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No n.° 10 e seguintes do Volksstaat[N55] encontfa-se uma série de seis-artigos[N255] sobre a questão da habitação que só merecem atenção pela única razão de serem — exceptuando algumas literatices [Belletristereien] dos anos quarenta há muito desaparecidas — a primeira tentativa de transplantar a escola de Proudhon para a Alemanha. Há nisto um passo atrás tão inaudito face a todo o curso do desenvolvimento do socialismo alemão, o qual já há 25 anos deu o golpe decisivo(4*) precisamente nas concepções de Proudhon, que vale a pena fazer imediatamente frente a esta tentativa.
A chamada falta de habitação, que hoje em dia desempenha na imprensa um papel tão grande, não consiste no facto de a classe operária em geral viver em casas más, apinhadas e insalubres. Esta falta de habitação não é algo próprio do presente; ela não é sequer um dos sofrimentos próprios do moderno proletariado, face a todas as anteriores classes oprimidas; pelo contrário, ela atingiu de uma forma bastante parecida todas as classes oprimidas de todos os tempos. Para pôr fim a esta falta de habitação, há apenas um meio: eliminar a exploração e opressão da classe trabalhadora pela classe dominante. — Aquilo que hoje se entende por falta de habitação é o agravamento particular que as más condições de habitação dos operários sofreram devido à repentina afluência da população às grandes cidades; é o aumento colossal dos alugueres, uma concentração ainda maior dos inquilinos em cada casa e, para alguns, a impossibilidade de em geral encontrar um alojamento. E esta falia de habitação só dá tanto que falar porque não se limita à classe operária mas também atingiu a pequena burguesia.
A falta de habitação dos operários e de uma parte dos pequenos burgueses das nossas modernas grandes cidades é um dos inúmeros males menores, secundários, que resultam do modo de produção capitalista de hoje. Ela não é, de forma nenhuma, uma consequência directa da exploração do operário, como operário, pelo capitalista. Esta exploração é o mal fundamental que a revolução social quer abolir na medida em que abole o modo de produção capitalista. Mas a pedra angular do modo de produção capitalista é o facto de a nossa ordem social actual colocar o capitalista na situação de comprar a força de trabalho do operário pelo seu valor mas de lucrar com ela muito mais do que o seu valor, na medida em que faz o operário trabalhar mais tempo do que é preciso para a reprodução do preço pago pela força de trabalho. A mais-valia produzida desta forma é repartida pelo conjunto da classe dos capitalistas e proprietários fundiários, com os servidores a seu soldo, desde o Papa e o Imperador até ao guarda-nocturno e por aí abaixo. Não nos interessa aqui como se faz esta repartição; o certo é que todos aqueles que não trabalham só podem viver de bocados dessa mais-valia que de uma ou de outra maneira lhes vão parar às mãos. (Ver Marx, O Capital, onde este ponto foi pela primeira vez desenvolvido.)
A repartição pelas classes não trabalhadoras da mais-valia produzida pela classe operária e que lhe é arrancada sem retribuição processa-se entre querelas altamente edificantes e intrujices recíprocas; como esta repartição se processa por via da compra e da venda, uma das suas principais alavancas é o aldrabar do comprador pelo vendedor e, no comércio a retalho, nomeadamente nas grandes cidades, esse aldrabar tornou-se agora por completo uma condição vital para o vendedor. Mas quando o operário é defraudado pelo seu merceeiro ou padeiro no preço ou na qualidade da mercadoria, isso não lhe acontece na sua qualidade específica de operário. Pelo contrário, quando um certo grau médio de aldrabice se torna a regra social num lugar qualquer, essa aldrabice tem de encontrar, com o tempo, a sua compensação num aumento correspondente do salário. O operário aparece ao merceeiro como comprador, isto é, como possuidor de dinheiro ou crédito, e, por isso, de forma nenhuma na sua qualidade de operario, isto é, como vendedor de força de trabalho. A aldrabice pode atingi-lo, tal como à classe mais pobre em geral, de forma mais dura do que às classes mais ricas da sociedade, mas não é um mal que o atinja em exclusivo, que seja próprio da sua classe.
Com a falta de habitação passa-se precisamente o mesmo. A expansão das grandes cidades modernas dá um valor artificial, colossalmente aumentado, ao solo em certas áreas, particularmente nas de localização central; os edifícios nelas construídos, em vez de aumentarem esse valor, fazem-no antes descer, pois já não correspondem às condições alteradas; são demolidos e substituídos por outros. Isto acontece antes de tudo com habitações operárias localizadas no centro, cujos alugueres nunca ou então só com extrema lentidão ultrapassam um certo máximo, mesmo que as casas estejam superpovoadas em extremo. Elas são demolidas e em seu lugar constroem-se lojas, armazéns, edifícios públicos. Por intermédio de Haussmann, o bonapartismo explorou da forma mais colossal esta tendência em Paris, para burla e enriquecimento privado; mas o espírito de Haussmann passeou também por Londres, Manchester, Liverpool, e em Berlim e Viena ele parece sentir-se igualmente em casa. O resultado é que os operários vão sendo empurrados do centro das cidades para os arredores, que as habitações operárias e as habitações pequenas em geral se vão tornando raras e caras e muitas vezes é mesmo impossível encontrá-las, pois nestas condições a indústria da construção, à qual as habitações mais caras oferecem um campo de especulação muito melhor, só excepcionalmente construirá habitações operárias.
Assim, esta falta de locações atinge o operário de uma forma seguramente mais dura do que qualquer classe abastada; mas, tal como a aldrabice de merceeiro, ela não constitui nenhum mal que oprima exclusivamente a classe operária e, na medida em que disser respeito à classe operária, terá de encontrar, ao atingir um certo grau e uma certa duração, igualmente uma certa compensação económica.
É sobretudo destes males comuns à classe operária e a outras classes, nomeadamente a pequena burguesia, que o socialismo pequeno-burguês, ao qual pertence também Proudhon, se ocupa com predilecção. E assim, não é de modo nenhum por acaso que o nosso proudhoniano alemão(5*) escolhe, antes de mais, a questão da habitação, que, como vimos, não é de forma nenhuma uma questão exclusivamente operária, e a declara, pelo contrário, uma questão verdadeira e exclusivamente operária.
«O operário assalariado está para o capitalista como o inquilino para o proprietário da casa.»
Isto é totalmente falso.
Na questão da habitação temos duas partes frente a frente: o inquilino e o senhorio ou o proprietário da casa. O primeiro quer comprar ao segundo o uso temporário de uma habitação; tem dinheiro ou crédito — mesmo que tenha de comprar este crédito ao próprio proprietário da casa, mais uma vez a um preço usurário como um suplemento ao aluguer. É uma simples venda de mercadoria; não é um negócio entre proletário e burguês, entre operário e capitalista; o inquilino — mesmo que seja operário — surge como um homem de posses, que precisa de já ter vendido a sua mercadoria própria, a força de trabalho, para poder aparecer, com a sua receita, como comprador do usufruto de uma habitação ou que tem de poder dar garantias da venda iminente dessa força de trabalho. Faltam aqui totalmente os resultados peculiares da venda da força de trabalho ao capitalista. O capitalista põe a força de trabalho comprada a produzir, em primeiro lugar, de novo o seu valor mas, em segundo lugar, uma mais-valia que, provisoriamente e sob reserva da sua repartição entre a classe dos capitalistas, fica nas suas mãos. Aqui, portanto, é produzido um valor excedente, é aumentada a soma total do valor existente. É totalmente diferente o que se passa com o negócio dos alugueres. Por mais que o senhorio engane o inquilino, trata-se sempre apenas da transferência de um valor já existente, produzido antes, e a soma total dos valores possuídos no conjunto por inquilino e senhorio permanece a mesma que antes. O operário, quer o seu trabalho seja pago pelo capitalista abaixo, acima ou pelo seu valor, é sempre levado numa parte do produto do seu trabalho; o inquilino só o é se tiver de pagar a casa acima do seu valor. E, portanto, uma deturpação total da relação entre inquilino e senhorio querer equipará-la à que existe entre operário e capitalista. Trata-se, pelo contrário, de um negócio de mercadorias de todo habitual entre dois cidadãos, e este negócio processa-se segundo as leis económicas que regulam a venda de mercadorias em geral e a venda, em especial, da mercadoria: propriedade do solo. Primeiro são tomados em consideração os custos de construção e de manutenção da casa ou da parte de casa em questão; em segundo lugar vem o valor do terreno, condicionado pela situação mais ou menos favorável da casa; finalmente, o que decide é a posição momentânea da relação entre procura e oferta. Esta simples relação económica exprime-se na cabeça do nosso proudhoniano da forma seguinte:
«A casa, uma vez construída, serve como titulo jurídico eterno sobre uma certa fracção do trabalho social, mesmo que o valor real da casa já há muito tenha sido mais do que suficientemente pago ao proprietário na forma de aluguer. Acontece assim que uma casa construída, p. ex., há 50 anos possa, durante esse tempo, com a receita do seu aluguer, cobrir duas, três, cinco, dez vezes, etc, o seu preço de custo original.»
Temos aqui desde logo todo o Proudhon. Primeiro, esquece-se que o aluguer da casa tem não só de pagar os custos da construção mas também de cobrir as reparações e o valor médio de dívidas incobráveis, alugueres não pagos, bem como de eventuais períodos em que a habitação esteja vazia, e, finalmente, de pagarem amortizações anuais o capital investido na construção de uma casa que com o tempo se vai tornando inabitável e sem valor. Segundo, esquece-se que o aluguer da habitação tem igualmente de pagar o aumento do valor do terreno em que a casa está, isto é, que uma parte do aluguer consiste em renda fundiária. É certo que o nosso proudhoniano esclarece logo que esse aumento de valor, uma vez que se verifica sem intervenção do proprietário fundiário, por direito não lhe pertence a ele mas sim à sociedade; mas não repara que está, desse modo, a exigir, na realidade, a abolição da propriedade fundiária, ponto que, se analisado mais de perto, nos levaria muito longe. Finalmente, ele não repara que em todo este negócio não se trata de comprar ao proprietário a casa mas apenas o seu usufruto durante um determinado tempo. Proudhon, que nunca se preocupou com as condições reais, factuais, em que se processa qualquer fenómeno económico, também não pode, naturalmente, explicar como o preço de custo original de uma casa pode em certos casos ser pago dez vezes em cinquenta anos na figura de aluguer. Em vez de analisar economicamente esta questão nada difícil e de verificar se ela está realmente em contradição com as leis económicas, e de que modo, ele socorre-se de um salto ousado da economia para a juridice [Juristerei]: «a casa, uma vez construída, serve como título jurídico eterno» sobre um determinado pagamento anual. Como isto se verifica, como se torna a casa um título jurídico, acerca disso Proudhon cala-se. E, no entanto, é precisamente isso que Proudhon deveria ter esclarecido. Se o tivesse investigado, teria descoberto que nem todos os títulos jurídicos do mundo, mesmo que igualmente eternos, poderiam conferir a uma casa o poder de receber de volta o seu preço de custo dez vezes em cinquenta anos na figura de aluguer, mas que apenas condições económicas (que podem ser socialmente reconhecidas na figura de títulos jurídicos) podem produzir tal efeito. Desse modo, ele estava de novo tão longe como no início.
Toda a doutrina de Proudhon assenta neste salto de salvação que vai da realidade económica para a frase jurídica. O valente Proudhon, sempre que deixa escapar a conexão económica — e isto acontece nele com todas as questões sérias — refugia-se no campo do direito e apela para a justiça eterna.
«Proudhon vai buscar primeiro o seu ideal de justiça eterna às relações jurídicas correspondentes à produção mercantil, com o que — diga-se de passagem — é também fornecida a prova, tão consoladora para todos os pequeno-burgueses [Spiessbürger], de que a forma da produção mercantil é tão necessária como a justiça. Depois quer, ao invés, remodelar a verdadeira produção mercantil e o direito real que lhe corresponde de acordo com esse ideal. Que pensaríamos de um químico que, em vez de estudar as leis reais do metabolismo e de, com base nas mesmas, resolver determinadas tarefas, quisesse remodelar o metabolismo pelas "ideias eternas" da "naturalidade e do parentesco"? Será que se fica a saber mais acerca do usurário dizendo que ele contradiz a "justiça eterna" e a "equidade eterna" e a "reciprocidade eterna" e outras "verdades eternas", do que aquilo que os padres da Igreja sabiam quando diziam que ele contradizia a "misericórdia eterna", a "fé eterna" e a "eterna vontade de Deus"?» (Marx, Capital, p. 45.)(6*)
O nosso proudhoniano(7*) não anda muito melhor do que o seu senhor e mestre:
«O contrato de arrendamento é uma das mil transacções que, na vida da sociedade moderna, são tão necessárias como a circulação do sangue no corpo dos animais. Seria naturalmente do interesse desta sociedade que todas estas transacções estivessem penetradas de uma ideia de direito, isto é, fossem por toda a parte realizadas segundo as rigorosas exigências da justiça. Numa palavra, a vida económica da sociedade tem de, como diz Proudhon, elevar-se à altura de um direito económico. Como se sabe, é precisamente o contrário que na verdade se verifica.»
Será de acreditar que, cinco anos depois de Marx ter caracterizado o proudhonismo de forma tão concisa e certeira precisamente sob este aspecto decisivo, seja possível mandar imprimir ainda coisas tão confusas em língua alemã? Que significa afinal este galimatias? Nada, a não ser que os efeitos práticos das leis económicas que regem a sociedade de hoje ferem o sentimento de direito do autor e que ele alimenta o piedoso desejo de que a coisa se possa compor de tal forma que isso tenha remédio. — Bem, se os sapos tivessem cauda, não seriam sapos! E não estará o modo de produção capitalista «penetrado por uma ideia do direito», nomeadamente a do seu próprio direito à exploração dos operários? E, se o autor nos diz que esta não é a sua ideia de direito, será que demos um passo em frente?
Mas voltemos à questão da habitação. O nosso proudhoniano dá agora livre curso à sua «ideia de direito» e faz a comovedora declamação seguinte:
«Não temos dúvidas em afirmar que não há escárnio mais terrível de toda a cultura do nosso famoso século do que o facto de, nas grandes cidades, 90 por cento ou mais da população não ter qualquer lugar a que possa chamar seu. O centro peculiar da existência moral e da família, casa e lar, é arrastado pelo turbilhão social... Neste aspecto, estamos muito abaixo dos selvagens. O troglodita tem a sua caverna, o australiano tem a sua cabana de barro, o índio tem o seu próprio lar — o proletário moderno está, de facto, suspenso no ar», etc.
Nesta jeremiada temos o proudhonismo em toda a sua figura reaccionária. Para criar a moderna classe revolucionária do proletariado era absolutamente necessário cortar o cordão umbilical que ainda ligava o operário do passado à terra. O tecelão manual, que, além do seu tear, tinha a sua casinha, hortazinha e campozinho, era, apesar de toda a miséria e de toda a opressão política, um homem tranquilo e satisfeito, «muito devoto e honrado», tirava o chapéu aos ricos, aos padres e aos funcionários do Estado e era, interiormente, um escravo de uma ponta a outra. Foi precisamente a grande indústria moderna, que faz do operário preso à terra um proletário fora-da-lei(8*), completamente sem posses e liberto de todas as cadeias tradicionais, foi precisamente essa revolução económica que criou as condições sob as quais somente a exploração da classe trabalhadora na sua forma última, na produção capitalista, pode ser derrubada. E vem agora este choroso proudhoniano lamentar-se, como se fosse um grande retrocesso, da expulsão do operário da sua casa e lar, que foi precisamente a condição primeiríssima da sua emancipação espiritual.
Há 27 anos descrevi (Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra) nos seus traços principais precisamente este processo de expulsão dos operários da casa e do lar tal como se completou no século XVIII em Inglaterra. As infâmias cometidas nesse processo pelos proprietários fundiários e fabricantes, os efeitos material e moralmente desvantajosos que essa expulsão necessariamente teve, no imediato, nos operários afectados estão também devidamente apresentados nessa obra. Mas poderia eu lembrar-me de ver nesse processo de desenvolvimento histórico, absolutamente necessário naquelas circunstâncias, um retrocesso «para trás dos selvagens»? Impossível. O proletário inglês de 1872 está infinitamente acima do tecelão rural com «casa e lar» de 1772. E será que o troglodita, com a sua caverna, o australiano, com a sua cabana de barro, o índio, com o seu lar próprio, alguma vez farão uma insurreição de Junho[N21] e uma Comuna de Paris?
Só o burguês é que duvida de que, desde a introdução da produção capitalista em grande escala, no todo a situação dos operários se tornou materialmente pior. Mas deveremos, por causa disso, olhar para trás com saudade para as panelas de carne (também muito magras) do Egipto[N264], para a pequena indústria rural, que só criou almas de servos, ou para os «selvagens»? Pelo contrário. Só o proletariado criado pela grande indústria moderna, libertado de todas as cadeias herdadas, incluindo as que o amarravam à terra, e reunido nas grandes cidades é capaz de realizar a grande transformação social que porá fim a toda a exploração de classe e a todo o domínio de classe. Os antigos tecelãos manuais rurais com casa e lar nunca seriam capazes disso, nunca teriam podido conceber tal ideia e ainda menos teriam podido querer a sua realização.
Para Proudhon, em contrapartida, toda a revolução industrial dos últimos cem anos, o vapor, a grande produção fabril, que substitui o trabalho manual pelas máquinas e multiplica por mil a força de produção do trabalho, representam um acontecimento extremamente contrariador, algo que, propriamente, não deveria ter acontecido. O pequeno burguês Proudhon exige um mundo em que cada um fabrique um produto à parte, autónomo, imediatamente consumível ou trocável no mercado; se então cada um recuperar em outro produto o valor completo do seu trabalho, isso será suficiente para satisfazer a «justiça eterna» e fabricar o melhor dos mundos. Mas este melhor dos mundos de Proudhon foi logo calcado no embrião pelo pé do desenvolvimento progressivo da indústria, que há muito destruiu o trabalho individual em todos os grandes ramos da indústria e o destrói cada vez mais nos ramos menores, mesmo reduzidos, substituindo-o pelo trabalho social, apoiado em máquinas e nas forças dominadas da natureza e cujo produto acabado, imediatamente trocável ou consumível, é a obra comum de muitos indivíduos por cujas mãos ele teve de passar. E foi precisamente por meio desta revolução industrial que a força de produção do trabalho humano atingiu um nível tal que, com uma divisão racional do trabalho entre todos, existe a possibilidade — pela primeira vez desde que existem homens — não só de produzir o suficiente para um consumo bastante por todos os membros da sociedade e para um fundo de reserva abundante mas também para permitir a cada indivíduo ócios suficientes para que aquilo que, na cultura transmitida historicamente — ciência, arte, formas de convivência social, etc. —, merece verdadeiramente ser mantido, não só seja mantido mas também transformado e aperfeiçoado, deixando de ser monopólio da classe dominante e passando a ser bem comum de toda a sociedade. E aqui reside o ponto decisivo. Logo após a força de produção do trabalho humano se ter desenvolvido a este nível, desaparece todo o pretexto para a existência de uma classe dominante. É que a razão última com que se defendeu a diferença de classes foi sempre a de que tem de haver uma classe que não precise de cansar-se com a produção da sua subsistência diária, a fim de ter tempo de se ocupar do trabalho espiritual da sociedade. A raiz destes disparates, que tiveram até agora a sua grande justificação histórica, foi cortada de uma vez por todas pela revolução industrial dos últimos cem anos. A existência de uma classe dominante torna-se diariamente um obstáculo maior para o desenvolvimento da força produtiva industrial, bem como para o da ciência, da arte e, nomeadamente, das formas cultas de convivência! Nunca houve maiores labregos do que os nossos burgueses modernos.
Nada disto interessa o amigo Proudhon. Ele quer a «justiça eterna» e nada mais. Cada um deve receber, em troca do seu produto, todo o rendimento do trabalho, o valor completo do seu trabalho. Calculá-lo, porém, num produto da indústria moderna é coisa complicada. A indústria moderna oculta precisamente a parte particular de cada um no produto global, parte que, no antigo trabalho manual individual, se apresentava de forma evidente no produto fabricado. Além disso, a indústria moderna elimina cada vez mais a troca individual, sobre a qual está construído todo o sistema de Proudhon, nomeadamente, a troca directa entre dois produtores cada um dos quais troca o produto do outro para o consumir. Por isso, todo o proudhonismo é atravessado por um traço reaccionário, uma aversão contra a revolução industrial, e, manifestando-se ora mais aberta ora mais ocultamente, pelo desejo de deitar fora toda a indústria moderna, máquinas a vapor, máquinas de fiar e outros embustes e de regressar ao velho, sólido, trabalho manual. Que percamos então novecentos e noventa e nove milésimos da força de produção, que toda a humanidade seja condenada à pior escravidão do trabalho, que a fome se torne regra universal — que importa isso, se conseguirmos organizar a troca de tal forma que cada um receba o «rendimento completo do trabalho» e se realize a «justiça eterna»? Fiat justitia, pereat mundus!
Faça-se justiça,
nem que o mundo pereça!
E o mundo pereceria mesmo com esta contra-revolução de Proudhon, se ela fosse em geral realizável.
Aliás, é evidente que mesmo na produção social, condicionada pela grande indústria moderna, se pode assegurar a cada um «o rendimento completo do seu trabalho», na medida em que esta frase tenha um sentido. E ela só tem um sentido se for alargada ao ponto de não ser cada operário isolado a tornar-se possuidor desse «rendimento completo do seu trabalho», mas sim de ser toda a sociedade, constituída unicamente por operários, a possuidora do produto global do seu trabalho, produto que ela em parte distribui para consumo entre os seus membros, em parte utiliza para substituição e aumento dos seus meios de produção e em parte acumula como fundo de reserva da produção e consumo.
Depois do que foi dito podemos já saber antecipadamente a forma como o nosso proudhoniano resolverá a grande questão da habitação. Por um lado, temos a reivindicação de que cada operário tem de ter uma habitação própria, que lhe pertença, para não estarmos mais tempo abaixo dos selvagens. Por outro lado, temos a garantia de que o pagamento do custo original de uma casa duas, três, cinco ou dez vezes, na figura de aluguer, tal como de facto se verifica, assenta num título jurídico e que este título jurídico se encontra em contradição com a «justiça eterna». A solução é fácil: abolimos o título jurídico e, em virtude da justiça eterna, declaramos o aluguer pago como uma amortização do preço da própria habitação. Quando se estabelecem pressupostos que já contêm em si a conclusão, naturalmente que já não é então necessária mais habilidade do que a que qualquer charlatão possui para tirar do saco o resultado previamente preparado e gabar-se da lógica inabalável da qual ele é produto.
É assim que aqui acontece. A abolição das casas de aluguer é proclamada como necessidade, nomeadamente sob a figura de se exigir a transformação de cada inquilino em proprietário da sua habitação. Como se faz isto? É muito simples:
«A casa de aluguer é abolida... O valor da casa é pago ao seu actual proprietário até ao último centavo. Em vez de, como até aqui, o aluguer pago representar o tributo que o inquilino paga ao eterno direito do capital, em vez disso a soma exactamente regulamentada paga pelo inquilino torna-se, a partir do dia em que é proclamada a abolição das casas de aluguer, na amortização anual da habitação que transitou para a sua posse... A sociedade... transforma-se por esta via num conjunto de livres e independentes proprietários de habitações.»
O proudhoniano(9*) vê um crime contra a justiça eterna no facto de o proprietário da casa poder, sem trabalho, arrecadar renda fundiária e juros a partir do seu capital investido na casa; decreta que isso tem de acabar; que o capital investido em casas não deve proporcionar mais nenhum juro e na medida em que representa propriedade fundiária adquirida também não deve proporcionar qualquer renda fundiária. Mas já vimos que o modo de produção capitalista, base da sociedade actual, não é absolutamente nada afectado com isso. O eixo à volta do qual gira a exploração do operário é a venda da força de trabalho ao capitalista e o uso que o capitalista faz deste negócio, na medida em que obriga o operário a produzir muito mais do que o valor pago pela força de trabalho. E este negócio entre capitalista e operário que produz toda a mais-valia que depois se reparte na figura de renda fundiária, lucro comercial, juro do capital, impostos, etc, pelas diversas categorias de capitalistas e seus servidores. E vem o nosso proudhoniano e crê que se daria um passo em frente se se proibisse a uma única categoria de capitalistas — e nomeadamente de capitalistas que não compram directamente qualquer força de trabalho, isto é, que não levam também à produção de mais-valia — de realizar lucros ou juros! A massa de trabalho não pago arrancado à classe operária permaneceria exactamente igual mesmo que amanhã se retirasse aos proprietários de casas a possibilidade de cobrarem renda fundiária e juros, o que não impede o nosso proudhoniano de declarar:
«A abolição das casas de aluguer é uma das aspirações mais fecundas e grandiosas , nasce do seio da ideia revolucionária e tem de tornar-se uma reivindicação de primeira ordem por parte da democracia social.»
Exactamente a mesma charlatanice do próprio mestre Proudhon, cujo cacarejar está também sempre na razão inversa do tamanho dos ovos postos.
Imaginai agora a bela situação que teríamos se cada operário, pequeno burguês e burguês fosse obrigado a tornar-se, por meio de amortizações anuais, primeiro proprietário parcial e depois total da sua habitação! Nos distritos industriais da Inglaterra onde há grande indústria mas pequenas casas de operários e cada operário casado habita uma casinha só para si, a coisa ainda poderia ter sentido. Mas a pequena indústria de Paris, bem como da maioria das grandes cidades do continente, é complementada por grandes casas em que vivem juntas dez, vinte, trinta famílias. No dia do decreto libertador do mundo que proclama a abolição das casas de aluguer, Pedro trabalha numa fábrica de máquinas em Berlim. Ao cabo de um ano ele é proprietário, digamos, de um quinze avos da sua habitação composta por um quarto situado num quinto andar próximo da Porta de Hamburgo. Ele perde o seu trabalho e encontra-se pouco depois numa habitação semelhante, com brilhantes vistas para o pátio, no terceiro andar, junto a Pothof, em Hannover, onde, ao fim de uma estada de cinco meses, adquiriu exactamente 1/36 da propriedade, quando uma greve o empurra para Munique e o obriga, após onze meses de permanência, a possuir exactamente 11/180 do direito de propriedade de uma construção bastante escura, ao nível do chão, por trás da Ober-Angergasse. Outras mudanças, como hoje tão frequentemente acontece aos operários, se lhe vêm acrescentar: 7/360 de uma não menos recomendável habitação em St. Gallen, 23/180 de uma outra em Leeds e 347/56 223, calculados com exactidão, para que a «justiça eterna» não se possa queixar, de uma terceira em Seraing. Mas que recebe então o nosso Pedro de todas estas partes de habitações? Quem lhe dá o valor correcto por elas? Onde vai ele descobrir o ou os proprietários das partes restantes das suas diferentes antigas habitações? E quais serão as relações de propriedade de uma qualquer grande casa que no conjunto dos seus pisos tem, digamos, vinte habitações e que, depois de decorrido o período de amortização e de terem sido abolidas as casas de aluguer, pertence talvez a trezentos proprietários parciais espalhados por todas as regiões do mundo? O nosso proudhoniano responderá que até lá existirá o Banco de Troca de Proudhon que a cada momento pagará a cada um por qualquer produto do trabalho o rendimento completo do trabalho e, portanto, também o valor completo de uma parte de habitação. Mas, primeiro, o Banco de Troca de Prouhdon não nos importa aqui absolutamente nada, uma vez que não aparece mencionado em parte nenhuma sequer dos artigos sobre a questão da habitação; segundo, ele assenta no estranho erro de pensar que alguém que queira vender uma mercadoria encontra sempre necessariamente um comprador pelo seu valor completo e, terceiro, antes de Proudhon o descobrir, faliu já por mais de uma vez em Inglaterra sob o nome de Labour Exchange Bazaar[N265].
Toda a concepção de que o operário deve comprar a sua habitação assenta por sua vez na reaccionária visão fundamental de Proudhon já assinalada de que as situações criadas pela grande indústria moderna são excrescências doentias e que a sociedade tem de ser levada pela força — isto é, contra a corrente que segue há cem anos — a uma situação em que o antigo e estável trabalho manual do produtor individual seja a regra, e que não é, em geral, mais do que uma reprodução idealizada da pequena empresa, já arruinada e que continua a arruinar-se. Só quando os operários estiverem de novo lançados nessa estável situação, só quando o «turbilhão social» tiver sido eliminado para bem, é que o operário poderá naturalmente fazer também de novo uso da propriedade da «casa e lar» e a teoria da amortização atrás indicada parecerá menos absurda. Só que Proudhon esquece que, para realizar isto, tem primeiro de fazer o relógio da história mundial andar para trás cem anos e que, desse modo, tornaria os operários de hoje de novo em almas de escravos tão limitadas, rastejantes e hipócritas como o foram os seus tetravôs. Na medida em que nesta solução de Proudhon para a questão da habitação reside um conteúdo racional, praticamente realizável, ela já está hoje em dia a ser realizada e essa realização não nasce «do seio da ideia revolucionária», mas... da própria grande burguesia. Ouçamos a este respeito uma excelente folha espanhola, La Emancipación[N266], de Madrid, de 16 de Março de 1872:
«Há ainda um outro meio de resolver o problema da habitação, que foi proposto por Proudhon e que, à primeira vista, deslumbra mas que, com um exame mais de perto, revela a sua total impotência. Proudhon propôs que os inquilinos se transformassem em compradores a prestações, de modo que o aluguer pago anualmente fosse contado como amortização do valor da habitação e o inquilino, após o decurso de um certo tempo, se tornasse proprietário dessa habitação. Este meio, que Proudhon considerava muito revolucionário, está a ser posto em acção em todos os países por sociedades de especuladores que desta forma, por meio do aumento do preço das rendas, fazem pagar duas a três vezes o valor das casas. O senhor Dollfus e outros grandes fabricantes do Nordeste da França realizaram este sistema não só para sacar dinheiro mas também, além disso, com uma intenção política oculta.
«Os dirigentes mais inteligentes das classes dominantes sempre orientaram os seus esforços no sentido de aumentarem o número dos pequenos proprietários com o fim de criarem um exército contra o proletariado. As revoluções burguesas do século passado dividiram a grande propriedade fundiária da nobreza e da igreja em pequena propriedade de parcelas — como hoje os republicanos espanhóis querem fazer com a grande propriedade ainda existente —, e criaram assim uma classe de pequenos proprietários de terra que desde então se tornou no mais reaccionário elemento da sociedade e num obstáculo constante ao movimento revolucionário do proletariado urbano. Napoleão III tentou criar nas cidades uma classe semelhante pela diminuição do montante individual dos títulos de dívida pública, e o senhor Dollfus e os seus colegas, vendendo aos seus operários pequenas habitações a pagar em prestações anuais, procuravam abafar todo o espírito revolucionário nos operários e, simultaneamente, por meio da propriedade da terra, amarrá-los à fábrica em que uma vez trabalhassem; de modo que o plano de Proudhon não só não trouxe qualquer alívio à classe operária — como se voltou mesmo directamente contra ela.»(10*)
Como resolver então a questão da habitação? Exactamente como se resolve qualquer outra questão social na sociedade de hoje: pelo equilíbrio económico gradual entre procura e oferta, solução que reproduz constantemente a questão e que, portanto, não é solução. Como uma revolução social pode resolver esta questão não depende apenas das circunstâncias de cada caso, mas também, conjuntamente, das questões muito mais profundas, entre as quais a superação da oposição entre cidade e campo é uma das mais essenciais. Como não temos de fazer nenhuns sistemas utópicos para organização da sociedade do futuro, seria mais do que ocioso entrar nesse assunto. É, porém, certo que já hoje existem nas grandes cidades edifícios suficientes para, com uma utilização racional dos mesmos, se remediar de imediato toda a «falta de habitação» real. Isto só pode, naturalmente, acontecer por meio da expropriação dos actuais proprietários ou pelo alojamento nos seus prédios de operários que não têm casa ou que têm até aqui vivido apertados nas suas habitações, e, logo que o proletariado tenha conquistado o poder político, esta medida, imposta pelo bem público, será tão fácil de executar como o são hoje outras expropriações e acantonamentos pelo actual Estado.
O nosso proudhoniano(11*), porém, não está satisfeito com os seus resultados até agora na questão da habitação. Tem de elevá-la da Terra chã à região do socialismo superior, para que ela também aí demonstre ser uma «fracção» essencial «da questão social».
«Suponhamos agora que a produtividade do capital é agarrada realmente pelos cornos, tal como mais cedo ou mais tarde tem de acontecer, através, por exemplo, de uma lei de transição que fixe o juro de todos os capitais em um por cento, com a tendência, note-se, de aproximar esta percentagem cada vez mais do ponto zero de tal modo que finalmente nada mais se pague do que o trabalho necessário à rotação do capital. Como todos os outros produtos, também a casa e a habitação estão naturalmente abrangidas no quadro dessa lei... O proprietário será ele próprio o primeiro a estender a mão à venda, pois de outro modo a sua casa ficaria não utilizada e o capital nela investido ficaria simplesmente inútil.»
Esta proposição contém um dos principais artigos de fé do catecismo proudhoniano e dá um exemplo marcante da confusão nele dominante.
A «produtividade do capital» é um absurdo que Proudhon toma sem exame dos economistas burgueses. É certo que os economistas burgueses começam também com a proposição de que o trabalho é a fonte de toda a riqueza e a medida do valor de todas as mercadorias; mas teriam também de explicar como é que o capitalista, que adiante capital num negócio industrial ou de artesanato, recupera no fim desse negócio não só o capital que adiantou mas também, para além disso, ainda um lucro. Teriam, portanto, de enredar-se em toda a espécie de contradições e atribuir também ao capital uma certa produtividade. Nada prova melhor quão profundamente Proudhon está ainda preso no modo de pensar burguês do que o facto de ele se ter apropriado deste modo de falar da produtividade do capital. Vimos logo no início que a chamada «produtividade do capital» nada mais é do que a qualidade que lhe está ligada (nas relações sociais de hoje, sem as quais não haveria nenhum capital) de poder apropriar-se do trabalho não pago dos trabalhadores assalariados.
Mas Proudhon distingue-se dos economistas burgueses pelo facto de não aprovar esta «produtividade do capital» mas, pelo contrário, por nela descobrir uma violação da «justiça eterna». É ela que impede o operário de receber o produto completo do seu trabalho. Tem, portanto, de ser abolida. E como? Baixando, por meio de leis coercivas, a taxa de juro e reduzindo-a, finalmente, a zero. Então, segundo o nosso proudhoniano, o capital deixará de ser produtivo.
O juro do capital-dinheiro emprestado é apenas uma parte do lucro; o lucro, seja do capital industrial seja do capital comercial, é apenas uma parte da mais-valia extraída na figura de trabalho não pago à classe operária pela classe dos capitalistas. As leis económicas que regem a taxa de juro são tão independentes das que regem a taxa de mais-valia quanto o podem ser entre si leis de uma e mesma forma de sociedade. No que respeita, porém, à repartição desta mais-valia entre os capitalistas individuais, é claro que para os industriais e comerciantes que têm nas suas empresas muito capital adiantado por outros capitalistas a taxa do seu lucro tem de subir na mesma medida em que a taxa de juro cai se todas as outras circunstâncias permanecerem iguais. A descida e, finalmente, a abolição da taxa de juro não agarraria, portanto, de forma nenhuma, a chamada «produtividade do capital» realmente «pelos cornos», antes regularia apenas de forma diferente a repartição entre os capitalistas individuais da mais-valia não paga extraída à classe operária e não asseguraria uma vantagem ao operário face ao capitalista industrial mas sim ao capitalista industrial face ao rentier(12*).
Do seu ponto de vista jurídico,. Proudhon não explica a taxa de juro, como todos os factos económicos, através das condições da produção social, mas através de leis do Estado nas quais essas condições recebem uma expressão geral. A partir deste ponto de vista, a que falta toda a noção da conexão das leis do Estado com as condições de produção da sociedade, essas leis do Estado aparecem necessariamente como ordens puramente arbitrárias que podem a qualquer momento ser substituídas pelo seu contrário directo. Portanto, para Proudhon nada é mais fácil do que fazer um decreto — desde que tenha poder para isso — através do qual se baixa a taxa de juro para uma determinada percentagem. E, se todas as outras circunstâncias sociais permanecerem tal como eram, então este decreto de Proudhon só existirá mesmo no papel. A taxa de juro continuará a regular-se pelas leis económicas a que está hoje sujeita, apesar de todos os decretos; as pessoas solventes continuarão, conforme as circunstâncias, a aceitar dinheiro a 2, 3, 4 e mais por cento, tal como anteriormente, e a única diferença será que os rentiers tomarão as suas precauções, só adiantando dinheiro às pessoas das quais não será de esperar nenhum processo. Refira-se que este grande plano de tirar ao capital a sua «produtividade» é arquivelho, tão velho como as leis sobre a usura, que apenas visam limitar a taxa de juro, e que agora estão abolidas em toda a parte, porque na prática eram sempre violadas ou contornadas e o Estado foi obrigado a reconhecer a sua impotência perante as leis da produção social. E é a reintrodução destas leis medievais e inaplicáveis que deve «agarrar pelos cornos a produtividade do capital»? Vê-se que, quanto mais de perto analisarmos o proudhonismo tanto mais reaccionário ele aparece.
E quando, então, a taxa de juro for deste modo reduzida a zero, e, portanto, o juro do capital for abolido, então não se «paga nada mais do que o trabalho necessário à rotação do capital». Isto deve significar que a abolição da taxa de juro equivale à abolição do lucro e mesmo da mais-valia. Mas, se fosse realmente possível abolir o juro por decreto, qual seria a consequência? Que a classe dos rentiers não teria mais qualquer motivo para emprestar o seu capital na figura de adiantamentos, mas antes para investi-lo por sua conta industrialmente ou em sociedades por acções. A massa da mais-valia retirada à classe operária pela classe dos capitalistas permaneceria a mesma, só a sua repartição se alteraria, e mesmo esta não significativamente.
De facto, o nosso proudhoniano não repara que já agora, na venda de mercadorias na sociedade burguesa, não se paga, em média, mais do que «o trabalho necessário à rotação do capital» (quer dizer, para a produção de uma mercadoria determinada). O trabalho é a medida do valor de todas as mercadorias e, na sociedade actual — se abstrairmos das oscilações do mercado —, é puramente impossível pagar-se pelas mercadorias, na média total, mais do que o trabalho necessário ao seu fabrico. Não, não, caro proudhoniano, o busílis está totalmente alhures, está em que «o trabalho necessário à rotação do capital» (para usar o seu confuso modo de expressão) precisamente não é completamente pago! Pode ler em Marx (Capital, pp. 128-160(13*)) como isto se processa.
Mas isto não chega. Quando o juro do capital [Kapitalzins] é abolido, fica desse modo abolido também o aluguer [Mietzins](14*). Porque «como todos os outros produtos, também a casa e a habitação estão naturalmente abrangidas no quadro dessa lei». Isto vai totalmente no espírito do velho major que mandou chamar um dos seus soldados com um ano de serviço:
«Diga lá, ouvi dizer que é doutor, por isso venha de vez em quando a minha casa: quando se tem uma mulher e sete filhos, há sempre qualquer coisa para remendar.»
O soldado: «Mas desculpe, senhor major, eu sou doutor em Filosofia.»
O major: «Para mim é totalmente igual, um carniceiro é um carniceiro.»
O mesmo se passa com o nosso proudhoniano: aluguer [Mietzins] ou juro do capital [Kapitalzins], é para ele totalmente igual, juro é juro, um carniceiro é um carniceiro. Vimos atrás que o preço do aluguer [Mietpreis], vulgo aluguer [Mietzins], compõe-se:
E agora tem de ficar claro mesmo para o mais cego que:
«O proprietário será ele próprio o primeiro a estender a mão à venda, pois de outro modo a sua casa ficaria não utilizada e o capital nela investido ficaria simplesmente inútil.»
Naturalmente. Quando se abole o juro sobre o capital emprestado, nenhum proprietário de casas pode já receber mais um centavo de aluguer pela sua casa, pelo simples facto de que ao aluguer [Miete] se pode também chamar juro de aluguer [Mietzms] e porque o juro de aluguer encerra uma parte que é, realmente, juro do capital. Um carniceiro é um carniceiro. Se as leis sobre a usura, no que respeita ao juro do capital habitual, puderam ser tornadas ineficazes apenas contornadas, então elas nunca afectaram, nem de longe, a taxa do aluguer da casa. Estava reservado a Proudhon imaginar que a sua nova lei sobre a usura aboliria e regularia gradualmente, só por si, não só o simples juro do capital mas também o complicado aluguer [Mietzins] das habitações. Por que razão se deve então comprar ainda ao proprietário, por bom dinheiro, a sua «simplesmente inútil» casa e porque é quer nestas circunstâncias, o proprietário não dá ainda dinheiro para se livrar dessa casa «simplesmente inútil», para não ter de aplicar nela mais nenhuns custos de reparação — sobre isso deixam-nos às escuras.
Depois desta triunfal realização no campo do socialismo superior (supra-socialismo, como lhe chamou o mestre Proudhon) o nosso proudhoniano considera-se autorizado a voar ainda algo mais alto.
«Agora já só se trata de tirar ainda algumas conclusões para, de todos os lados, se fazer plena luz sobre o nosso tão significativo assunto.»
E quais são essas conclusões? Coisas que resultam tão pouco do que foi dito atrás como a falta de valor das casas de habitação resulta da abolição da taxa de juro e que, despojadas do modo de falar pomposo e solene do nosso autor, nada mais significam a não ser que para uma melhor liquidação do resgate das casas de aluguer é desejável: 1. uma estatística exacta sobre o assunto, 2. uma boa polícia sanitária e 3. cooperativas de operários da construção civil que possam empreender a nova construção de casas — tudo coisas que certamente são muito belas e boas mas que, apesar de todos os disfarces com frases de charlatão, não trazem absolutamente nenhuma «plena luz» às trevas da confusão mental de Proudhon.
Quem realizou algo de tão grandioso tem agora também o direito de dirigir aos operários alemães uma séria advertência:
«Estas e outras questões semelhantes são plenamente dignas, parece-nos, da atenção da democracia social... Possa ela procurar esclarecer-se, tal como aqui acerca da questão da habitação, também acerca de outras questões igualmente importantes, como o crédito, a dívida pública, as dívidas privadas, os impostos, etc», etc.
O nosso proudhoniano coloca-nos aqui, portanto, perante toda uma série de artigos sobre «questões semelhantes» em perspectiva, e, se ele as tratar a todas tão pormenorizadamente como o presente «tão significativo assunto», então o Volksstaat terá manuscritos suficientes para um ano. Podemos, porém, antecipar-nos a isso, pois tudo irá dar ao que já foi dito: o juro do capital é abolido, e desse modo desaparece o juro a pagar pela dívida pública e pelas dívidas privadas, o crédito fica sem encargos, etc. A mesma palavra mágica aplica-se a todos os assuntos que se queira, obtendo-se em cada caso, com uma lógica implacável, o espantoso resultado de que, quando o juro do capital é abolido, já não se tem de pagar quaisquer juros por dinheiro recebido por empréstimo.
De resto, é com belas questões que o nosso proudhoniano nos ameaça: crédito! De que crédito precisa o operário além do crédito de uma semana para a outra ou do crédito da casa de penhores? Quer ele lhe seja concedido sem encargos ou com juros, mesmo que juros usurários da casa de penhores, que diferença lhe faz? E se ele, considerado no geral, tirasse daí alguma vantagem, isto é, se os custos de produção da força de trabalho se tornassem mais baratos, não teria de baixar o preço da força de trabalho? Porém, para o burguês, e especialmente para o pequeno burguês, para eles, o crédito é uma questão importante e especialmente para o pequeno burguês seria uma bela coisa poder obter crédito a todo o momento e, além disso, sem pagamento de juros. «Dívida pública»! A classe operária sabe que não foi ela que a fez e, quando chegar ao poder, deixará o respectivo pagamento a cargo de quem a contraiu. — «Dívidas privadas»! — ver crédito. «Impostos»! Coisas que interessam muito à burguesia mas só muito pouco aos operários: aquilo que o operário paga de impostos é com o tempo incluído nos custos de produção da força de trabalho e tem, portanto, de ser também reembolsado pelo capitalista. Todos estes pontos, que aqui nos são apresentados como questões de alta importância para a classe operária, só têm na realidade interesse essencial para o burguês e mais ainda para o pequeno burguês, e nós afirmamos, apesar de Proudhon, que a classe operária não tem qualquer vocação para tomar a cargo os interesses destas classes.
Acerca da grande questão que diz realmente respeito aos operários, acerca da relação entre capitalista e operário assalariado, acerca da questão de como é que o capitalista pode enriquecer com o trabalho dos seus operários, o nosso proudhoniano não diz palavra. Sem dúvida que o seu senhor e mestre se ocupou disso, mas não lhe trouxe absolutamente nenhuma luz e nem mesmo nos seus últimos escritos está, no essencial, mais avançado do que na Philosophie de la misère (Filosofia da Miséria) que Marx já em 1847 reduzira de forma tão marcante a toda a sua nulidade(15*).
É bastante mau que os operários de línguas românicas não tenham tido desde há vinte e cinco anos quase nenhum outro alimento espiritual socialista senão os escritos deste «socialista do segundo Império»; seria uma dupla infelicidade que a teoria proudhoniana ainda devesse inundar agora também a Alemanha. Mas disto já estamos precavidos. O ponto de vista teórico dos operários alemães está cinquenta anos à frente do proudhoniano, e bastará tomar como exemplo esta única questão da habitação para serem poupados ulteriores esforços a este respeito.
Notas de rodapé:
(4*) In Marx, Misère de la Filosofia etc [Miséria da Filosofia etc.], Bruxelas e Paris, 1847. (Nota de Engels) (retornar ao texto)
(5*) A. Mülberger. (retornar ao texto)
(6*) K. Marx/F. Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlin 1974, Bd. 23, S. 99-100. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(7*) A. Mülberger. (retornar ao texto)
(8*) Vogelfrei, no original alemão. Há aqui um jogo de palavras, pois o termo alemão significa "fora-da-lei" e "livre como um pássaro" (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(9*) A. Mülberger. (retornar ao texto)
(10*) Como esta solução da questão da habitação, amarrando os operários a um «lar» próprio nas proximidades das grandes cidades americanas ou das que estão em crescimento, se torna espontânea é referida na passagem seguinte de uma carta de Eleanor Marx-Aveling, de Indianápolis, 28 de Novembro de 1866: «Em Kansas City, ou, melhor, perto da cidade, vimos miseráveis barracas de madeira, pequenas, talvez com três quartos, numa zona ainda selvagem; o terreno custava 600 dólares e tinha precisamente o tamanho suficiente para pôr nele a pequena casinha; esta custava outros 600 dólares, isto é, no total 4800 marcos por uma coisinha miserável, a uma hora de caminho da cidade, num deserto de lama.» Deste modo, os operários são obrigados a contrair pesadas dívidas hipotecárias só para conservarem essas habitações, passando a ser verdadeiros escravos dos seus patrões; estão presos às suas casas, não podem afastar-se e são obrigados a aceitar todas as condições de trabalho que lhes sejam oferecidas. (Nota de Engels à edição de 1887.) (retornar ao texto)
(11*) A. Mülberger. (retornar ao texto)
(12*) Em francês no texto: o que possui ou vive de rendimentos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(13*) K. Marx/F. Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlin 1974, Bd. 23, S. 179-209. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(14*) Jogo de palavras entre Zins, que quer dizer juro, e Mietzins (ou Miete), que quer dizer aluguer (literalmente: juro de aluguer). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(15*) Cf. K. Marx, Misère de la philosophie. Réponse à la philosophie de la misère de M. Proudhon [Miséria da Filosofia. Resposta à Filosofia da Miséria do Sr. Proudhon]. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N21] Insurreição de Junho: insurreição heróica dos operários de Paris em 23-26 de Junho de 1848, reprimida com excepcional crueldade pela burguesia francesa. A insurreição foi a primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia. (retornar ao texto)
[N55] Der Volksstaat (O Estado Popular): órgão central do Partido Operário Social-Democrata alemão (eisenachianos), publicado em Leipzig de 2 de Outubro de 1869 a 29 de Setembro de 1876. A direcção geral do jornal era assegurada por W. Liebknecht; August Bebel administrava a editora. Marx e Engels colaboraram no jornal, auxiliando constantemente a sua redacção. Até 1869 o jornal publicou-se com o nome de Demokratisches Wochenblatt (Semanário Democrático). (Ver nota 95.) (retornar ao texto)
[N95] Demokratisches Wochenblatt (Semanário Democrático): jornal operário alemão, editado de Janeiro de 1868 a Setembro de 1869 em Leipzig sob a direcção de W. Liebknecht. O jornal desempenhou um importante papel na criação do Partido Operário Social-Democrata alemão. No congresso de Eisenach, em 1869, foi declarado órgão central do Partido Operário Social-Democrata e mudou de nome para Volksstaat. Marx e Engels colaboraram no jornal. (retornar ao texto)
[N255] Seis artigos de Mülberger sob o título «Die Wohnungsfrage» («A questão da habitação») foram publicados sem assinatura no jornal Volksstaat de 3, 7, 10, 14 e 21 de Fevereiro e 6 de Março de 1872; mais tarde estes artigos foram publicados em forma de brochura: Die Wohnungsfrage. Eine sociale Skizze, Separat-Abdruck aus dem Volksstaat, Leipzig, 1872 (A Questão da Habitação. Esboço Social, separata do Volksstaat, Leipzig, 1872). (retornar ao texto)
[N264] Engels emprega aqui ironicamente a expressão «ter saudades das panelas de carne do Egipto», tomada da lenda bíblica; segundo esta, durante a fuga dos hebreus do Egipto, os fracos, sob a influência das dificuldades da jornada e da fome, começaram a ter saudades dos dias passados no cativeiro, quando pelo menos tinham de comer. (retornar ao texto)
[N265] Engels refere-se aos chamados bazares para a troca justa dos produtos do trabalho, que foram fundados por cooperativas owenistas de operários em várias cidades da Inglaterra. Nestes bazares os produtos do trabalho eram trocados por meio de notas de trabalho, cuja unidade era uma hora de trabalho. Estas empresas, contudo, depressa foram à falência. (retornar ao texto)
[N266] La Emancipación (A Emancipação): semanário operário espanhol, publicado em Madrid de 1871 a 1873, órgão das secções da Internacional; de Setembro de 1871 a Abril de 1872, órgão do Conselho Federal de Espanha; lutou contra a influência anarquista em Espanha. Em 1872-1873 publicaram-se no jornal escritos de Marx e Engels. (retornar ao texto)
Inclusão | 05/02/2009 |
Alteração | 14/03/2009 |