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As manifestações de 1901 lembraram aos vastos setores intelectuais que a revolução na Rússia “não fora retirada da ordem do dia”, como parecia aos homens decepcionados dos anos de 80. Ao contrário. A palavra “revolução” repetia-se cada dia com mais frequência. Começaram a aparecer, não na Rússia, naturalmente, onde a censura czarista ainda não havia sido “excluída da ordem do dia”, jornais com cabeçalhos tão significativos como O Mensageiro da Revolução Russa (publicado pelos socialistas revolucionários). A revolução na cidade trouxe de novo à baila a questão da aldeia. Desde a época do fracasso do “movimento de aproximação do povo”(1) considerava-se a aldeia em estado letárgico. Mas, depois de coligir alguns dados, um dos colaboradores do mencionado Mensageiro da Revolução Russa chegou a uma conclusão diferente:
“Os camponeses lutam constantemente, valendo-se de seus próprios meios (destruição dos campos semeados, das máquinas, “galo vermelho”(2), etc.) para a melhoria das condições de arrendamento, pelo aumento dos salários...”
Não são raros os casos em que as relações agrárias se exacerbam a tal ponto que os camponeses, perdendo a paciência, destroem as moradias dos fazendeiros; em 7 de maio de 1898, por exemplo, os camponeses do Vale Doirado (província de Gerson), em grupo de 200, armados de estacas, apresentaram-se para recolher o gado confiscado(3) pelo fazendeiro e gritando: “Esgotou-se-nos a paciência!” devastaram completamente a casa do proprietário e as dependências adjacentes”.
O autor, que escrevia no outono de 1901, achou, durante os últimos anos que precederam a este, valendo-se unicamente das informações da imprensa, exemplos de agitações camponesas em todo o sul e ocidente da Rússia, e, além, nas províncias centrais de Moscou e Kostroma. E devemos levar em conta que os jornais não podiam registrar todos os casos. Da província de Voronek escreviam em agosto de 1901:
“Pairam coisas terríveis no ar: todo o dia aparece no horizonte o resplendor dos incêndios; sobre a terra flutua uma nuvem sangrenta, respira-se e vive-se dificilmente, como antes da tempestade. O camponês esconde-se num mutismo sombrio e se às vezes decide falar é com extrema cautela".
A aldeia não era a mesma de vinte anos antes. Vimos já, em parte, as causas disso. Só uma pequena minoria conseguia escapar da corda lançada ao pescoço dos camponeses com a “emancipação da terra”: seis a nove décimos das terras compradas pelos camponeses e de cinco a nove décimos dos arrendamentos achavam-se concentrados nas mãos de uma quinta parte da massa total dos camponeses. A parte mais “folgada” desta minoria aproveitava-se diretamente da ruína da maioria para aumentar seus bens. Segundo os dados correspondentes ao ano de 1899, fornecidos pelas Caixas Econômicas, achavam-se nas mãos dos camponeses 640.000 cadernetas, nas quais estavam anotados 126 milhões de rublos. Considerando que os cálculos davam para a Rússia dez milhões e meio de famílias camponesas, aproximadamente, conclui-se que os “afortunados” possuidores de depósito nas Caixas Econômicas representavam pouco mais de 1/20. É, porém, interessante notar que, individualmente, os possuidores de caderneta da Caixa Econômica estavam em melhor situação que os seus colegas franceses: a cada um deles, na França, correspondia cerca de 160 rublos, e, no nosso país, a cada caderneta correspondia 197. Além disso, a acumulação de depósitos nas Caixas Econômicas fez-se com extrema rapidez, justamente nos anos da fome 1891-92.
Apareceu, assim, em fins do século XIX, na aldeia russa, a categoria de “camponeses folgados”, burguesia rural em que se devia apoiar mais tarde a reação de Stolipin. Mas, no momento, a existência dessa burguesia não fazia mais que acentuar de um modo mais vivo a situação miserável da massa camponesa; a revolução camponesa, na ocasião, não era dirigida contra os kulaks. O burguês rural continuava trabalhando no campo com a sua família, ainda que também alugasse trabalhadores braçais; para o camponês, não deixava de ser um companheiro e, de vez em quando, tinha interesses comuns com o camponês pobre. Era fácil desviar o olhar invejoso desse camponês pobre para as terras do grande fazendeiro, vinte vezes mais baratas que as do kulak (como vemos, a burguesia rural conseguira adquirir só uma parte insignificante das terras das grandes fazendas), cujo proprietário, no dizer do camponês, “nada fazia”, e, com efeito, na maior parte dos casos nada fazia de útil.
O grande fazendeiro, era um folgazão, não só para o camponês pobre como também para o kulak. Este último, esporeando pelo seu ódio ao fazendeiro folgazão, punha-se à frente da massa camponesa.
Os observadores dos anos 70 notaram que os kulaks eram os “primeiros liberais da aldeia”. Os agitadores revolucionários de princípios do século XX puderam convencer-se disso mais de uma vez. Tanto os social-democratas como os socialistas revolucionários achavam asilo com mais facilidade nas famílias dos camponeses folgados que em outra qualquer parte. Os raciocínios dos socialistas revolucionários sobre o tema da comunidade da terra não modificavam o kulak.
“Naturalmente, a terra é de Deus(4), porém Deus pode tomá-la de um, em castigo de seus pecados, e dá-la a outro, como prêmio a suas virtudes. Se tenho quatro cavalos, porque não poderei ter quatro vezes mais terras do que aquele que só dispõe de um cavalo?'’ E só quando o agitador social-democrata insistia na luta de classes, o rosto do kulak enrubescia e ele perguntava ao hóspede: “Assim, na sua opinião, sou um burguês?”
Embora se dessem naquela época casos de boicote dos kulaks ou de incêndio de suas colheitas, esses fatos constituíam raras exceções. Enquanto perduravam as grandes fazendas ou, em outros termos, enquanto na aldeia subsistiam os vestígios do feudalismo, o terreno era pouco propício à luta de classes e à propaganda social-democrata. A propriedade feudal, apesar de ter sido consideravelmente diminuída desde 1861 (nas terras férteis, os fazendeiros conservaram só 70% da terra que se achava em seu poder no dia seguinte ao da reforma camponesa, e nas outras terras chegou só a 58%), continuava, constituindo, entretanto, mais da metade das parcelas de terra dos camponeses (cerca de 70 milhões de deciatinas, enquanto as parcelas camponesas representavam 137 milhões de deciatinas). Consequentemente. cada camponês pobre podia esperar o aumento de sua gleba em 1 1/2 vez, em prejuízo do fazendeiro. Além disso, para o camponês, tratava-se de uma terra banhada com o seu suor, na qual trabalhava na qualidade de arrendatário, ou para pagar a parcela de terra recebida do senhor.
A passagem dessa terra à direção direta dos camponeses representava não só um progresso para eles, como para a economia popular. Os 70 milhões de deciatinas, vestígio do direito feudal, constituíam 3% de todas as propriedades agrárias da Rússia, e, se à burguesia rural correspondiam 47 deciatinas por família, a cada latifundista correspondiam 2.333. Só em casos raríssimos, essas terras podiam ser trabalhadas como era preciso, de um modo capitalista. Na imensa maioria dos casos, a terra não era mais que um instrumento de usura: o proprietário, que em essência nada punha nela, não fazia mais que extorquir recursos dos camponeses, de modo que, de fato, não fazia mais que continuar ou substituir os impostos ou “prestações” antigos. Enquanto subsistissem esses vestígios feudais, era tão difícil dirigir os camponeses pobres contra os kulaks como deixar que os últimos dilatassem suas propriedades a expensas das pequenas explorações decadentes. A propaganda socialista, nos começos dos anos 90, nas aldeias, correspondia tampouco aos tempos como a legislação stolipiana, que procurava um ponto de apoio no camponês forte”, isto é, no kulak. Tanto uma como outra estavam destinadas ao fracasso.
O Partido Social-Democrata — pelo menos a sua ala esquerda — compreendeu esse fato desde o princípio.
“Na aldeia russa contemporânea — dizia a Iskra na primavera de 1900 — coexistem dois antagonismos de classe: primeiro, entre os trabalhadores agrícolas e os proprietários; segundo, entre todos os camponeses e toda a classe dos fazendeiros. O primeiro antagonismo desenvolve-se e cresce; o segundo vai se debilitando paulatinamente. O primeiro pertence ainda ao futuro; o segundo já pertence, num grau considerável, ao passado. E, apesar disto, para os social-democratas de nossos dias, o segundo antagonismo é que tem importância essencial e prática... Nossos trabalhadores braçais do campo têm ainda um contacto demasiadamente estreito com os camponeses, pesam sobre eles ainda as desditas camponesas e por isso nem agora e nem num futuro próximo o movimento dos trabalhadores agrícolas russos pode adquirir a importância de um movimento de caráter geral. Pelo contrário, a questão da extirpação das sobrevivências do feudalismo, a supressão do espírito de desigualdade de casta e da humilhação de dezenas de milhões de “homens do povo” já tem na atualidade uma importância de ordem nacional e não pode prescindir dele um partido que pretende desempenhar o papel de combatente na vanguarda da liberdade."
O governo czarista percebeu o perigo e apressou-se em se prevenir a seu modo. Nas esferas dirigentes diziam que as agitações estudantinas (que, precisamente, naqueles momentos, adquiriram uma violência particular, como veremos mais adiante) não tinham importância, que há recurso para submeter os operários, mas que seria muito pior se se levantassem nas aldeias. Em 22 de março de 1902, foi instituída uma “comissão especial para as necessidades da indústria agrícola”, sob a presidência do Ministro da Fazenda, Witte, o servidor czarista mais inteligente e capaz, não só daquele momento, como, em geral, de toda a época posterior a 1881. Afortunadamente para a revolução e desgraçadamente para os Romanov, Nicolau não podia suportar Witte, como, geralmente, as pessoas limitadas e estultas não podem suportar o que são incapazes de compreender, e os projetos de Witte, embora fossem bem simples, eram excessivamente complicados e difíceis para uma cabeça como a do último autocrata russo...
O movimento revolucionário, as greves, as manifestações, lembravam a Nicolau, antes de tudo, o dia 1.° de maio de 1881 e o destino do seu avô Alexandre II(5). O czar sentia-se dominado pelo temor das bombas. Os homens que lhe pareciam mais necessários não eram os economistas e financistas, mas os espiões e os policiais. Faziam-se verdadeiras declarações de amor ao corpo de gendarmes. No dia 16 de dezembro de 1901, dia do seu santo, ao receber os altos funcionários desse corpo, Nicolau disse:
“Estou muito contente em vê-los, senhores. Tenho a esperança de que a aliança que hoje selamos, eu e o “corpo de gendarmes, será, de ano para ano, mais forte”.
Pouco depois, quando o Ministro do Interior, Spiagin, primeiro adepto da política aristocrática de Tolstoi, foi assassinado pelo estudante Balmachov (em abril de 1902) o homem de confiança de Nicolau foi o novo Ministro do Interior, Pleve, diretor do Departamento de Polícia na época das repressões dos populistas (narodniki) e o organizador, na Rússia, dos primeiros pogroms contra os judeus. Pleve era uma espécie de gênio da Polícia e da provocação (foi durante a sua gestão no ministério, que floresceu o “zubatovismo”) e ganhou a boa vontade do czar por meio de uma luta sumamente hábil contra o terror dos socialistas revolucionários. Sob a direção de Pleve, a Polícia conseguiu que um dos seus membros — o engenheiro Azev — fosse designado chefe de combate dos socialistas revolucionários: pode-se dizer que todo o terror se achava nas mãos dos agentes czaristas. É verdade que isso foi comprado por um preço muito elevado: para sustentar a confiança do Partido em Azev foi necessário autorizá-lo a organizar atentados contra todos, salvo o czar; além disso, Azev podia trair. Por fim, o próprio Pleve caiu vítima de uma bomba socialista revolucionária (em Julho de 1904). Mas, mesmo assim, nunca a “revolução” esteve a tal ponto controlada pela Polícia (como pensava Nicolau).
Pleve foi para Nicolau um favorito, como Arkachev para Alexandre I. Como Arkachev no seu tempo, Pleve procurava separar os homens que se mostravam mais ou menos capazes e que podiam fazer-lhe sombra ao lado de Nicolau, e, antes de mais nada, aproveitou-se da antipatia que Nicolau sentia por Witte. Este retirou-se definitivamente por motivos ligados à política exterior (no capítulo seguinte falaremos deste caso), porém, a partir do momento em que Pleve foi nomeado, em 1902, a influência do mencionado ministro começou a declinar. Bastava esta circunstância para fazer supor que a Comissão convocada sob sua presidência não desse resultados sensíveis. Por outro lado, os fazendeiros, que, como o czar, confiavam nas medidas policiais, não se achavam dispostos a fazer nenhuma concessão econômica em benefício dos camponeses.
Prevendo esta resistência dos latifundistas, os zemstvos – que eram uma instituição formada por grandes proprietários de terra — foram eliminados da participação nos comitês locais destinados ao estudo das necessidades da agricultura, cabendo aos funcionários o predomínio nos mesmos. O mais que se conseguiu com isto foi os fazendeiros — que, apesar de tudo, logravam introduzir-se nos comitês — fazerem manifestações liberais contra o regime de Nicolau II, utilizando-se desses mesmos comitês. Em geral, os fazendeiros mais avançados reconheciam a necessidade de melhorar a situação jurídica dos camponeses, isto é, de suprimir os resíduos do direito feudal, conceder ao camponês direitos iguais aos de todos os habitantes “livres” do Império russo e diminuir os impostos. Mas da divisão de terras falavam muito pouco e em forma muito vaga. As manifestações liberais foram, naturalmente, utilizadas por Pleve contra Witte, tendo como consequência diminuído ainda mais a confiança que o czar tinha no ministro. E a maioria dos fazendeiros deu-se por satisfeita e tranquilizou-se com o reforço da Polícia rural: em maio de 1903 foram criados agentes de Polícia rural (trajniki) em 46 províncias.
Cumpre notar, entretanto, que todas essas medidas tomadas em 1903 chegavam atrasadas. Já em 1902 o movimento camponês tomara tais formas e tais proporções que foi necessário mobilizar contra ele não só a polícia e os cossacos, mas as tropas de linha. Não era raro mandarem-se divisões inteiras. A “comissão especial" não tivera ainda tempo de iniciar suas sessões quando, em fins de Março de 1902, começava o movimento camponês de massas, o primeiro na história contemporânea da Rússia, o primeiro que atingira tão grandes proporções depois das agitações de 1861-62, após a “emancipação”.
O movimento teve início na província de Poisava onde em poucos dias foram devastadas 54 casas senhoriais; dali o movimento propagou-se à província de Karkov, onde 23 casas senhoriais tiveram a mesma sorte; depois às províncias de Volinsk, Guernikovsk, Voronek e Saratov, onde o movimento se prolongou até julho e terminou com verdadeiras “operações militares” por parte dos camponeses. Estes, contando com seus próprios recursos, construíram uma espécie de canhão com um tubo de chaminé, carregaram-no de pólvora e dispararam contra a janela de uma das casas senhoriais.
A tenacidade manifestada nessa ocasião pelos camponeses da província de Saratov não era casual, como logo veremos. Os primeiros passos do movimento demonstraram de modo evidente até que ponto a sua ideologia se achava distante da do proletariado das fábricas. Os operários não só protestavam contra os patrões mas também contra a autocracia; os agentes desta, como vimos, viram-se forçados a empregar todos os recursos para conseguirem desagregar, temporariamente pelo menos, os operários, e privar o movimento grevista de seu caráter político. No movimento camponês não havia nada disto. Os camponeses estavam inteiramente convencidos de que ao devastar os bens dos fazendeiros agiam de acordo com a vontade do czar. Quando as proclamações revolucionárias — nas quais se falava da entrega da terra aos camponeses — caiam nas suas mãos, atribuíam-nas ao czar. Circulavam lendas de toda a natureza, como a que o czar viajara para o estrangeiro para livrar-se do fazendeiro e deixara a coroa ao herdeiro, que transmitira o poder aos camponeses. Por isso, os camponeses agiam completamente tranquilos, persuadidos de que estavam em seu direito. Quando apareciam tropas e os chefes ameaçavam disparar suas armas, a multidão convicta, respondia:
“Não te atreverás a tanto; o czar não o permite”.
E quando, apesar de tudo, a tropa fazia fogo e a multidão se dispersava deixando no local mortos e feridos, os camponeses, ao reunirem-se no dia seguinte, diziam que o oficial se veria obrigado a responder por seus atos “ante o imperador”.
O mais curioso é que uma das primeiras casas senhoriais devastadas pertencia a um membro da família czarista o duque Meklenburg-Stelitski. Nem esta circunstância esclarecia os camponeses. Não podiam compreender que os Romanov fossem fazendeiros, antes de tudo. Os objetivos que os impeliam eram tão ingênuos que nenhum “economista" poderia imaginar “melhor”.
“Não temos um palmo de terra, que nos forneça alimentos; é preciso que no-lo deem pois, do contrário, tomá-lo-emos à forca; dai-nos 5 puds de trigo a cada um e outro tanto de terra” (isto é, à razão de 5 deciatinas), diziam os revoltosos.
Na realidade, eles possuíam terra à razão de 2 deciatinas. Viam-se obrigados a arrendar a terra pela qual 5 anos atrás pagavam 5-6 rublos a deciatina e que agora custava 12-10. Até mesmo a “nota oficial” do governo a respeito das “desordens” de Poltava reconhecia que a situação econômica dos camponeses daquela província “não era, de modo algum, satisfatória”. Mas a nota oficial via a causa principal dessas “desordens” na “propaganda contra o governo”. Esta afirmação não podia ser mais absurda no tocante à província de Poltava: como vimos, os camponeses da aludida província atribuíam, também, a responsabilidade das proclamações revolucionárias a Nicolau II. Para eles, portanto, tratava-se mais de uma propaganda “governamental” que de uma propaganda contra o governo.
A propaganda não deixou de surtir efeito em lugares menos ignorantes. Na província de Saratov, nos princípios da primavera, os camponeses começaram a falar da próxima repartição da terra. A bibliografia ilegal, que trazia comentários acerca da situação dos camponeses e explicava as causas de sua miséria, tinha tão ampla divulgação, que não havia lugar, por mais distante, em que os camponeses não na pudessem ler. Às vezes, liam-nas sem se ocultar, reunindo-se mesmo para isso. Os rumores a respeito do movimento na província de Poltava e Karkov interessavam-nos profundamente, mas, antes mesmo de tomarem conhecimento deles, os camponeses começaram a apoderar-se do trigo que estava nos celeiros de reserva. Apresentavam-se por decisão do mir(6), atavam uma corda ao ferrolho e puxavam-na, todos juntos, afim de que a responsabilidade fosse comum. Deliberavam lavrar as terras senhoriais e segar os seus prados em proveito próprio e em muitos lugares a decisão era posta em prática imediatamente. Os montes de feno e as dependências das propriedades senhoriais eram incendiadas. O incêndio dos bens dos fazendeiros mais odiados repetia-se várias vezes.
O movimento de 1902 foi sufocado pela desumanidade característica do regime dos Romanov. Depois das matanças, os “revoltosos” sobreviventes eram implacavelmente açoitados; às vezes, aldeias inteiras eram açoitadas de tal modo que, segundo a expressão dos camponeses, “a carne se desprendia do corpo aos pedaços”(7). Neste mister, o príncipe Obolenski, governador de Karkov, distinguiu-se particularmente.
“Trinta açoites pelo roubo, canalhas, e mais trinta de minha parte”.
Apesar de todas essas ferocidades, as agitações camponesas renovaram-se, em 1903 e em 1904, passando de uma para outra aldeia.
Pouco a pouco, o povo foi-se acostumando a elas e as notícias referentes aos “levantes” nas aldeias não mais provocavam entre os intelectuais a animação que despertaram na Páscoa de 1902 as primeiras notícias da província de Poltava. Mas no campo dava-se o inverso: a primitiva convicção de que o movimento seria facilmente reprimido começava a desaparecer.
“A vida das aldeias adquiriu uma tensão extraordinária, escreviam da província de Penze. “A tranquilidade da aldeia é perturbada quase todas as noites pelo toque de rebate. Ardem os montes de feno, os depósitos de centeio e até o trigo no campo... Os fazendeiros estão assustados, predizem a revolução...”
Os fazendeiros tinham razão. Paralelamente à revolução proletária nas cidades e nas fábricas, avançava outra revolução, revolução pequeno-burguesa nas aldeias. Se ambas se fundissem num só movimento seriam invencíveis. Evitar esta fusão constituía uma questão de vida ou de morte para o regime dos Romanov. Em 1907 pareceu-lhes conseguir; 1917 destruiu-lhes esta ilusão.
O movimento pequeno-burguês no campo devia despertar o movimento pequeno-burguês em geral. Os intelectuais pequeno-burgueses, vendo diante dos olhos o que lhes faltara em 70, a massa camponesa insurreta, não podiam deixar de reerguer-se como forca revolucionária e nem de tentar reproduzir o conteúdo e as formas de luta a que estavam acostumados. Em 1902, surge o Partido dos Socialistas Revolucionários, formado por ex-marxistas e pelos velhos revolucionários populistas sobreviventes. Para esse partido(8), a base da revolução estava nos camponeses e seu método principal no terror.
A pequena burguesia atravessava, há tempos, paralelamente ao movimento operário, um período de atividade. Mas não contava com bandeira própria na política. Sua vanguarda, que, no fim dos anos 80, se decidira a sair à rua e a reptar abertamente as autoridades, era, como dissemos, composta de estudantes. Mas, até o fim dos anos 90, as finalidades políticas do movimento estudantil foram muito restritas. Tratava-se, no princípio, simplesmente de um protesto contra o regulamento de 1884, que introduzia no ensino superior um sistema policial nunca visto desde os tempos de Nicolau I. Mais tarde, a esta palavra de ordem negativa, acrescentaram-se outras de caráter positivo, mas que não iam além dos interesses estritamente estudantis. O movimento desenvolvia-se sob a forma de colônias ou círculos de socorros mútuos, nos quais se agrupavam os oriundos de uma mesma província. Os estudantes lutavam, em essência, pelo direito de possuir organizações próprias (o regulamento de 1884 dizia: “os estudantes não passam de assistentes, isolados na Universidade”) e, como este direito não lhes era concedido, organizaram-se secretamente.
Foi assim que, em meados de 90, surgiu em Moscou o “Conselho das Colônias dos Estudantes", que muito ruído despertou naquela época. A polícia esforçava-se por descobrir esta organização, detendo os Conselhos um após outro, provocando apenas novas agitações. Isto prometia resolver a questão do “motocontínuo’', que preocupava inutilmente os mecânicos, mas não dava ao movimento um objetivo concreto. Os melhores elementos passavam pelas “colônias” e pelo “conselho”, como por urna escola em que aprendiam os processos da luta revolucionária clandestina, deslocando-se depois para onde a luta já se desenvolvia numa forma autêntica ao lado dos operários.
A ideologia das organizações estudantis em meados de 90 era o marxismo. O Capital era o livro de consulta dos dirigentes das “colônias estudantis moscovitas a partir de 1887. Todavia, o marxismo revolucionário russo, isto é, a propaganda do “Grupo da Emancipação do Trabalho” chegava a essas organizações, como na Rússia em geral, de um modo assaz imperfeito. Entre os estudantes, a doutrina mais popular era a que depois foi denominada “marxismo legal”, que, em essência, expressava as ideias de Plekanov, expostas por jornalistas que escreviam abertamente na Rússia e que, graças à forma puramente teórica de seus escritos, conseguiam dar uma rasteira na censura czarista. Mas, como logo se viu, sob a forma “legal” das concepções revolucionárias, o “marxismo legal” tinha um sentido mais profundo. Tratava-se de uma política de adaptação da doutrina de Marx às exigências e necessidades da classe intelectual russa.
Tentamos, por várias vezes, conhecer o significado dessa intelectualidade como grupo social. Vimos que era um setor intermediário entre os capitalistas e os operários, servindo de instrumento ao capital, mas de instrumento vivo que o mesmo capital explorava. À medida que o aparelho capitalista se complicava, mais complicado e importante se ia tornando esse instrumento. O capitalismo comercial tinha necessidade de forcas intelectuais, pouco numerosas, que desempenhavam um papel auxiliar (embora as ciências exatas tivessem já grande importância econômica: a astronomia e a mecânica eram absolutamente necessárias ao desenvolvimento da arte da navegação, na qual se apoiava o comércio mundial, a partir do fim da Idade Média; os melhores matemáticos do século XVIII consagraram-se à solução do problema da “estabilidade dos navios”). O capitalismo industrial tem necessidade de um exército de engenheiros e técnicos, cujo auxílio é indispensável para o bom êxito dos seus negócios. A massa dos intelectuais e a sua importância social aumentam na proporção do crescimento do capital industrial. O período de prosperidade industrial do fim do século XIX deu um violento impulso ao desenvolvimento intelectual russo e a crise industrial repercutiu fortemente em seu espírito.
Era este contacto entre a intelectualidade e o capital industrial que servia de base ao “marxismo legal”. A massa dos futuros engenheiros, técnicos e economistas, estatísticos e financistas, tinha necessidade de uma ideologia que desse um sentido ao seu papel social, que lhe justificasse a existência aos seus próprios olhos. A ideologia populista, que negava a utilidade e mesmo a possibilidade do capitalismo na Rússia, não pôde realizar esse fim. Essa ideologia formou-se numa época em que a nossa indústria — ainda tão pouco considerável que um golpe de vista superficial não a podia distinguir — se achava inteiramente servida por engenheiros e técnicos estrangeiros. Na época a que nos referimos, o capital da mencionada indústria era, na maioria, estrangeiro, embora os seus organizadores fossem russos.
Considerando-se que o marxismo ensinava que o capitalismo, em seu desenvolvimento, preparava o socialismo, compreende-se que essa doutrina conviesse completamente à intelectualidade “industrial” do ano 90. Do mesmo modo que ao operário, o patrão explorava o engenheiro. O engenheiro tinha razões para odiar o patrão e considerá-lo supérfluo: com efeito, quem realmente dirigia a fábrica era ele, o engenheiro. Para ele, a ideia de “suprimir” o patrão era completamente clara. Para ele, ainda era mais clara a concepção marxista, segundo a qual o capitalismo, em comparação com a pequena produção, representa um grau superior da evolução econômica. O populismo fazia o socialismo surgir diretamente da pequena produção, o que não satisfazia a intelectualidade “industrial'’. O engenheiro não podia deixar de perceber que era ele o motor do progresso industrial, e que, por isso, se achava à frente das grandes usinas. Enquanto o “marxismo legal”, soletrando as ideias de Plekanov, atacava os populistas, demonstrava o caráter atrasado dessa ideologia, e elogiava a importância progressiva do capital industrial, a intelectualidade dos anos 90 aplaudia-a ruidosamente. A apologia do capital contra os populistas, que o faziam alvo de seus ataques, adquiriu tanto relevo no marxismo legal, que não faltava quem dissesse ironicamente: “Em todo o mundo, os marxistas são o partido da classe operária; na Rússia, somente são o partido do grande capital”. Já em princípios do ano 90, os marxistas ilegais tentaram dar, em forma legal, ao aludido “marxismo” a resposta merecida; mas a censura intervinha e os escritos “ilegais” não chegavam ao público.
Entretanto, a solidariedade da intelectualidade “industrial” com o marxismo não durou muito tempo. O marxismo ensinava que a emancipação do operário deve ser obra da própria classe e da revolução. Também isto não convinha à “intelectualidade industrial”. Admitia ou não a revolução segundo o seu temperamento; isso determinou a divisão ulterior da intelectualidade avançada em kadetes e socialistas revolucionários. Contudo, só aceitavam uma revolução organizada e dirigida por intelectuais, que deveriam ser os detentores do poder.
Havia, entretanto, um detalhe, na doutrina marxista, mais desagradável ainda para os intelectuais: toda a parte não proletária do mundo capitalista, segundo essa doutrina, vive à custa da mais-valia, da exploração do proletariado. A situação privilegiada que goza o intelectual na indústria é comprada com o ouro estrangeiro: o engenheiro recebe uma retribuição vinte vezes superior à do operário. De onde? Da mais-valia. Nesta ideia da exploração é que se baseia a doutrina marxista sobre a irreconciliável luta de classes entre o proletariado e o capitalismo. No que se refere à luta de classes, estabeleceu-se unidade completa entre a velha intelectualidade populista e a nova intelectualidade marxista: não deve haver luta de classes. A sociedade deve ser una, dirigida pela intelectualidade adequada.
Se quisessem corresponder às necessidades do seu público, os chefes do “marxismo legal” deveriam orientar-se nessa direção. O revisionismo acudiu em seu socorro, essa variedade da social democracia alemã, que, sob pressão da massa pequeno-burguesa, que penetrara nas fileiras do Partido Social-Democrata, se adaptava aos interesses, aos gostos e hábitos deste último e procurava atenuar os “exageros” do marxismo ortodoxo. Dai tiraram, Struve e colegas, a feliz ideia para eles — que a teoria da mais-valia, isto é, a ideia da exploração como base do regime capitalista, tinha que ser “revista”, para não dizer suprimida, e a luta de classes não era obrigatória, sendo por isso possível a paz social; que, enfim, a necessidade da evolução socialista não estava “demonstrada”.
A base da doutrina consistia na possibilidade da existência de um Estado “acima das classes”, ideia fundamental de Struve em sua conferência sobre as causas da queda do direito feudal na Rússia, conferência acolhida com ruidosas aclamações pela juventude estudantil de Moscou, em 1888. A mocidade não percebia que esse pensamento era a ponte que servia a Struve para passar ao campo dos liberais burgueses, para afastar-se de vez da classe operária e da revolução. Compreendeu unicamente em 1905, quando Struve declarou ser o movimento revolucionário uma doença própria da juventude. Mas, naquele momento, Struve era chefe de uma organização política da grande burguesia, e não tinha mais necessidade do seu antigo público.
A revolução pequeno-burguesa, iniciada nas aldeias, deu novo ponto de apoio a esse público, emancipando-o do marxismo importuno e oferecendo possibilidades de expansão à energia revolucionária de seus elementos mais esquerdistas. Em fins de 90, o movimento estudantil alcançou o mais alto grau de exacerbação. Impulsionado, estimulado pela luta operária de massa, assimilou as suas formas, e derivou, depois das cargas da Polícia contra os estudantes petrogradenses em 1899, numa greve nacional de estudantes, arrastando mais de 25.000 rapazes de diferentes localidades. As autoridades, que não compreendiam o papel das organizações estudantis como organizadoras do movimento revolucionário, decidiram-se tomar enérgicas medidas: em julho do mesmo ano foi aprovado o Regulamento que ameaçava enviar para o exército os que participassem nas “desordens". A tentativa de aplicar este Regulamento (em Kiev, no outono de 1900) provocou as manifestações da primavera de 1901, que adquiriram enorme significação política pelo fato dos operários ligarem-se ao movimento.
Como consequência dessas manifestações, o que não passava de uma tendência estritamente acadêmica se confundiu com a vasta torrente revolucionária, embora somente uma parcela ínfima de estudantes tivesse assimilado a ideologia do movimento operário. A maioria continuava “revisionista”, isto é, não cria na revolução proletária, e possuía a concepção populista de um ardoroso espírito revolucionário; a única saída estava no terror, cuja primeira manifestação foi o assassínio do Ministro da Instrução Pública, Bogolepov, pelo estudante Karpovich, depois da publicação do “Regulamento provisório” sobre o alistamento dos estudantes no exército. O governo, em seus comunicados oficiais, esforçava-se ingenuamente por ocultar que o autor do atentado era um estudante. Mas a massa escolar, sendo pequeno-burguesa, não podia tomar parte no terror; tinha necessidade de uma atuação de massa.
Em 1898, os futuros socialistas revolucionários tinham dos camponeses uma impressão quase tão cética como Plekanov.
“Deixamos para o futuro a atuação sistemática entre os camponeses — dizia-se naquela época no folheto Nossos fins — sem que por isso renunciemos ao aproveitamento de todas as ocasiões para dar a conhecer aos camponeses o nosso programa e atrair os elementos mais conscientes”.
Como partidários da revolução “acima das classes”, os socialistas revolucionários, naturalmente, não podiam converter-se no partido da pequena burguesia rural; mais tarde, esforçaram-se, a despeito de tudo, por atrair o proletariado fabril (com muito pouco êxito, em geral), estabelecendo ao mesmo tempo contacto com a verdadeira burguesia capitalista. Esta, de boa vontade, auxiliava materialmente os “não marxistas”, jovens entusiastas de famílias ricas, coisa que não era raro nas fileiras dos terroristas—socialistas-revolucionários, como, em outros tempos, os descendentes de fazendeiros e de altos funcionários, nas fileiras de “A liberdade do povo” (Narodnaia Volia). Contudo, os socialistas-revolucionários adquiriram uma importância política séria, graças ao fato de poderem, com a sua ideologia “acima das classes”, aproximar-se mais facilmente que os marxistas da burguesia rural. O kulak não corria o risco de ver-se tratado de “burguês”, pelo socialista revolucionário, e, por isso, naturalmente, era mais agradável ao kulak ouvir o socialista revolucionário do que o social democrata. A intelectualidade e a pequena burguesia formaram uma só frente, na qual se mantinham, no entanto, ao lado do proletariado, mas separados do mesmo e à espera do instante em que se colocariam contra ele.
Notas de rodapé:
(1) Centenas de “populistas”, nos anos 70, dirigiram-se às aldeias com intuito de “aproximarem-se do povo” e pregar-lhes as ideias revolucionarias. Na maioria das vezes, os camponeses ouviam-nos com indiferença ou os entregavam às autoridades. Quase todos esses “populistas” foram detidos e mandados para o presídio. Os processos contra os mesmos (“processo dos 51” e “processo dos 193”) tiveram grande repercussão, principalmente entre os elementos intelectuais burgueses. (retornar ao texto)
(2) Chamava-se “galo vermelho”, entre o povo, o incêndio ateado pelos camponeses nos bens dos fazendeiros. (retornar ao texto)
(3) Os fazendeiros confiscavam, frequentemente, o gado dos camponeses que invadia os seus pastos. (retornar ao texto)
(4) “A terra é de Deus”, afirmavam os camponeses, querendo dizer que os fazendeiros não tinham o direito de dispor dela. (retornar ao texto)
(5) No dia 1.º de maio de 1881 o partido “Narodnaia Volia” realizou o atentado que custou a vida a Alexandre II. (retornar ao texto)
(6) Mir é a comuna russa. (retornar ao texto)
(7) P. Máslov, A questão agrária na Rússia (em russo), t. II, paginas 120-121. (N. do A.). (retornar ao texto)
(8) Como vimos, em nota anterior, só mais tarde, por ocasião do primeiro congresso, celebrado em 1905, é que os socialistas-revolucionários se organizaram definitivamente como partido. (retornar ao texto)
Inclusão | 20/01/2015 |