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Um dos argumentos mais ridículos que ouvimos é que as cousas não poderiam ser diferentes do que são agora. No entanto, as cousas já foram diferentes. E não em algum canto remoto do globo, mas neste país, não há muito tempo. Duzentos e cinquenta anos atrás as pessoas teriam-nos tomado por tolos, se descrevêssemos o mundo em que vivemos hoje, com as suas enormes cidades, as suas grandes fábricas, os seus aviões, as suas explorações do espaço, até mesmo as linhas férreas ultrapassariam os limites da sua imaginação. Pois eles viviam numa sociedade que era quase exclusivamente rural, na qual a maioria das pessoas nunca se afastara para além de um raio de dez quilômetros, onde a vida se baseava, por milhares de anos, polo ritmo das estações do ano.
Mas há já setecentos ou oitocentos anos, começara um desenvolvimento que poria em causa todo o sistema. Grupos de artesãos e comerciantes começaram a se estabelecer nas cidades, não estando ao serviço de algum senhor feudal como era o caso para o resto da população, mas trocando os seus produtos com diferentes senhores e servos por alimentos. Cada vez mais começaram a utilizar metais preciosos como forma de medir esses intercâmbios. Logo, cada intercâmbio foi uma oportunidade para recuperar um pouco mais do metal precioso, e obter algum lucro.
No início, as cidades foram jogando na rivalidade entre os senhores para sobreviver. Mas, com o progresso feito polos seus artesãos, ganharam influência. Os “burgueses”, ou “classes médias” começaram a surgir como uma classe no interior da sociedade feudal da Idade Média. Contudo, obtiveram as suas riquezas de um modo bem diferente da dos senhores feudais que dominavam a sociedade.
Um senhor feudal vivia diretamente dos produtos agrícolas que era capaz de obter forçando os servos a produzirem nas suas terras. Ele usava o seu poder pessoal para obrigá-los a fazer isso, sem ter que lhes pagar. Enquanto as classes mais ricas das cidades viviam dos produtos não agrícolas. Eles pagavam um salário, por dia ou por semana, os trabalhadores para produzir para eles.
Estes trabalhadores, amiúdo servos fugidos, eram “livres” para ir e vir como quiserem, desde que terminassem o trabalho polo qual foram pagos. A “única” obriga que os levava a trabalhar era de que morreriam com a fame se não encontrassem um emprego. Os ricos podiam ficar ainda mais ricos porque para não morrer de fame, os trabalhadores “livres” aceitavam menos dinheiro polo seu trabalho que o valor dos bens que eles produziam. Voltaremos a isso mais tarde. Por agora o que nos importa é que os burgueses e os senhores feudais obtinham a sua riqueza de formas diferentes. Isto levava-os a conceber a sociedade de maneira diferente.
O ideal do senhor feudal era uma sociedade na qual ele tinha poder absoluto sobre as suas próprias terras, livre de qualquer lei escrita, sem intromissão de qualquer ente externo, com seus servos impossibilitados de escapar. Ele queria que as cousas permanecessem tal como eram nos dias de seu pai e seu avô, e todos aceitando a situação social em que nasceram.
Os membros da nova burguesia enriquecida viam, necessariamente, as cousas de forma diferente. Queria reduzir o poder dos senhores ou reis para interferir no seu comércio ou roubar as suas riquezas .
Sonhavam conseguir isso através de um corpo fixo de leis, escritas e executadas polos seus próprios representantes. Queriam livrar os pobres da servidão para lhes permitir trabalhar (e aumentar os seus lucros) nas cidades.
Como eles mesmos, seus pais e avós muitas vezes tinham vivido sob o jugo dos senhores feudais e não queriam certamente que isso continuasse.
Noutras palavras, queriam revolucionar a sociedade. Os seus conflitos com a velha ordem não eram apenas econômicos, mas também ideológicos e políticos. Ideológico significa principalmente religioso numa sociedade analfabeta em que a principal fonte das ideias gerais sobre o mundo era a Igreja.
Desde que a igreja medieval estava regida por bispos a abades que também eram senhores feudais, propagandeava as posições pró-feudais, acusando como “pecaminosas” a maioria das práticas dos burgueses urbanos.
Assim, na Alemanha, Holanda, Inglaterra e França dos séculos XVI e XVII a classe média organizou a sua própria religião, o protestantismo - uma ideologia religiosa que pregava a frugalidade, a sobriedade, o esforço (principalmente para os trabalhadores!) e a independência das congregações da classe média frente o poder dos bispos e abades.
A classe média criou um Deus à sua imagem, em oposição ao Deus da Idade Média. Agora, somos ensinados na escola e na televisão que as grandes guerras religiosas e civis como se fossem motivadas por diferenças religiosas, como se as pessoas fossem parvas o suficiente para luitar e morrer por que discordavam sobre o papel do corpo e o sangue de Cristo na Sagrada Comunhão. Muito mais estava em jogo, o conflito entre duas formas completamente diferentes de sociedade, baseadas em dous modos diferentes de organizar a produção da riqueza.
Na Inglaterra, a burguesia venceu. Tão terrível como deve parecer para a atual classe dominante, os seus antepassados consolidaram o seu poder cortando a cabeça de um rei, justificando as suas ações com as palavras dos profetas do Velho Testamento. Mas noutros lugares, a primeira corrida foi ganha polo Antigo Regime. Na França e na Alemanha os revolucionários burgueses protestantes foram varridos polas guerras civis (embora uma versão feudal do protestantismo sobrevivera como religião no norte da Alemanha). A burguesia teve que esperar mais de dous séculos até alcançar o gosto da vitória num segundo turno que começou, desta vez sem pretexto religioso, em Paris em 1789.
Nas sociedades escravistas e feudais as classes superiores tinham que ter um controle legal sobre a massa da população trabalhadora. Caso contrário, aqueles que serviam o senhor feudal ou para o proprietário de escravos teriam fugido, deixando a classe privilegiada sem ninguém para trabalhar para ela.
Mas o capitalista não precisa, geralmente, tais controles legais sobre os trabalhadores. Ele não tem necessidade a possuí-lo, desde que sabe que o trabalhador que se recusar a trabalhar para ele irá morrer de fame. Em vez de possuir o trabalhador, o capitalista pode prosperar porque detém e controla a fonte de vida dos trabalhadores – as máquinas e as fábricas.
As necessidades materiais da vida são produzidas polo trabalho humano. Mas este trabalho é praticamente inútil sem ferramentas para cultivar a terra e aperfeiçoar as matérias-primas. As ferramentas podem variar grandemente, de simples implementos agrícolas como fouces e arados até máquinas complicadas encontradas nas modernas fábricas automatizadas. Mas sem ferramentas mesmo o mais habilidoso de todos os trabalhadores é incapaz de produzir as cousas necessárias para a sobrevivência.
É o desenvolvimento dessas ferramentas - geralmente chamadas de “meios de produção”- que separa o homem moderno dos seus antepassados distantes da Idade da Pedra. O capitalismo é baseado na propriedade desses meios de produção por uma minoria. Na Inglaterra de hoje, por exemplo, um por cento da população detém 84% das ações e participações na indústria. Nas suas mãos está concentrado o controle efetivo sobre a grande maioria dos meios de produção - as máquinas, as fábricas, os campos petrolíferos e as melhores terras agrícolas. A massa da população só pode sobreviver se o capitalista lhe permitir trabalhar com os seus meios de produção. Isto dá aos capitalistas um imenso poder para explorar o trabalho das outras pessoas – ainda que sob a lei “todos os homens são iguais”.
Levou séculos os capitalistas construir o seu total monopólio sobre os meios de produção. Na Inglaterra, por exemplo, os parlamentos dos séculos XVII e XVIII tiveram primeiro que aprovar uma sucessão de leis chamadas “Leis de Cercamento” (Enclosure Acts), que separaram os camponeses dos seus próprios meios de produção, a terra que cultivaram por séculos. A terra tornou-se propriedade de uma parte da classe capitalista e a massa rural foi forçada a vender o seu trabalho para os capitalistas ou morrer de fame.
Uma vez que o capitalismo foi capaz de monopolizar os meios de produção, pôde dar ao luxo de permitir à massa do povo uma aparência de liberdade e igualdade de direitos políticos com os capitalistas. Já que, qualquer que seja a “liberdade” que tenham os trabalhadores, devem sempre trabalhar para viver.
Os economistas pró-capitalistas têm uma explicação simples sobre o que acontece. Eles dizem que ao pagar salários, o capitalista compra o trabalho dos trabalhadores. E que ele precisa pagar um preço justo por ele. Caso contrário, o trabalhador irá trabalhar noutro lugar. O capitalista paga um “salário justo diário”. Em contrapartida, os trabalhadores devem dar um “dia de trabalho justo”.
Como então explicam os lucros? Estes, argumentam eles, são uma “recompensa” para o capitalista polo seu “sacrifício”, ou seja, permitindo o uso dos seus meios de produção (o seu capital). É um argumento que dificilmente convence qualquer trabalhador que pense um momento.
Consideremos uma empresa que anuncia uma “taxa de lucro líquido” de dez por cento. Está dizendo que se o preço de todas as máquinas, instalações, etc. que possui é de cem milhões, sobram, então, dez milhões de lucro após o pagamento dos salários, as matérias-primas e a reposição dos máquinas desgastadas num ano.
Não é preciso ser um gênio para perceber que depois de dez anos, a empresa terá um lucro total de cem milhões, precisamente o investimento original.
Se é o “sacrifício” que está sendo recompensado, então, seguramente, após os primeiros dez anos, todos os lucros deveriam cessar. Pois após este período, os capitalistas teriam recuperado a totalidade do investimento inicial. Na verdade, o capitalista ficou duas vezes mais rico que antes. Ainda tem o seu investimento inicial e os auferimentos acumulados.
Os trabalhadores, durante o mesmo período, sacrificaram grande parte da sua energia trabalhando oito horas por dia, quarenta e sete semanas por ano, na fábrica. Tornaram-se duas vezes mais ricos do que em seu início? Não é certamente o caso. Mesmo que um trabalhador poupe meticulosamente, não será capaz de comprar muito mais do que uma televisão a cores ou um carro barato. O trabalhador nunca será capaz de juntar o dinheiro suficiente para comprar a fábrica onde trabalha. O “pagamento justo” em troca do “trabalho justo” multiplicou o capital do capitalista, deixando o trabalhador sem capital e sem outra escolha a não ser continuar trabalhando polo mesmo salário. Os “direitos iguais” dos capitalistas e dos trabalhadores aumentaram a desigualdade.
Uma das maiores descobertas de Karl Marx foi a explicação para esta aparente anomalia. Não existe mecanismo que force o capitalista a pagar aos seus trabalhadores o valor integral que executam. Um trabalhador empregado, por exemplo, na indústria hoje, pode criar 4 000 francos de riqueza por semana. Mas isto não significa que ele ou ela vai ser pago(a) com essa soma. Em 99% dos casos, receberão bastante menos. A alternativa que eles têm ao trabalho é a fame (ou no máximo viver alguns meses com o miserável salário-desemprego). Assim, não reivindicam o valor total do que produzem, mas apenas o suficiente para um padrão de vida mais ou menos aceitável. O trabalhador é pago apenas o suficiente para colocar todos os seus esforços, toda a sua capacidade de trabalho (chamada por Marx de força de trabalho) à disposição dos capitalistas cada dia.
Do ponto de vista do capitalista, desde que os trabalhadores são pagos o suficiente para ficar saudáveis para trabalhar e criar filhos, que hão ser uma nova geração de trabalhadores, então estão sendo remunerados de forma justa pola sua força de trabalho. Mas o total do valor necessário para manter os trabalhadores em condições de trabalhar é consideravelmente inferior ao valor das riquezas geradas polo seu trabalho, o valor da sua força de trabalho é consideravelmente menor ao valor do seu trabalho. A diferença que vai para o bolso dos capitalistas. Marx chamou a esta diferença “mais-valia”.
Nos escritos dos economistas pró-capitalistas, percebe-se rapidamente que todos eles compartilham a mesma estranha crença. O dinheiro, de acordo com eles, possui propriedades mágicas. Pode crescer como uma planta ou um animal.
Quando um capitalista coloca dinheiro no banco, espera que cresça. Quando ele investe em ações de Promodes ou Total, ele espera ser recompensado com dinheiro novo a cada ano sob forma de dividendos. Karl Marx percebeu esse fenômeno e chamou-o de «reprodução ampliada do capital», e tentou explicá-lo. Como já temos visto anteriormente, a sua explicação não começa com o dinheiro, mas com o trabalho e os meios de produção. Na sociedade de hoje, aqueles que são suficientemente ricos podem comprar os meios de produção. Podem então forçar cada um dos que não têm esse poder a vender a força de trabalho necessária para fazer funcionar os meios de produção. O segredo da «reprodução ampliada do capital», da propriedade milagrosa que o dinheiro tem de crescer para aqueles que já possuem muito, reside na compra e venda da força de trabalho.
Tomemos o exemplo um trabalhador, que chamaremos de João, que tem um patrão, O Sr. Dupont. O trabalho que João pode realizar em oito horas irá criar uma volume adicional de valor - talvez uns quinhentos francos. Mas João aceitará ser pago por muito menos do que isso, uma vez que a alternativa serão os benefícios sociais. Os esforços dos eleitos capitalistas, por vezes de direitas, permite garantir que não terá mais que cento e vinte francos de prestações para se alimentar ele e a sua família. Explicarão que dar mais iria acabar com «o estímulo para o trabalho».
Se João quer receber mais de cento e vinte francos por dia, precisará vender a sua habilidade para trabalhar, a sua força de trabalho, mesmo se lhe for oferecido muito menos que os quinhentos francos que pode produzir a cada dia. Ele concordou em trabalhar, talvez, por trezentos por dia. A diferença, os duzentos francos, irá para o bolso do Sr. Dupont. É a mais-valia do Sr. Dupont.
Por ter dinheiro suficiente para comprar o controle dos meios de produção, em primeiro lugar, o Sr. Dupont pode ter certeza de se embolsar duzentos francos por dia e por trabalhador que empregar. O seu dinheiro continua crescendo, o seu capital aumentando, não por causa de leis estranhas da natureza, mas devido ao fato de que o seu controle sobre os meios de produção lhe permite comprar o trabalho alheio barato.
É claro que o Sr. Dupont não guarda necessariamente todos os duzentos francos, é possível que alugara a fábrica ou a terra, pode ter pedido emprestado algum dinheiro da sua riqueza inicial os outros membros da classe dominante. Eles vão exigir uma parte da mais-valia. Ele perde, pode ser, cem francos na forma de rendas, juros ou dividendos, deixando-o “apenas” cem francos.
Aqueles que vivem de dividendos provavelmente nunca viram João nas suas vidas. No entanto, não é qualquer poder místico da moeda de um franco o que lhes confere as suas riquezas, mas o suor bem físico do João. Os dividendos, os juros e os lucros vêm todos da mais-valia.
O que é que determina quanto João será pago polo seu trabalho? O patrão vai tentar pagar o menos possível. Mas na prática existem limites que não pode ultrapassar. Alguns desses limites são físicos, não é razoável pagar salários aos trabalhadores tão miseráveis que eles fiquem subnutridos e impossibilitados de trabalhar. Eles também têm que ser capazes de se deslocar para o trabalho, ter algum lugar para descansar à noite, para não caírem no sono nas máquinas.
Deste ponto de vista, vale a pena até que eles cheguem a desfrutar de “pequenos luxos”, como uma garrafa de vinho todos os dias, uma televisão, e até mesmo férias. Tudo isso ajuda a repor o trabalhador e torná-lo a trabalhar mais. É preciso que recupere a sua força de trabalho. É importante notar que onde os salários são “mantidos muito baixos” a produtividade cai.
O capitalista tem que se preocupar com outra cousa também. A sua empresa vai estar nos negócios por muitos anos, bem depois de que a primeira geração dos seus trabalhadores estiverem mortos. A empresa vai precisar do trabalho dos filhos desses trabalhadores. Eles devem , também, assegurar que o Estado forneça, a sua educação e algumas habilidades (a leitura e a escrita, por exemplo) através do sistema escolar.
Na prática, alguma cousa mais também importa, aquilo que o trabalhador acredita ser um salário decente. Um trabalhador que recebe um salário mais baixo que esse trabalho decente, negligenciará o seu trabalho, pouco se importando em perder o emprego desde que ele pensa que é “inútil”.
Todos esses elementos determinantes do salário têm uma cousa em comum. Permitem garantir a energia vital, a força de trabalho, para que o capitalista a compre. Os trabalhadores são pagos para manterem-se, eles e as suas famílias, e para estarem aptos para o trabalho.
Na atual sociedade capitalista, mais um outro ponto precisa ser ressaltado. Grandes quantias de riquezas são gastas na polícia e nos armamentos. São utilizados polo Estado em defesa dos interesses da classe capitalista. De fato, eles pertencem aos capitalistas, mesmo que sejam administrados polo Estado. O valor gasto neles pertence aos capitalistas, não aos trabalhadores. Isso também faz parte da mais valia.
Mais-valia = lucro + renda + juros + despesas militares, policiais, etc.
Inclusão | 20/08/2010 |