O Que é o Marxismo?

Chris Harman


A luita de classes


Vivemos numa sociedade dividida em classes, em que uma minoria possui uma grande quantidade da propriedade privada e a maioria de nós não possui praticamente nada. Naturalmente, todos consideramos que as cousas sempre foram assim. Mas de fato, durante grande parte da história humana, não existiram classes, nem propriedade privada nem exército nem polícia. Esta foi a situação durante 500 000 anos de desenvolvimento até 5 000 ou 10 000 anos atrás.

Enquanto o trabalho de um homem não permitia produzir mais alimento do que o necessário para viver, não pôde haver divisão em classes. Com efeito, que interesse poderia haver para ter escravos se tudo o que produzissem seria para alimentá-los? Mas ultrapassado um certo momento, os avanços da produção fizeram a divisão em classes não apenas possível mas necessária. Podia ser produzido suficiente alimento para deixar um excedente depois que os produtores imediatos usassem cabonde para sobreviverem, e os meios necessários para armazenar e transportar alimentos de um lugar para outro.

As pessoas cujo trabalho produzia todo o alimento poderiam simplesmente comer o alimento extra. Uma vez que viviam uma vida miserável, ficavam fortemente tentadas a fazer isso. Mas isso teria-as deixado desprotegidas contra desastres da natureza, como poderiam ser a fame ou uma inundação no ano seguinte e os ataques de tribos vizinhas famintas.

Num primeiro momento era uma grande vantagem para todos, se um grupo especial de pessoas tomasse conta dessa riqueza adicional, estocando-a contra futuros desastres, usando-a para apoiar os artesãos, construindo meios de defesa e trocando uma parte com outras tribos por objetos úteis. Essas atividades começaram a desenvolver-se nas primeiras cidades, onde administradores, mercadores e artesãos surgiram. A necessidade de fazer marcações em tabuletas para registrar diferentes tipos de riquezas, começou a desenvolver a escrita.

Assim foram os primeiros passos vacilantes do que nós chamamos de “civilização”. Mas — e este é um mas importante —, tudo isso era baseado no controle da riqueza por uma pequena minoria da população. E essa minoria usava a riqueza para seu próprio bem tanto como para o benefício da sociedade como um todo.

Quanto mais a produção se desenvolvia, mais riquezas se concentravam nas mãos desta minoria — e mais ela se afastou do resto da população. As regras, que eram no início um meio para a sociedade viver, tornaram-se “leis”, insistindo que a riqueza e a terra que a produzia eram “propriedade privada” da minoria. Uma classe dominante tinha surgido e as leis defendiam o seu poder.

Poderíamos perguntar se teria sido possível para a sociedade se desenvolver de outra forma, se teria sido possível para aqueles que trabalhavam na terra controlar a sua produção? A resposta deve ser negativa, não por causada “natureza humana”, mas porque a sociedade era ainda muito pobre. A maioria da população da terra estava muito ocupada cavoucando o chão numa vida mísera para ter tempo para desenvolver a escrita e a leitura, criar obras de arte, construir navios para o comércio, determinar o curso das estrelas, descobrir os princípios básicos da matemática, para evitar as cheias dos rios, transbordar ou entender como podem ser construídos os canais de irrigação. Todas estas cousas somente podem ser descobertas se todas as necessidades da vida forem retirados da massa da população, permitindo uma minoria privilegiada não ter de trabalhar do nascer ao pôr-do-sol.

No entanto, isto não significa que a divisão em classes permaneça necessária hoje em dia. O último século testemunhou um desenvolvimento da produção nunca sonhado nas gerações passadas. A escassez natural tem sido vencida, o que existe agora é uma falta artificial, criada polos governos através da destruição de estoques de alimentos.

A sociedade de classes, hoje, não empurra para adiante a humanidade, polo contrário, impede-a de avançar.

Não foi apenas a primeira mudança de uma sociedade puramente agrícola em sociedades urbanas que deu origem às novas divisões de classe. O mesmo processo se repetiu cada vez que novas formas de produzir riquezas começaram a se desenvolver.

Assim, na França, mil anos atrás, a classe dominante era composta por barões feudais que possuíam a terra e viviam das costas dos servos. Mas enquanto o comércio cresceu em grande escala, surgiu ao lado deles nas cidades uma nova classe privilegiada, de ricos comerciantes. E quando a indústria começou a se desenvolver a uma escala considerável, a sua autoridade foi questionada polos proprietários de empresas industriais.

Em cada estágio do desenvolvimento da sociedade houve uma classe oprimida, cujo trabalho físico criou a riqueza, e uma classe dominante que controlava esta riqueza. Mas, durante o desenvolvimento da sociedade, ambas as classes passaram por mudanças. Na sociedade escravista da Roma antiga, os escravos eram propriedade pessoal da classe dominante. Aos proprietários de escravos pertenciam os bens produzidos polos escravos porque a eles pertenciam os escravos, tal como a eles pertencia o leite produzido polas vacas porque a eles pertenciam as vacas.

Na sociedade feudal da Idade Média, os servos possuíam as suas próprias terras, e possuíam o que era produzido nelas. Mas por outro lado para manterem essas terras, tinham que trabalhar um certo número de dias por ano nas terras do senhor. A sua vida estava dividida: talvez a metade do tempo trabalhavam para o senhor e a outra metade para si. Se eles se recusassem a trabalhar para o senhor, poderia castigá-los (com açoutes, prisão ou pior).

Na sociedade capitalista moderna, o patrão não possui fisicamente o trabalhador, nem pode castigá-lo fisicamente se recusa a trabalhar de graça para ele. Mas o patrão possui as fábricas onde o trabalhador têm que conseguir trabalho se quiser continuar vivendo. Então, é muito fácil forçar os trabalhadores a aceitar um salário que está bem abaixo do valor dos bens que produzem.

Em cada caso a classe dominante controla toda a riqueza que resta, uma vez que as necessidades mais elementares dos trabalhadores estão satisfeitas. O proprietário de escravos quer manter a sua propriedade em bom estado, por isso alimenta o seu escravo exatamente como colocamos gasolina no automóvel. Mas tudo o que ultrapassa as necessidades físicas do escravo, o proprietário usa-o para o seu próprio bem-estar. O servo tem de se alimentar e vestir-se com o trabalho que ele arranca da sua terra. Qualquer trabalho suplementar colocado na terra do senhor vai para o senhor.

O trabalhador moderno recebe um salário. Todas as outras riquezas que ele cria vão para os seus empregadores, sob forma de lucros, juros ou rendas.

A luta de classes e o Estado

Os trabalhadores raramente têm aceitado o seu destino sem resistência. Houve revoltas de escravos no antigo Egito e na Roma antiga, revoltas de camponeses na China imperial, guerras civis entre ricos e pobres nas cidades da velha Grécia, em Roma e durante o Renascimento na Europa.

Por isso é que Karl Marx iniciou O Manifesto do Partido Comunista insistindo:

A história de todas as sociedades que existiram até agora tem sido a história da luita de classes”.

O desenvolvimento da civilização ocorreu através da exploração de uma classe por outra, e portanto das suas luitas.

Por mais poderoso que fosse um faraó egípcio, um imperador romano ou um príncipe medieval, por mais suntuosas as suas vidas, escolhidos os seus palácios, nada podiam fazer se não garantiam que a apropriação dos produtos cultivados polos lavradores ou os escravos mais miseráveis passassem polas suas mãos. E podiam fazer isso somente se, junto com a divisão em classes, também se desenvolvesse uma outra cousa: o controle sobre os meios de violência, por si ou polos seus apoiantes.

Nas sociedades anteriores não havia aparelho armado, polícia e nenhum governo separado da maioria da população. Mesmo há cinquenta ou sessenta anos, em algumas partes da África, por exemplo, era possível encontrar sociedades nas quais ainda a situação era essa. Muitas das tarefas cumpridas polo Estado na nossa sociedade eram feitas simplesmente, sem formalidades, por toda a população ou por assembleias de representantes.

Tais assembleias julgavam o comportamento de qualquer pessoa que fosse acusada de ter quebrado uma importante regra social. O castigo podia ser aplicada por toda a comunidade, por exemplo, obrigando a pessoa a deixar a comunidade. Uma vez que todos concordavam com o castigo, não havia qualquer necessidade de uma polícia separada para tornar eficaz a tomada de decisão. Se uma guerra tivesse início, todos os jovens entrariam em combate sob a liderança de chefes escolhidos para a ocasião, novamente sem qualquer necessidade de uma estrutura militar separada.

Mas numa sociedade onde uma minoria tem o controle sobre quase toda a riqueza, estes métodos simples de manter a “lei e a ordem” e a guerra já não podem ser usados. Qualquer assembléia de representantes ou cada grupo de jovens armados iria, sem dúvida, se dividir conforme o interesse de cada classe.

O grupo privilegiado não poderia sobreviver se não tivesse o monopólio sobre a elaboração e aplicação dos castigos, leis, a organização militar, a produção de armas. Assim, a separação em classes foi acompanhada polo surgimento e desenvolvimento de grupos de juizes, policiais e agentes do serviço secreto, generais, burocratas, para os quais a classe privilegiada ofereceu parte da riqueza da qual se apropriou em troca de proteção para o seu reinado.

Aqueles que serviram nas fileiras do “Estado” foram treinados para obedecer sem indecisão as ordens dos seus “superiores” e foram cortados todos os laços sociais com as massas populares exploradas. O Estado tornou-se uma máquina de matar nas mãos da classe privilegiada. E uma máquina extremamente eficaz.

Naturalmente, os generais que controlam esta máquina derrubavam frequentemente um imperador ou um rei e tentavam tomar o seu lugar. A classe dominante, tendo armado um monstro, nem sempre conseguia controlá-lo. Mas desde que a riqueza necessária para o funcionamento da máquina assassina vem da exploração das massas trabalhadoras, cada revolta semelhante era seguida pola continuação da sociedade nos velhos métodos.

Ao longo da história, aqueles que sinceramente quiseram mudar a sociedade se encontraram diante, não apenas a classe dominante, mas também uma máquina armada, um Estado, que serve aos interesses desta classe.

As classes dominantes, e com eles os sacerdotes, os generais, os policiais e as leis, surgiram em primeiro lugar, porque sem eles a civilização não poderia se desenvolver. Mas, então, uma vez no poder, passou a ser do interesse deles travar este desenvolvimento. O seu poder depende da capacidade em forçar quem produz a entregar a riqueza que produze. Eles ficam contrários a qualquer novos modos de produzir, mesmo que sejam mais eficientes do que os antigos, como eles não os controlem.

Temem qualquer cousa que possa conduzir as massas exploradas a desenvolver a sua iniciativa e a sua independência. Temem também o surgimento de novos grupos privilegiados, suficientemente ricos para ter armas e exércitos sob as sua próprias ordens. Além de um certo ponto, não ajudam o desenvolvimento da produção, mas sim tentam sufocá-la.

Por exemplo, na China Imperial, o poder da classe dominante se apoiava na propriedade da terra, no controle sobre os canais e diques utilizados para a irrigação e evitar inundações. Este tipo de controle foi a base para o desenvolvimento de uma civilização que durou 2 000 anos. Mas ao final deste período, a produção não era mais avançada que no seu início, apesar da florescente arte chinesa, a descoberta da imprensa e da pólvora, tudo isso na época em que a Europa medieval estava mergulhada no estancamento.

O motivo foi que, quando novas formas de produção apareceram, isso aconteceu nas cidades, por iniciativa dos comerciantes e artesãos, a classe dominante temia o surgimento do poder de grupos que não estavam completamente sob o seu controle. Assim, periodicamente, as autoridades imperiais tomavam medidas muito duras para esmagar a economia emergente das cidades, para reduzir a zero a produção e destruir o poder destas novas classes sociais.

O desenvolvimento de novas forças de produção — novas formas de produzir riquezas — chocou com os interesses da velha classe dominante. Uma luita desenvolveu-se cujo resultado viu determinar o futuro de toda a sociedade.

Às vezes, como na China, essas novas formas não foram capazes de emergir, e a sociedade permaneceu mais ou menos ao mesmo nível durante período prolongado. Por vezes, como foi o caso do Império Romano, a incapacidade de crescer as novas formas de produção implicou que já não havia bastante produção de riqueza para manter a sociedade sobre suas velhas bases. A civilização entrou em colapso, as cidades foram destruídas e as pessoas voltaram a uma forma de sociedade agrícola e atrasada.

E outras vezes, uma nova classe, que desenvolveu novas formas de produção, foi capaz de se organizar para enfraquecer e finalmente derrubar a velha classe dominante, e com ela as suas leis, os seus exércitos, a sua ideologia e religião. Desse modo, a sociedade pôde avançar.

Em cada caso, a sociedade avançava ou recua dependendo de quem vença a guerra entre as classes. E, como em toda guerra, a vitória não é garantida de antemão, tudo depende da organização, da coesão e da direção de cada classe em luita.


Inclusão 14/08/2010