tivesse perdido todo o dinheiro.

O quadro do banho não lhe saía da mente.

Acendeu um cigarro, deitou-se vestido como estava e começou a pensar no corpo escultural daquela mulher escandalosamente bela.


Inclusão: 30/03/2024