A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 3. Ascensão do Abstrato ao Concreto

6. Dedução e o Problema do Historicismo


Enquanto ele considerava o assunto de investigação, a economia política, como um todo único coerente em todas as suas manifestações, como um sistema de relações mutuamente condicionantes de produção e distribuição, Ricardo, ao mesmo tempo, não considerou este sistema como uma totalidade integral surgindo historicamente e se desenvolvendo de relações entre homens e coisas no processo de produção.

Todos os méritos do método de investigação de Ricardo estão intimamente ligados com o ponto de vista material, isto é, com a concepção do objeto como um todo único coerente em todas as suas manifestações. Pelo contrário, todos os defeitos e vícios de seu modo de desdobrar sua teoria estão enraizados em uma completa falha em entender este todo como formado historicamente.

A forma capitalista de produção pareceu para ele ser o natural, a forma eterna de qualquer produção seja qual for. Isso explica o caráter não-histórico (e até mesmo anti-histórico) de suas abstrações e a falta de historicismo em seu método de obtê-las. Dedução de categorias, onde são combinadas com uma compreensão não-histórica do objeto reproduzido com sua ajuda no conceito, inevitavelmente se torna puramente formal.

É fácil ver que a dedução, em sua própria forma, corresponde à concepção do desenvolvimento, do movimento do simples, indiviso e geral ao complexo, dividido, individual e particular. Agora, se a realidade objetiva reproduzida em conceito dedutivamente é em si mesma entendida como realidade não-desenvolvida, como um sistema natural e eterno de fenômenos interagindo, dedução, natural e inevitavelmente, aparece somente como um procedimento artificial no desenvolvimento do pensamento. Neste caso, também, a lógica necessariamente recorre ao ponto de vista da natureza da dedução que foi expressa de forma classicamente clara por Descartes.

Enquanto ele define a construção de seu sistema do mundo, a dedução de todas as formas complexas de interação na natureza dos movimentos das partículas elementares da matéria, definidas exclusivamente em termos geométricos, Descartes justificou seu modo de construção de teoria da seguinte maneira: “E sua natureza [do mundo – E.I.] é muito mais facilmente concebida se se observa sua original gradual, ao invés de considera-la como pronta” (Descartes, 1971, p. 40)Referência 1. Relutante a entrar em conflito aberto com o ensino teológico da criação do mundo, Descartes imediatamente qualificou esta declaração: “Ao mesmo tempo eu não quis inferir a partir de tudo isso que nosso mundo foi criado na forma que sugeri; pois é muito mais plausível que no início Deus a fez na forma que era para ter” (Descartes, 1971, p. 40)Referência 2.

Era óbvio para Descartes que a forma de dedução que ele conscientemente aplicou era muito próxima à concepção de desenvolvimento e surgimento de coisas em sua necessidade. É por isso que ele enfrentou o delicado problema de reconciliar dedução e a ideia de que o objeto era eternamente idêntico a si mesmo e não veio de qualquer lugar em particular, tendo sido uma vez criado por Deus.

Ricardo se encontrou no mesmo tipo de situação. Ele entendeu muito bem que somente o movimento dedutivo do pensamento poderia expressar os fenômenos em sua conexão interna e que só seria possível conhecer esta conexão ao considerar o surgimento gradual de diversas formas de riqueza a partir de uma substância comum a todas elas – a partir do trabalho produtor de mercadorias. Mas como se poderia vincular este modo de raciocínio com a ideia de que o sistema burguês era um sistema natural e eterno que não poderia surgir ou se desenvolver na realidade? Ainda assim, Ricardo reconciliou estas duas concepções, em suas essências absolutamente incompatíveis. Isso se refletiu em seu método de raciocínio, no método de formação de abstrações.

O fato de que a construção da teoria começa com a categoria do valor, para depois proceder à consideração de outras categorias, pode ser justificada pela categoria do valor sendo o conceito mais geral que implica lucro, juros, renda, capital e todo o resto – uma abstração genérica daqueles fenômenos reais particulares e individuais.

O movimento do pensamento a partir de uma categoria geral abstrata à expressão de características específicas dos fenômenos reais aparece, portanto, como movimento inteiramente no pensamento e de forma alguma na realidade. Na realidade todas as categorias – lucro, capital, renda, salários, dinheiro etc. – existem simultaneamente uma com a outra, a categoria do valor expressando o que é comum a todas elas. Valor enquanto tal existe de verdade somente na cabeça que faz abstrações, como um reflexo das características que a mercadoria tem em comum com dinheiro, lucro, renda, salários, capital etc. O conceito genérico compreendendo em si mesmo todas as categorias particulares, é o valor.

Aqui Ricardo raciocina no espírito da lógica nominalista contemporânea, se rebelando contra o realismo medieval, contra as concepções criacionistas, de acordo com o qual o geral, diz-se, animal em geral, existia antes do cavalo, da raposa, da vaca, da lebre, antes das espécies particulares de animais e foi subsequentemente transformada ou “dividida” no cavalo, na vaca, na raposa, na lebre etc.

De acordo com Ricardo, valor enquanto tal só pode existir post rem, somente como uma abstração mental a partir dos tipos particulares de valor (lucro, renda, salários etc.), de forma alguma ante rem, como uma realidade independente precedendo cronologicamente suas espécies particulares (capital, lucro, renda, salários etc.). Todas essas espécies particulares de valor existem eternamente lado a lado uma com a outra e de forma alguma originam no valor, assim como o cavalo não deriva realmente de um animal em geral.

O problema era, entretanto, que a concepção nominalista do conceito geral, justificadamente atacando a proposição principal do realismo medieval, em geral eliminou do mundo real as coisas individuais, junto com a proposição, a ideia de seu desenvolvimento real.

Na medida em que Ricardo manteve o ponto de vista burguês da essência da economia burguesa, a concepção unilateral e extremamente metafísica do nominalismo na lógica apareceu para ele como a mais natural e apropriada. Somente fenômenos individuais pertencendo às espécies particulares de valor existem eternamente – mercadoria, dinheiro, capital, lucro, renda etc. Quanto ao valor, era uma abstração destes fenômenos econômicos particulares e individuais – universalia post rem, de forma alguma universalia ante rem. É por isso que Ricardo não estudou valor enquanto tal, valor em si mesmo, abstraído mais rigorosamente de lucro, salários, renda e competição.

Tendo formulado o conceito de valor, ele procedeu diretamente à consideração de categorias particulares desenvolvidas, aplicando diretamente o conceito de valor ao lucro, salários, renda, dinheiro etc.

Este é o movimento lógico mais natural se se concebe a realidade reproduzida por meios disso como um sistema eterno de interação de espécies particulares de valor.

Se o conteúdo do conceito universal fundamentando todo o sistema da teoria é para ser entendido como uma suma das características abstratamente comuns a todos os fenômenos particulares e individuais, se agirá da forma como fez Ricardo. Se o universal é entendido como a característica abstrata comum a todos os fenômenos individuais e particulares sem exceção, para obter definições teóricas do valor será preciso considerar lucro, renda etc., e abstrair o que é comum a eles. Essa foi a forma que Ricardo agiu. E foi por isso que Marx o criticou bruscamente, desde que aqui a abordagem anti-histórica de Ricardo do valor e suas espécies estava particularmente aparente.

O grande defeito no método de investigação de Ricardo, de acordo com Marx, reside em que ele não estudou especialmente as definições teóricas do valor enquanto tal, completamente independente dos efeitos da produção de mais-valor, competição, lucro, salários e todos esses outros fenômenos. O primeiro capítulo do principal trabalho de Ricardo trata não somente da troca de uma mercadoria por outra (isto é, da forma elementar de valor, valor enquanto tal), mas também de lucro, salários, capital, a taxa média de lucro e similares.

Pode-se ver que embora Ricardo seja acusado de ser muito abstrato, se poderia justificar acusa-lo do oposto: falta de poder de abstração, incapacidade, quando lidando com os valores das mercadorias, de esquecer lucro, um fator que o confronta como resultado da competição (Marx, 1968, p. 191)Referência 3.

Mas este requisito, o requisito da completude objetiva da abstração, é impossível de satisfazer, a não ser que, primeiro, se desista da concepção metafísica formal do conceito universal (como uma abstração simples dos fenômenos particulares e individuais ao qual se refere), e segundo, aceitar a perspectiva do historicismo na concepção, neste exemplo, do desenvolvimento do valor ao lucro.

Marx demanda da ciência que ela deveria compreender o sistema econômico como um sistema que surgiu e se desenvolveu, ele demanda que o desenvolvimento lógico das categorias deveria reproduzir a história real do surgimento e desdobramento do sistema.

Se assim for, valor como o ponto de partida da concepção teórica deveria ser entendido na ciência como uma realidade econômica objetiva surgindo e existindo antes de tais fenômenos como lucro, capital, salários, renda etc., pudessem surgir e existir. Portanto, definições teóricas do valor deveriam também ser obtidas de forma bastante diferente do que mera abstração das características comuns à mercadoria, dinheiro, capital, lucro, salários e renda. Todas essas coisas são assumidas como sendo não-existentes. Elas não existem eternamente, mas de alguma forma e em algum ponto surgiram, e este surgimento, em sua necessidade, deveria ser descoberto pela ciência.

Valor é uma condição objetiva, real, sem a qual nem capital, nem dinheiro, nem qualquer outra coisa é possível. Definições teóricas de valor enquanto tais só podem ser obtidas se considerando certa realidade econômica objetiva capaz de existir antes, fora e independentemente de todos aqueles fenômenos que se desenvolveram depois em sua base.

Esta realidade econômica objetiva elementar existia muito antes do surgimento do capitalismo e todas as categorias expressando sua estrutura. Esta realidade é a troca direta de uma mercadoria por outra mercadoria.

Temos visto que os clássicos da economia política elaborarem o conceito universal de valor exatamente através da consideração desta realidade, embora eles não tivessem ideia do significado teórico e filosófico real de seus atos.

É possível assumir que Ricardo não ficaria nem um pouco perplexo se alguém apontasse o fato de que seus predecessores e ele próprio não elaboraram a categoria universal de sua ciência por considerar uma regra geral abstrata a qual todas as coisas que possuem valor estão sujeitas – ao contrário, ele o fez considerando uma exceção muito rara da regra – troca direta de uma mercadoria por outra sem dinheiro.

Na medida em que o fizeram, eles obtiveram uma concepção teórica realmente objetiva de valor. Mas, desde que eles não aderiram estritamente o bastante à consideração deste modo particular de interação econômica extremamente rara no desenvolvimento do capitalismo, eles não conseguiram agarrar plenamente a essência do valor.

Aqui reside a dialética da concepção de Marx do universal – a dialética da concepção do método de elaborar a categoria universal do sistema da ciência.

É fácil ver que essa concepção só é possível com base em uma abordagem essencialmente histórica do estudo da realidade objetiva.

A dedução baseada em um historicismo consciente se torna a única forma lógica correspondendo ao ponto de vista do objeto como surgindo e se desenvolvendo historicamente, ao invés de pronto.

Devendo à teoria da evolução, toda a classificação de organismos tem sido levada para longe da indução e trazida de volta à “dedução”, a descendência – uma espécie sendo literalmente deduzida de outra por descendência – e é impossível provar a teoria da evolução somente por indução, desde que é bastante anti-indutiva (Engels, 1934, p. 227)Referência 4.(1)

O cavalo e a vaca, obviamente, não descendem de um animal em geral, assim como a pera e a maça não são produtos da auto alienação do conceito de fruta em geral. Mas a vaca e o cavalo sem dúvida têm um ancestral em comum nas remotas épocas passadas, enquanto a maça e a pera também são produtos da diferenciação de uma forma de fruta comum a ambos. Este verdadeiro ancestral comum da vaca, do cavalo, da lebre, da raposa e de todas as outras espécies de animais que existem atualmente, não existia, naturalmente, na razão divina, como uma ideia do animal em geral, mas na própria natureza, como uma espécie particular bastante real, a partir da qual diversas outras espécies descenderam através de diferenciação.

Esta forma universal de animal, animal enquanto tal, se você quiser, não é de forma alguma uma abstração compreendendo em si mesma somente aquela característica que é comum a todas as espécies particulares de animais que existem atualmente. Este universal era, ao mesmo tempo, uma espécie particular possuindo não somente e não tanto aqueles traços que foram preservados em todos os descendentes como características comuns a todos eles, mas também suas próprias características específicas, herdadas em parte por seus descendentes, em parte inteiramente perdidas e substituídas por novas. A imagem concreta do ancestral universal de todas as espécies que existem atualmente, não pode, em princípio, ser construída a partir daquelas propriedades que estas espécies têm em comum.

Fazendo este tipo de coisa na biologia significaria tomar o mesmo caminho errado pela qual Ricardo esperou chegar a uma definição de valor enquanto tal, da forma universal de valor, assumindo que estas definições eram abstrações do lucro, renda, capital e todas as outras formas particulares de valor que ele observou.

A ideia do desenvolvimento como descendência real de alguns fenômenos a partir de outras, determina a concepção materialista dialética de dedução de categorias, da ascensão do abstrato ao concreto, do universal (que é em si mesmo um particular bastante definido) ao particular (que também expressa um universal e uma definição necessária do objeto).

A fundação universal básica de um sistema de definições teóricas (o conceito básico de ciência) expressa, a partir da perspectiva da dialética, definições teóricas concretas de um fenômeno típico bastante específico e definido, dado sensorialmente e praticamente na contemplação empírica, na prática social e no experimento.

Este fenômeno é específico naquilo que é realmente (fora da cabeça do teórico) o ponto de partida do desenvolvimento da totalidade analisada dos fenômenos interagindo, do todo concreto que é, no caso dado, aquele todo concreto que é o objeto da reprodução lógica.

A ciência precisa começar com aquilo com o qual a história real começou. O desenvolvimento lógico das definições teóricas precisa, portanto, expressar o processo histórico concreto do surgimento e desenvolvimento do objeto. A dedução lógica não é qualquer coisa que não uma expressão teórica do desenvolvimento histórico real da concreticidade em estudo.

Para entender corretamente este princípio, é preciso tomar um ponto de vista essencialmente dialético, concreto, da natureza do desenvolvimento histórico. Este ponto mais importante da lógica de Marx – sua visão da relação do desenvolvimento científico ao histórico (a relação do lógico e do histórico) – precisa ser especialmente considerado. Sem isso, o método de ascensão do abstrato ao concreto permanece inexplicável.