MIA > Biblioteca > Rosa Luxemburgo > Reforma... > Novidades
A segunda condição necessária para a realização progressiva do socialismo, segundo Edouard Bernstein, é a transformação gradual do Estado em sociedade. É hoje um lugar comum dizer que o Estado actual é um Estado de classe. É necessário compreender essa afirmação não numa acepção absoluta e rígida, mas na acepção dialéctica, como tudo o que se relaciona com a sociedade capitalista.
Pela vitória política da burguesia, o Estado tornou-se num Estado capitalista. É evidente que o próprio desenvolvimento do capitalismo modificou profundamente o carácter do Estado, alargando constantemente a sua esfera de acção, impondo-lhe novas funções, particularmente. no campo económico, onde é cada vez 'mais necessária a sua intervenção e controlo. Nesse sentido prepara lentamente a futura fusão do Estado e da sociedade e, por assim dizer, o retomar das funções do Estado pela sociedade. Nessa ordem de ideias, pode falar-se igualmente de uma transformação progressiva do Estado capitalista em sociedade; nessa acepção é incontestável, como o disse Marx, que a legislação operária é a primeira intervenção consciente da "sociedade" no processo vital social, fase a que se refere Bernstein.
Mas, por outro lado, esse mesmo desenvolvimento do capitalismo realiza uma outra, transformação na natureza do Estado. O Estado actual é antes de mais uma organização da classe capitalista dominante. Sem dúvida que assume funções de interesse geral no desenvolvimento social; mas somente na medida em que o interesse geral e o desenvolvimento social coincidam com os interesses da classe dominante. A legislação da protecção operária, por exemplo, serve igualmente o interesse imediato da classe capitalista e os das sociedades em geral. Mas, esta harmonia cessa num certo estádio da evolução capitalista. Quando essa evolução atinge um determinado nível, os interesses de classe da burguesia e os do progresso económico começam a cindir-se mesmo no interior do sistema de economia capitalista. Pensamos que essa fase já começou; testemunham-no dois fenómenos extremamente importantes da vida social actual: a política alfandegária e o militarismo. Esses dois fenómenos representaram na história do capitalismo um papel indispensável, e nesse ponto de vista, progressivo, revolucionário. Sem a protecção alfandegária, o desenvolvimento da indústria pesada nos diferentes países teria sido quase impossível. Actualmente, a situação é diferente. A protecção alfandegária já não serve para desenvolver as indústrias jovens, mas somente para manter artificialmente as antigas formas de produção.
Na perspectiva do desenvolvimento capitalista, quer dizer, da economia mundial, pouco interessa que a Alemanha exporte mais mercadorias para a Inglaterra ou que a Inglaterra exporte mais mercadorias para a Alemanha. Por consequência, se se considera o desenvolvimento do capitalismo, a protecção alfandegária desempenha o papel de bom criado que depois de ter efectuado o seu trabalho, o melhor que tem a fazer é ir-se embora. Deveria mesmo fazê-lo. Sendo de dependência recíproca, o estado em que actualmente se encontram os diferentes sectores da indústria, os direitos alfandegários sobre qualquer mercadoria têm necessàriamente como resultado o encarecimento da produção das outras mercadorias no interior do pais, quer dizer, entravam pela segunda vez, o desenvolvimento da indústria. Este é o ponto de vista da classe capitalista. A indústria não precisa de protecção alfandegária para o seu desenvolvimento, mas os empresários precisam dela para proteger as suas colocações no mercado. Isso significa que actualmente as alfândegas já não servem para proteger uma produção capitalista em vias de desenvolvimento frente a uma outra mais adiantada, mas para favorecer a concorrência de um grupo nacional de capitalistas contra um outro grupo nacional. Para mais, as alfândegas já não têm a função de protecção necessária a indústrias nascituras, já não ajudam a criar e conquistar um mercado interior; são os agentes indispensáveis à concentração da indústria, quer dizer, da luta dos produtores capitalistas contra a sociedade consumidora. Por fim, o último traço específico da política alfandegária actual: não é a indústria mas a agricultura que tem hoje um papel preponderante na política alfandegária, ou, por outras palavras, o proteccionismo tornou-se um meio de expressão dos interesses feudais e serve para o mascarar com as cores do capitalismo.
Assiste-se a uma evolução semelhante do militarismo. Se considerarmos a história, não como poderia ter sido ou deveria ser, mas tal como é na realidade, somos obrigados a constatar que a guerra foi um auxiliar indispensável do desenvolvimento capitalista. Nos Estados Unidos da América do Norte, na Alemanha, na Itália, nos Estados balcânicos, na Rússia e na Polônia, em todos esses países. o capitalismo deve o seu primeiro impulso às guerras, independentemente do resultado, vitória ou derrota. Enquanto existiam países onde era preciso destruir o estado de divisão interna ou de isolamento económico, o militarismo desempenhou um papel revolucionário do ponto de vista capitalista, mas hoje a situação é diferente. Os conflitos que ameaçam o cenário da política mundial não servem para fomentar novos mercados ao capitalismo; trata-se fundamentalmente de exportar para outros continentes os antagonismos europeus já existentes. O que se defronta hoje. de armas na mão, quer se trate da Europa ou de outros continentes, não é um confronto entre países capitalistas e países de economia natural. São Estados de economia capitalista avançada, levados ao conflito por identidade do seu desenvolvimento, que, na realidade, abalarão e desordenarão profundamente a economia de todos os países capitalistas. Mas a coisa aparece bastante diferente na perspectiva da classe capitalista. Para ela, o militarismo tornou-se actualmente indispensável sob três aspectos: 1º, serve para defender os interesses nacionais em concorrência com outros grupos nacionais; 2º, constitui um campo privilegiado de investimento tanto para o capital financeiro como para o capital industrial; e 3º, no interior é útil para assegurar o seu domínio de classe sobre o povo trabalhador e todos os interesses que, em si, nada têm de comum com o progresso do capitalismo. Dois traços específicos caracterizam o militarismo actual: um é o desenvolvimento geral e concorrente de todos os países – dir-se-ia impulsionados no seu crescimento por um força motriz interna e autónoma –, fenómeno ainda desconhecido há algumas décadas; o outro é o carácter fatal, inevitável da explosão eminente, embora se desconheça o pretexto que a desencadeará, os Estados que serão envolvidos, o objectivo do conflito e todas as outras circunstâncias. Em contrapartida o motor do desenvolvimento capitalista, o mil1tarismo. transformou-se numa doença capitalista.
Nesse conflito entre o desenvolvimento do capitalismo e os interesses da classe dominante, o Estado alinha ao lado da última. A sua política, assim como a da burguesia, opõe-se ao desenvolvimento social. Deixa, dessa maneira de ser o representante do todo da sociedade e transforma-se simultânea e progressivamente num puro Estado de classe. Ou mais exactamente, essas duas qualidades deixam de coincidir, para se tornarem dados internos contraditórios do Estado. Essa contradição agrava.se dia a dia. Por um lado, verifica-se o crescimento das funções de interesse geral do Estado, as suas intervenções na vida social, o seu controlo desta, mas por outro, o seu carácter de classe obriga-o sempre a acentuar a sua actividade coerciva nos campos que não servem o carácter de classe da burguesia e que têm para a sociedade uma importância negativa: a saber, o militarismo e a política alfandegária e colonial. O "controlo social" que exerce é igualmente marcado pelo seu carácter de classe (quando se pensa na maneira como é aplicada a protecção operária em todos países!).
Bernstein via na extensão da democracia um último processo para realizar progressivamente o socialismo: ora uma tal extensão, longe de se opôr à transformação do carácter do Estado, tal como o temos descrito, só o confirma.
Conrad Schmidt chega mesmo a afirmar que a conquista de uma maioria socialista no Parlamento é o meio directo de realizar o socialismo por etapas. Ora, as formas democráticas da política são incontestàvelmente um sinal muito claro da passagem do Estado para sociedade: nesta concepção existe uma etapa para a transformação socialista. Mas o carácter contraditório do Estado capitalista manifesta-se de forma explosiva no parlamentarismo moderno. É evidente que formalmente o parlamentarismo serve para exprimir na organização do Estado os interesses do conjunto da sociedade. Mas, por outro lado, o que o parlamentarismo representa aqui é ùnicamente a sociedade capitalista, quer dizer uma sociedade onde predominam os interesses capitalistas. Por consequência, nessa sociedade, as instituições formalmente democráticas reduzem-se, no seu conteúdo, a instrumentos dos interesses da classe dominante. Existem provas concretas: desde que a democracia tem a tendência para negar o seu carácter de classe e para transformar-se num instrumento dos autênticos interesses do povo, as formas democráticas são sacrificadas pela burguesia e pela sua representação do Estado. Também a ideia da conquista por uma maioria parlamentar aparece como um cálculo errado: preocupando-se ùnicamente, à semelhança do liberalismo burguês, com o aspecto formal da democracia, descuida-se totalmente o outro aspecto, o do seu conteúdo real. E o parlamentarismo no seu todo não aparece de modo algum, como o acredita Bernstein, como um instrumento específico do estado da classe burguesa, um meio de fazer amadurecer e desenvolver as contradições capitalistas.
Ao considerar-se o desenvolvimento objectivo do Estado, tem-se consciência de que a palavra de Bernstein e de Conrad Schmidt sobre o crescente "controlo social" não passa de uma fórmula oca, contradita, dia a dia, pela realidade. A teoria da instauração progressiva do socialismo reporta-se, finalmente, a uma forma de propriedade e do Estado capitalista evoluindo para o socialismo. Ora a propriedade e o Estado evoluem, os factos sociais são disso testemunho, em direcções totalmente opostas. O processo de produção socializa-se cada vez mais e a intervenção do controlo do Estado sobre o processo de produção é cada vez maior. Mas, ao mesmo tempo, a propriedade privada tem cada vez mais a forma de exploração capitalista brutal do trabalho de outrem e o controlo exercido pelo Estado é cada vez mais marcado pelos interesses de classe. Por consequência, na medida em que o Estado, quer dizer, a organização política e as relações de propriedade, quer dizer, a organização jurídica do capitalismo, se tornam cada vez mais capitalistas, e não cada vez mais socialistas, opõem-se à teoria da instauração progressiva do socialismo duas dificuldades intransponíveis.
Fourier inventara uma fantástica forma de transformar, pelo sistema de falanstérios, toda a água do mundo em limonada. Mas a ideia de Bernstein de transformar, despejando progressivamente no mundo garrafas da limonada reformista, o mar da amargura capitalista em água doce socialista, é talvez menos original mas não menos fantástica.
As relações de produção da sociedade capitalista aproximam-se sucessivamente das relações de produção socialista. Em contrapartida, as suas relações políticas constroem entre sociedade capitalista e a sociedade socialista um muro cada vez mais alto.
Nesse muro, nem as reformas sociais nem a democracia abrirão brechas, contribuirão. pelo contrário, para o segurar e consolidar. Apenas um golpe revolucionário, isto é, a conquista do poder político pelo proletariado, o poderá abater.
No primeiro capítulo, procurámos demonstrar que a teoria de Bernstein retira ao programa socialista toda a base material, transportando-o para uma base idealista. Essa é a fundamentação teórica da sua doutrina – mas como aparece traduzida na prática a teoria? Comecemos por verificar que formalmente não se distinguem em nada da prática de luta social-democrata tal como tem sido realizada até hoje. Lutas sindicais, lutas pelas reformas sociais e pela democratização das instituições, constituem também o conteúdo formal da actividade do partido social-democrata. A diferença não reside no quê mas no como. No actual estado de coisas, a luta sindical e a luta parlamentar são encaradas como meios de dirigir e educar pouco a pouco o proletariado para a conquista do poder político. Segundo a teoria revisionista, que considera como inútil ou impossível a conquista do poder, a luta sindical e a luta parlamentar devem unicamente ser praticadas para alcançar objectivos imediatos que visem melhorar a situação material dos operários e procurem a redução progressiva da exploração capitalista e a extensão do controlo social. Ponhamos de lado a melhoria imediata da situação dos operários, porque o objectivo é comum às duas concepções, a do partido e a do revisionismo, cuja diferença pode ser definida em poucas palavras: segundo a concepção normal, a luta política e sindical têm uma significação socialista na medida em que preparam o proletariado – que é o factor subjectívo da transformação socialista – para realizar essa transformação. Segundo Bernstein, a luta sindical e política têm por tarefa reduzir progressivamente a exploração capitalista, retirar progressivamente esse carácter capitalista à sociedade capitalista e dar-lhe um carácter socialista. numa palavra. realizar objectivamente a transformação socialista da sociedade. Quando se examina a coisa de mais perto, percebe-se que essas duas concepções são totalmente opostas. Segundo a concepção corrente do partido, o proletariado adquire, através da experiência da luta sindical e política, a convicção de que é impossível transformar radicalmente a sua situação por meio dessa única luta, e que só o conseguirá definitivamente depois de se apoderar do poder político.
A teoria de Bernstein acredita no carácter socialista da luta sindical e parlamentar, a que atribui uma acção socializante progressiva da economia capitalista. Mas essa acção socializante só existe, demonstrámo-lo, na imaginação de Bernstein.
As estruturas capitalistas da propriedade e do Estado evoluem em direcções completamente opostas. Por esse facto, a luta quotidiana concreta da social-democracia perde, em última análise, toda a relação com o socialismo. A luta sindical e a luta política são importantes porque actuam sobre a consciência do proletariado, porque lhe dão uma consciência socialista, porque o organizam como classe. Atribuir-Ihe um poder directo de socialização da economia capitalista, não é sómente ir ao encontro de um falhanço nesse campo, mas ainda retirar-lhe qualquer outra significação: deixam de ser um meio de educar a classe operária e de a preparar para conquistar o poder. Também Bernstein e Conrad Schmidt incorrem num contra-senso total quando, para se tranquilizarem, afirmam que, mesmo se a luta for reduzida pelas reformas sociais e pelo movimento sindical. não se abandona o objectivo último do movimento operário: cada passo dado nesse sentido não ultrapassa os seus próprios objectivos e o objectivo socialista não está presente em todo o movimento como tendência que o anima? É uma verdade insofismável que, na táctica actual da social-democracia, a consciência do objectivo – a conquista do poder político – e o esforço para o atingir precedem e orientam toda a luta sindical e o movimento para as reformas. Mas se a separam dessa prévia orientação do movimento e se fazem da reforma social um objectivo autónomo, não conduzirá à realização do objectivo final. Conrad Schmidt refugia-se num movimento por assim dizer automático que, uma vez desencadeado, não pode parar por si próprio; parte da ideia muito simples de que o apetite vem com o comer e de que a classe operária não se pode contentar com reformas, enquanto a transformação socialista da sociedade não estiver acabada. Este último postulado é, sem dúvida, exacto e a insuficiência das reformas capitalistas provam-no. Mas a conclusão a que chega só seria verdadeira se se pudesse construir uma cadeia ininterrupta de reformas sociais cada vez mais extensas que transformariam o actual regime capitalista em regime socialista. Trata-se de uma perspectiva fantasista. Pela própria natureza das coisas, essa cadeia romper-se-ia muito depressa e, a partir dessa ruptura, as vias por onde o movimento pode enveredar são múltiplas e diversas.
O resultado imediato e mais provável é uma mudança de táctica visando obter, por todos os meios, os resultados práticos da luta, quer dizer, as reformas sociais. A consciência de c!asse irreconciliável só tem sentido quando se lhe propõe a tomada do poder; se se pretendem unicamente os objectivos práticos imediatos, o que se está realmente a praticar é a sua obstrução. Ràpidamente se adopta uma "política de compensação" – leia-se uma "política de mistificação" – e uma atitude prudentemente diplomática. Mas o movimento não pode ser entravado por muito tempo. Qualquer que seja a táctica utilizada, e porque as reformas sociais são e continuarão a ser, em regime capitalista, nozes ocas, a etapa seguinte será, muito lògicamente, a desilusão, mesmo no concernente ao valor próprio das reformas – cair-se-á no mesmo mar podre em que se refugiaram os professores Schmoller e Cia. que, depois de terem navegado nas águas do reformismo social, acabaram por deixar andar tudo pela graça de Deus(4). O socialismo não sucede automàticamente e em todas as circunstâncias da luta quotidiana da classe operária. Surgirá da agudização das contradições internas da economia capitalista e da consciencialização da classe operária, que compreenderá a necessidade de as destruir por intermédio de uma revolução social. Negar umas e recusar outra, como o faz o revisionismo, acaba por transformar o movimento operário numa simples associação corporativa reformista, conduzindo-o automàticamente a abandonar a perspectiva de classe.
Essas consequências são evidentes quando se analisa o revisionismo sob um outro aspecto, confrontando-o com o carácter geral dessa teoria. É evidente que o revisionismo não defende as posições capitalistas nem nega, como os economistas burgueses, as suas contradições. Pelo contrário, aceita a tese marxista da existência dessas contradições. Mas, por outro lado – estamos no centro da sua concepção e é isto que o diferencia da teoria, até aqui em vigor no partido – não fundamenta a sua doutrina na supressão dessas contradições, que seriam a própria consequência do seu desenvolvimento interno.
A teoria revisionista situa-se num lugar intermédio entre esses dois pólos extremos. Não quer levar à maturidade as contradições capitalistas nem suprimi-Ias, uma vez atingido o seu desenvolvimento extremo, por uma mutação revolucionária da situação, quer atenuá-Ias, amalgamá-Ias. Por isso pretende que a contradição entre a produção e a troca será atenuada pelo fim das crises, pela formação de associações patronais: do mesmo modo que a contradição entre o capital e o trabalho será atenuada pela melhoria da situação do proletariado e pela sobrevivência das classes médias, que a do Estado classista e a da sociedade, por um controlo social crescente e pelo progresso da democracia.
É evidente que a táctica social-democrata não consiste em esperar o ponto extremo das contradições capitalistas para que se produza uma mutação revolucionária da situação. Pelo contrário, a essência da táctica revolucionária consiste em reconhecer a tendência do desenvolvimento e daí transpor as suas consequências últimas para a luta política. E por isso, a exemplificar, a social-democracia sempre combateu o proteccionismo e o militarismo sem esperar que o seu carácter reaccionário se evidenciasse totalmente. Mas a táctica de Bernstein não consiste em se apoiar sobre a evolução e a agudização dos antagonismos, baseia-se, pelo contrário, na sua atenuação. Define a sua táctica falando de uma "adaptação" da economia capitalista. Quando se verificaria uma tal concepção? Todas as contradições da sociedade actual resultam do modo de produção capitalista. Suponhamos que esse modo de produção continua a evoluir na direcção actual, prosseguirá necessàriamente as suas próprias consequências, as contradições continuarão a agudizar-se, a agravar-se em vez de se atenuarem. Para que a teoria de Bernstein se verifique, seria necessário que o próprio modo de produção capitalista fosse travado no seu desenvolvimento. Em resumo, o postulado geral que a teoria de Bernstein implica é uma travagem do desenvolvimento capitalista.
Por isso, a sua teoria autocondena-se de duas maneiras. Por um lado denuncia o seu carácter utópico em relação ao objectivo final do socialismo: é, desde o princípio, claro que o afundamento do desenvolvimento capitalista não acabará numa transformação socialista da sociedade: demonstrámos anteriormente as consequências práticas dessa teoria. Seguidamente mistifica o seu carácter reaccionário quanto ao desenvolvimento efectivo do capitalismo, que é rápido. Portanto a questão que se levanta presentemente é: demonstrada essa evolução real do capitalismo, como explicar, ou melhor, caracterizar a teoria de Bernstein?
Demonstrámos no nosso primeiro capítulo que o postulado económico em que se fundamenta a análise de Bernstein das relações sociais actuais é falso – é suficiente ver a sua teoria de "adaptação" do capitalismo.
Vimos que nem o sistema de crédito nem as concentrações podem ser consideradas como "factores de adaptação" da economia capitalista e que nem a paragem momentânea das crises, nem a sobrevivência das classes médias podem passar por sintomas de adaptação do capitalismo. Mas todos esses pontos particulares da teoria da adaptação apresentam uma característica comum. Essa teoria, mais que ligar orgânicamente os fenómenos da vida económica ao todo do desenvolvimento capitalista, de os ligar ao mecanismo geral da economia, arranca-os ao contexto global e examina-os separadamente como fragmentos dispersos de uma máquina sem vida. Por exemplo, sucede assim com a tese do crédito como factor de adaptação. Se se considera o crédito como uma etapa superior e natural da troca, ligada às contradições inerentes da troca capitalista, é impossível transformá-Io num "factor de adaptação" mecânico, com existência própria fora do processo global da troca; para mais é impossível considerar o dinheiro, a mercadoria, o capital, como "factores de adaptação" do capitalismo. Ora, o crédito é, ao mesmo nível do dinheiro da mercadoria ou do capital, um nó orgânico da economia capitalista em determinado estádio do seu desenvolvimento e, tal com os outros, constitui nesse estádio uma roda indispensável ao mecanismo da economia capitalista e é, simultâneamente, seu elemento corrosivo porque conduz a um agravamento das suas contradições internas.
O mesmo sucede com as concentrações e com os meios de comunicação aperfeiçoados.
A mesma concepção mecânica e antidialéctica manifesta-se na ideia de Bernstein de que a cessação das crises é um sintoma "da adaptação" da economia capitalista. Para ele, as crises reduzem-se a desordens produzidas no mecanismo da economia; se as desordens param o mecanismo, recomeça o movimento. Ora, de facto, as crises não são desordens no sentido exacto da palavra, ou melhor, são desordens mas sem as quais a economia capitalista não se poderia desenvolver. Se é verdade que as crises constituem – dizemo-lo esquematicamente – o único método possível no interior do capitalismo, portanto normal, de corrigir periodicamente o desequilíbrio existente entre a capacidade ilimitada de expansão da produção e os limites estreitos do mercado, então as crises são manifestações orgânicas inseparáveis do conjunto da economia capitalista.
É sobretudo a ausência de desordens no desenvolvimento da produção capitalista que contém em si perigos mais graves que as próprias crises. É a constante baixa da taxa de lucro, resultante não da contradição entre a produção e a troca mas do aumento da produtividade do trabalho, que ameaça tornar impossível a produção aos pequenos e médios capitais, arriscando-se a limitar, dessa maneira, a criação de novos investimentos, a travar a sua expansão. As crises, outra consequência do mesmo processo, têm precisamente por efeito, ao depreciarem periòdicamente o capital, o abaixamento do preço dos meios de produção e, paralisando uma parte do capital activo, aumentar o lucro, criando por isso mesmo condições para novos investimentos e uma nova extensão da produção. Surgem como um meio de incentivar o desenvolvimento capitalista. Se param (não em determinados momentos, quando o mercado mundial se desenvolve, mas se deixam de existir de facto) , a sua desaparição, em vez de favorecer o impulso da economia capitalista, como pensa Bernstein, provocaria, pelo contrário, o seu afundamento. Com a rigidez mecânica que caracteriza toda a sua teoria, Bernstein esquece, ao mesmo tempo, a necessidade das crises e da periodicidade de novos investimentos de pequenos e médios capitais. Por isso o permanente renascer dos pequenos capitais parece-lhe um sinal de paragem do desenvolvimento capitalista e não, como é o caso, do desenvolvimento normal do capitalismo.
A única perspectiva em que todos os fenómenos mencionados surgem efectivamente tais como os apresenta a teoria da adaptação, é a do capitalista isolado. Nessa perspectiva, os factos económicos aparecem deformados pelas leis da concorrência e reflectem-se na consciência do capitalista individual. Este considera cada fragmento orgânico do todo económico como um todo independente, vê apenas os efeitos. sobre si, capitalista isolado e, por consequência, considera-os como simples "desordens" ou simples "factores de adaptação". Para o capitalista isolado, as crises são efectivamente simples desordens cuja desaparição lhe possibilitará uma dilatação do prazo de existência. Para ele, o crédito é um meio de adaptar as suas forças de produção insuficientes às necessidades do mercado. Para ele, a concentração a que adere suprime efectivamente a anarquia.
Numa palavra, a teoria da adaptação de Bernstein não é mais que uma generalização teórica do ponto de vista do capitalista isolado; ora esse ponto de vista traduz-se em teoria na economia burguesa vulgar. Todos os erros económicos dessa escola baseiam-se exactamente num mal-entendido pelo qual os fenómenos da concorrência, considerados na, perspectiva do capital isolado, passam por consequências do todo da economia capitalista. Tal como faz Bernstein para o crédito a economia vulgar ainda, por exemplo, considera o dinheiro como um engenhoso "meio de adaptação" às necessidades de troca. Procura igualmente nos próprio fenómenos capitalistas um antídoto contra os males capitalistas. Acredita, como Bernstein, na possibilidade de uma regularização da economia capitalista. Acredita nas possibilidades de atenuação das contradições capitalistas e no disfarçar das mazelas da economia capitalista; por outros termos, a sua tentativa é reaccionária e não revolucionária, dependente da competência da utopia.
Pode definir-se e resumir-se a teoria revisionista pelas seguintes palavras: É uma teoria do afundamento do socialismo, fundamentada na teoria da economia vulgar do afundamento do capitalismo.
Notas:
(4) Em 1872, os professores Wagner, Schmolller , Brentano, etc., reuniram-se num Congresso em Eisenach, no decorrer do qual proclamaram com muito ardor e força publicitária que o seu objectivo era a instauração de reformas sociais para a protecção da classe trabalhadora. Esses mesmos senhores, que o liberal Oppenheimer qualifica irònicamente de "professores universitários do socialismo", fundaram imediatamente a Associação para as reformas sociais. Alguns anos mais tarde, no momento em que a luta contra a social-democracia se agravou, estes pioneiros do "socialismo universitário" votaram, na sua qualidade de deputados peIo Reichstag, pela manutenção em vigor da lei de excepção contra os socialistas. Para além disto, toda a actividade associativa se resume à convocação de algumas assembleias gerais, durante as quais são lidos alguns relatórios académicos sobre diferentes temas. Por outro lado, a associação publicou mais de cem volumes sobre diversas questões económicas. Mas quanto às reformas sociais, estes professores, que depois vieram a intervir a favor dos direitos protecionistas, do militarista, etc., não deram um passo. Finalmente, a própria associação, abandonou todo o programa de reformas sociais para se entregar exclusivamente à questão das crises, provocações. etc. (retornar ao texto)
Inclusão | 15/01/2005 |
Última atualização | 22/03/2016 |