O Império de Havana

Enrique Cirules


V. Escândalos, Roubos e Fraudes


capa

A margem de outras baixas paixões, interesses pessoais, ajustes de contas, vinganças, justiçamentos e um sem-número de ações criminosas, o gangsterismo macartista nativo constituiu em Cuba um eficaz meio de corrupção, cuja força principal seria utilizada contra o velho partido comunista e o vigoroso movimento operário dirigido por Lázaro Pena.

A organização desse gangsterismo permitiu ao doutor Carlos Prío Socarrás (inicialmente no Ministério do Trabalho e depois como primeiro-ministro) ascender à presidência da República, para um segundo período autêntico, ao lado de um vice-presidente que respondia inteiramente à cúpula político-militar do general Batista.

Em um relatório entregue ao Tribunal de Contas e publicado na imprensa da época, o jovem advogado Fidel Castro acusou o presidente Prío de manter vínculos estreitos com o gangsterismo.

Prío não é alheio à relação com as bandas. Eles o escoltaram cuidadosamente durante toda a sua campanha política. Subiu ao poder saturado de compromissos.

Assim, ao grupo de Guillermo Comellas foram oferecidos 60 cargos; ao Tribunal Exemplar Revolucionário, 110; à União Insurrecional Revolucionária, 120; à Ação Guiteras, 150; ao grupo Colorado, 400; ao grupo de Masferrer, 500; e ao grupo de Policarpo, que era o mais temível, 600 cargos acrescidos aos oferecidos para os grupos menores. São, segundo dados em meu poder, 2. 120 os cargos cobrados sem prestar serviços nos ministérios de Saúde, Trabalho e Obras Públicas.

O número de cargos por pessoa, em alguns casos, é alarmante. Por exemplo: Manuel Villa tem 30 cargos; Guillermo El Flaco, 28; Pepe El Primo, 26; e o Boxer ( cujo nome eu ignoro), 26 cargos, distribuídos por listas ou por cachê em diárias sob distintos nomes.

As pistolas com as quais se mata são pagas por Prío.

Os carros nos quais se mata são mantidos por Prío.

Os homens que matam são sustentados por Prío.

Para concluir estas linhas que escrevi com a mais absoluta honradez e sinceridade, só me resta repetir aquelas palavras de Martí quando exortava os cubanos à luta: ‘Para ti, Pátria, o sangue das feridas deste mundo e o sorriso dos mártires ao cair. Para ti, Pátria, o entusiasmo sensato de teus filhos, a dor de servir-te e a resolução de ir até o fim do caminho!’(1)

Os recursos para esse gangsterismo macartista eram obtidos através do famoso inciso K. Chegou-se a investir 3, 4 milhões de pesos (com o valor do dólar) por mês para financiar tais grupos. Em outubro de 1948, esse inciso K tinha um excedente utilizado de 11 milhões de pesos, acumulados nos dez meses anteriores.(2)

Os Prío, além de ser amigos dos mais importantes mafiosos norte-americanos, voltaram-se rapidamente para o consumo de cocaína e constituíram um clã que exemplificou o delirante período de constituição de um Estado de caráter criminoso, em sua segunda etapa (1944-1952).

Nos primeiros meses de 1948, a droga era comprada em Chicago a 16 dólares o quintal e vendida em Cuba a 65 pesos. Esse negócio rendia ao terceiro andar do Palácio Presidencial 5 mil pesos diários. As fraudes do Conselho Corporativo (compras no exterior) eram também milionárias, enquanto não existia uma única grama de estreptomicina nos ambulatórios do país destinados ao tratamento da tuberculose. A malversação na alfândega de Havana ascendia a 7 milhões de pesos, e se segregavam dezenas de milhões com a cobertura da conversão do dólar e a compra de ouro. Eram fraudadas cifras milionárias nas zonas de livre comércio do país. O Ministério da Fazenda também fraudava em vários milhões. As infiltrações nos manejos da cobrança dos impostos outorgavam ao Palácio 60 mil pesos diários. A Loteria Nacional deixava 2 pesos de taxa por bilhete vendido, o que, multiplicado por 43 mil bilhetes, chegava à cifra semanal de 80 milhões de pesos.(3)

O autenticismo caracterizou-se por grandes escândalos, roubos, fraudes e malversações:(4) o processo 182, de 74 milhões de pesos; as falsas incinerações de dezenas de milhões, em bilhetes retirados de circulação; e o desmonte da rede de ônibus de Havana.

O sistema rodoviário é um dos melhores e mais econômicos meios de transporte para um país sem grandes recursos energéticos ou financeiros; em Cuba as redes rodoviárias foram desmanteladas não apenas na capital, mas também em outras importantes cidades. Quase todo o transporte de passageiros na Ilha passou a depender da cada vez mais custosa importação de ônibus, alegando-se que os bondes eram ineficientes, caros, quando grandes cidades da Europa ainda mantinham esses serviços, por mais que contassem com outros meios mais modernos.

Durante o autenticismo, generalizaram-se a corrupção administrativa, a especulação, os negócios fraudulentos, os baixos salários e uma espiral inflacionária de grande magnitude, o que afetou os interesses populares.

Grau e Prío intensificaram a corrupção até índices absurdos através de uma ofuscante democracia nunca antes conhecida na América. Mas, essencialmente, a crise do autenticismo diante do esquema imposto pelo imperialismo deveu-se à desmesurada ambição de sua cúpula.

O esclarecimento desse tema revelou que os autênticos mais bem situados na cúpula sempre tiveram a sensação de estar em trânsito, como força emergente a serviço dos grupos financeiros-Máfia-serviços especiais dos Estados Unidos; portanto, sentiam que tinham de agir rápido.

A análise do período anterior (1934-1944) revela uma situação diferente. Batista havia dominado na década de 30, na qualidade de fiel representante de cada uma das forças que passaram a operar contra os interesses da nação cubana. Todavia, o ex-sargento havia contribuído em especial na ação de criar bases sólidas para que o período tivesse uma rigorosa continuidade histórica.

Batista sempre manteve o controle real dentro do poder aparente, ao contrário dos autênticos. É por isso que as forças que passaram a dominar a economia e a política cubanas outorgam a Batista certa participação em negócios controlados, embora o general nunca tenha realizado dentro do país grandes investimentos (mesmo dispondo de uma fortuna milionária), a não ser como testa-de-ferro, em operações que pertenceram à Máfia.

A verdade é que, para a cúpula autêntica, só estavam reservados os roubos e fraudes que dependiam completamente da administração, enquanto os mais suculentos negócios eram fechados. Não seria estranha então a reação do governo norte-americano quando Prío foi incitado a exceder-se em um marco de exigências competitivas,(5) reservado somente aos grupos dominantes no poder.

Além das pretensões moralizadoras de Eduardo R. Chibás, o outro acontecimento que acelerou os arranjos subterrâneos dos grupos financeiros-Máfia-serviços especiais norte-americanos, dirigidos ao golpe de Estado de 1952, foi o escândalo produzido nos Estados Unidos pelas revelações da Comissão Kefauver.(6)

Em março de 1950, o senador Estes Kefauver, legislador pelo Estado de Tennesee, depois de uma extensa investigação sobre o crime organizado nas principais cidades americanos, chegou à conclusão de que as operações da Máfia nos Estados Unidos constituíam uma conspiração monstruosa, ultrajante.(7)

A Comissão Kefauver apresentou uma lista que incluía os mais relevantes capos do baixo mundo americano. Esses mafiosos tinham conseguido criar verdadeiros impérios, não só referentes a negócios ilícitos, mas também a cada vez mais importantes e numerosas empresas legais. As cidades mais afetadas pelo domínio dessa trindade de interesses — crime, negócios e política — eram Miami, Tampa, Nova Orleans, Saint Louis, Detroit, Los Angeles, San Francisco, Las Vegas, Filadélfia, Washington, Chicago e Nova York.

O próprio senador Kefauver, que encabeçou aquela investigação, enumerou alguns aspectos que caracterizavam a expansão da Máfia nos Estados Unidos:

  1. Nos Estados Unidos existe um sindicato do crime que abarca toda a nação, apesar dos protestos de diversos criminosos, dos políticos a seu serviço, de alguns cegos de nascença e de outros que podem estar honradamente equivocados, que sustentam que não existe esta combinação.
  2. Por trás dos bandos locais que formam o sindicato do crime nacional, existe uma organização internacional que permanece nas sombras, conhecida como Máfia, tão fantástica que muitos americanos consideram difícil acreditar em sua realidade.
  3. A infiltração dos bandidos nos negócios legais foi progredindo de uma maneira alarmante nos Estados Unidos. O Comitê sob minha presidência descobriu várias centenas de casos em que conhecidos bandidos, muitos deles empregando a coação, haviam-se infiltrado em mais de setenta negócios legítimos.(8)

Essas observações revelaram que, a partir de 1942, foram realizados arranjos para abrir ainda mais os canais da droga, que se encarregavam de “trazer heroína de Marselha via Cuba, até Kansas City, para sua distribuição no Médio Oeste”.(9)

Em março de 1951 (e durante oito dias), a Comissão presidida por Kefauver efetuou um conjunto de audiências públicas em Nova York. Para essas audiências foi requerida a nata dos racketers(10) norte-americanos; foram chamados, sentados e interrogados diante das câmaras de televisão e foi questionada muito seriamente a existência da Máfia. Pela primeira vez foi utilizada a televisão para questionar o crime organizado nos Estados Unidos, e as apresentações, transmitidas para todo o país, permitiram que dezenas de milhões de norte-americanos se defrontassem com essa realidade.

Com aquela denúncia, a nação inteira estremeceu, e podia-se presumir que a Máfia se sentisse verdadeiramente ameaçada. Muitos grandes nomes — Joe Adonis, Frank Costello, dom Vito Genovese, Humberto Anastasia, Meyer Lansky, Joe Profaci e outros mafiosos célebres — sentiram medo ao perceber que seus interesses se achavam em perigo. Tratava-se de uma elite enriquecida, que havia alcançado grande projeção e que, naquele momento, iniciava um processo que levaria à legalização de sua fortuna multimilionária.

Portanto, em 1950, apesar dos múltiplos arranjos realizados e da influência que exercia sobre a economia e a política nos Estados Unidos, a Comissão Kefauver demonstrou que a Máfia ainda era vulnerável.

Logo depois dessas descobertas, as novas circunstâncias que favoreceram os grupos de poder nos Estados Unidos (a obra total da Comissão Kefauver, contendo a investigação, nunca foi exposta plenamente ao conhecimento público) foram se diluindo nas mais altas instâncias e finalmente conduziriam, em 1963, ao assassinato do presidente John F. Kennedy.

Todavia, em meados de 1951, a Máfia teve de reconhecer que seus interesses se encontravam verdadeiramente ameaçados. Esse perigo incluía, claro, os grupos que se haviam instalado em Havana desde 1934, quando Luciano reorganizou mais de cem grupos e deixou por conta de Meyer Lansky a Flórida e algumas regiões do Caribe, incluindo a maior das Antilhas.

Os grupos de Havana avançaram com muita rapidez e, em 1940, possuíam um extraordinário império, reforçado notavelmente depois dos arranjos que foram produzidos com a inteligência norte-americana. A partir de então, inaugurou-se uma mais secreta e tolerante complacência com os interesses da Máfia nos Estados Unidos.

Era lógico que os grupos de Havana também se beneficiassem com aquela bonança e estendessem alguns negócios a certas áreas de Nova York, na expansão acelerada de Las Vegas e, sobretudo, nos crescentes investimentos que estavam sendo realizados na península da Flórida.

No entanto, Havana continuou sendo um lugar de primeira magnitude. Ainda quanto ao turismo endinheirado, a infraestrutura não se desenvolveu; ao contrário, dedicaram-se a manter a Ilha como uma sólida base para o tráfico de drogas ou de pedras preciosas, para o jogo em suas diversas variantes, para os tradicionais centros hoteleiros e os luxuosos cabarés. O consumo crescente de cocaína, as importantes corridas de cavalo e outros negócios eram as relações com o centro internacional financeiro da capital cubana, que possibilitavam às famílias de Havana manter excelentes relações com o resto da Máfia nos Estados Unidos, no que se refere à legalização de grandes fortunas. Também operavam dezenas de companhias e empresas que serviam de cobertura legal.

Em 1951, o Império de Havana era extraordinariamente poderoso. Havia inclusive operações em espaços cada vez mais importantes da economia cubana, em um entrecruzamento com os grupos financeiros e os serviços especiais. E ainda que não tivesse aumentado (alguns afirmam que diminuiu) a afluência do turismo milionário, agora canalizado para Los Angeles, Nova York, Flórida ou Las Vegas, Havana continuou sendo um lugar de características peculiares para assuntos muito lucrativos ou delicados.

De qualquer forma, com os escândalos detonados nos Estados Unidos pelas revelações da Comissão Kefauver, os grupos de Havana eram os que estavam em melhores condições de reorganizar uma retaguarda que sempre lhes assegurou impunidade. O problema era conseguir que o Império de Havana fosse cada vez mais estável, eficiente, tolerante, agora que apareciam algumas inquietações em Cuba, relacionadas com as próximas eleições, para o novo mandato que começaria em 1952.

Essas duas situações entre 1950 e 1951, as pressões às quais estava sendo submetida a Máfia nos Estados Unidos e o programa demoralização do Estado burguês preconizado por Eduardo R. Chibás constituíam, sem dúvida, os maiores perigos para os interesses das famílias instaladas em Havana.

Na realidade, naquele momento em Cuba a ameaça mais real, mais imediata, mais temida para os negócios da Máfia provinha de uma ala dissidente do autenticismo, liderada por Chibás.

Ainda que a cúpula do partido de Chibás estivesse sendo objeto de uma acelerada penetração (feita por políticos tradicionais, agentes encobertos e latifundiários, entre outros), era esse partido que arrastava, em 1951, as grandes maiorias insatisfeitas e que exigia que o governo fosse capaz de combater a corrupção imperante.

As outras forças com possibilidade de oferecer uma resistência organizada às manobras que os grupos financeiros-Máfia-serviços especiais, especialmente os norte-americanos, empreenderiam tinham sido perseguidas e reprimidas durante anos: sindicatos assaltados e a esquerda revolucionária procedente do movimento operário cubano, anteriormente poderoso, que depois chegara às mãos de Eusébio Mujal.

Da mesma forma, iniciara-se uma gigantesca campanha contra o velho Partido Comunista, repleta de calúnias e difamações. Estimulados por essa grande campanha, ocorreram os assassinatos de dirigentes importantes, entre eles Jesus Menéndez, dos trabalhadores açucareiros, e Aracelio Iglesias, dos trabalhadores portuários de Havana. Também seriam perseguidos e assassinados, em Camaguey e Oriente, alguns dos mais destacados representantes dos movimentos camponeses.

Em 1951, os serviços especiais norte-americanos consideravam que as forças de esquerda em Cuba, dada a intensa batida repressiva de que foram objeto, eram incapazes de encabeçar uma resistência imediata diante de qualquer manobra, arranjo político ou passagem de governo que ocorresse na Ilha.

Os meios de comunicação de massa — rádio, televisão e imprensa escrita —, utilizados para esse fim, estavam alcançando um sucesso extraordinário e constituíam um verdadeiro trunfo na manipulação dos acontecimentos políticos. Além dos tradicionais meios da imprensa cubana, surgiam outros importantes consórcios, como o dirigido pelos irmãos Goar Mestre, e outros órgãos que respondiam às diversas cúpulas político-militares situadas no poder aparente ou na oposição. A Máfia, por sua vez, buscando uma maior influência naquele complexo e precário equilíbrio, também começou a operar com seus meios, através do jornal El Mundo, da Union Radio e de alguns canais de televisão.

Mas, apesar de tudo, Chibás seria, sem dúvida, o próximo presidente; embora o seu programa político não contivesse profundas transformações econômicas e sociais, propunha o urgente saneamento administrativo, moral e político do país, o que, dada a situação a que havia sido arrastada a nação cubana, não correspondia de forma alguma aos projetos do esquema imposto em Cuba pelo imperialismo norte-americano.

É ilustrativo o fragmento da carta que Orestes Ferrara, político corrupto de origem italiana, enviou ao vice-presidente de Carlos Prío Socarrás, Guillermo Alonso Pujol, em 31 de dezembro de 1950:

Você me dirá que eu já considero Chibás na Presidência. Não: a distância, eu não posso dar opiniões tão precisas. Mas as eleições devem ser honradas e inapeláveis: é preciso pensar bem, antes, no que pode ser feito.

Na atual situação de Cuba, ou deve-se levar Chibás por um caminho construtivo, tranquilizador, de solidariedade, sem estridências, ou apresentar uma situação que se oriente para seus próprios fins de honorabilidade e decência política, tirando-lhe a exclusividade de um programa que, afinal de contas, é uma aspiração de todo bom cidadão e não deste ou daquele partido. Se eu lhe falei a este respeito em duas ocasiões é porque considero este assunto um problema crucial. Minha opinião é a seguinte: se a vontade popular manifesta é que Chibás seja presidente, tem de chegar ao poder como homem de Estado e não em atitude demagógica. Se isto não é possível, deve-se procurar desviar a opinião pública, apresentando candidatos e programas que tornem ineficaz a pregação do caudilho em gestação. Como Chibás irá ao governo a título pessoal (porque o partido é ele), torna-se mais importante que em outros casos saber de antemão o que ele pensa.(12)

A carta era estritamente particular (nessa data Charlie Lucky Luciano também se encontrava em Nápoles),(13) mas Pujol procedeu imediatamente à sua publicação, com o objetivo de evitar que se pudesse implementar uma opção parecida, já que, naquele momento, Pujol se encontrava em contatos secretos com o general Batista, para assuntos do golpe de Estado.(14)

Uma análise do acossamento psicológico a que foi submetido Chibás, que acabou por levá-lo ao suicídio, leva-nos a pensar que os serviços especiais norte-americanos fizessem um rigoroso estudo de sua personalidade, com a colaboração de verdadeiros profissionais, antes de montar a operação encoberta, a fim de que fosse eliminado o que, na época, consideravam o maior obstáculo interno, utilizando para essa manipulação psicológica o ministro da educação do presidente Prío, Aureliano Sánchez Arango.

Chibás encontrava-se envolvido em um intenso processo de acusações e denúncias. Eram tais os desmandos e a desmoralização que, diante das contínuas cobranças da opinião pública, em uma sensacional entrevista, o presidente Prío declarou que não podia:

Aceitarque se ataque o Exército dessa forma, com essas denúncias quevocês vêm formulando! Não é justo que os ataques se concentremsobre Columbia (principal acampamento militar do país) quando o fenômeno do contrabando se dá também em outros aeroportos! De acordo com as estatísticas, só vinte por cento do comércio ilegal efetua-se pelo campo de Columbia.(15)

A primeira coisa que Aureliano fez para implementar a operação foi uma provocação ao líder da ortodoxia: acusou-o de estar comprometido com sujas especulações que estavam se realizando como café.

Chibás tomou aquela calúnia como um assunto de honra e também como algo absolutamente pessoal. Estavam em suspenso certas viagens misteriosas do presidente Prío à Guatemala, no avião particular de Aureliano, sem a autorização do Congresso, o que parecia muito suspeito.

Chibás travava uma batalha geral contra a corrupção do governo autêntico quando, de repente, sem que se possa precisar como, entre as mil e uma traições cometidas diariamente pelo autenticismo, foi induzido a denunciar uma suposta operação fraudulenta.

Mergulhou de cabeça no problema e, em uma de suas investidas, acusou Aureliano de haver comprado com o dinheiro da merenda escolar alguns terrenos na Guatemala, para a construção de uma luxuosa mansão.

Aureliano contra-atacou imediatamente e chamou-o de difamador e mentiroso, desafiando-o a apresentar provas. Chibás, por sua vez, comprometeu-se a responder com evidências, porque, segundo ele, as provas daquela nova fraude encontravam-se em sua pasta; a partir de então, os invisíveis começaram a manipular todo o problema.

A polêmica Chibás-Aureliano logo se tornou o centro de interesses nacional, com sucessivos adiamentos estudados e ponderados. Aureliano estava muito bem assessorado nesse processo, pois um enfrentamento público seria televisionado. Na realidade, seguiu-se uma intensa troca de posturas, de desafios e de réplicas insidiosas dos autênticos, que rapidamente ocuparia todos os espaços: casas, ruas, praças, centros de estudos e sindicatos, em uma manobra que se caracterizou por magistral manipulação de espaços de rádio, colunas jornalísticas, rumores e fofocas, que monopolizaram rapidamente a opinião pública. Todos os outros assuntos foram adiados, à espera de que Chibás abrisse sua pasta.

Para que se efetuasse aquele debate, foram impondo ao líder da ortodoxia condições intermináveis, e Chibás as foi aceitando uma a uma.

A primeira condição era que o debate devia durar quatro dias. Por mais insólito que fosse, Chibás aceitou. A outra condição, também imposta por Aureliano, era que Chibás não envolvesse, nem utilizasse, nem acusasse o presidente da República. Era algo mais que insólito, mas Chibás também aceitou.

A ideia da mansão na Guatemala tornara-se uma obsessão para Chibás, e Aureliano aproveitou-se disso para impor uma nova condição: que ninguém fizesse alusão ao governo de Prío. O debate devia se concentrar apenas em um suposto investimento seu em uma mansão na Guatemala.

O encontro ficou marcado para 21 de julho de 1951, às 9 e meia da noite, no auditório do Ministério de Educação. Seria transmitido por televisão e pelas cadeias de rádio, e Chibás deveria comparecer absolutamente sozinho, com a pasta de provas na mão.

Como parte do plano, circularam rumores e ameaças. Chegou-se inclusive a dizer que o debate não seria coberto pela imprensa nem transmitido pela televisão, e Chibás temeu que aquele desejado encontro não pudesse se realizar.

Chibás considerava (acreditava ou o haviam feito acreditar; ou, simplesmente, alguém lhe havia prometido aquelas provas) que o debate sobre a mansão na Guatemala encontrava-se em suas mãos. E temia que o enfrentamento pudesse ser suspenso ou diluído pela cúpula do autenticismo. Por isso, no próprio dia 21 de julho, enviou a Aureliano uma carta em que lhe oferecia novas concessões:

Aceito de antemão, sem discussão, todas as novas condições que formulou e as que possa formular no futuro, até 9 e meia da noite de hoje. Aceito que o tema a tratar seja o que você deseja: terrenos na Guatemala e malversações da merenda e do material escolar. Aceito também que o tema seja exclusivamente Guatemala, eliminando os outros dois. Aceito de cara qualquer outra variante que você proponha. Aceito o que você quiser, contanto que isto evite que o debate seja suspenso. Só reclamo uma coisa: absoluta liberdade de palavra.(16)

A conjuração estava em andamento. Aureliano manteve reuniões secretas com o ministro da Presidência e o chefe da polícia nacional, com Prío e os seus assessores. A imprensa soube também que “se havia renovado febrilmente o porte de armas da guarda do Ministério da Educação.(17)

Uma prova da manipulação psíquica a que Chibás foi submetido é a carta que o líder da ortodoxia recebeu na última hora:

Custou-me tempo e paciente trabalho, mas finalmente situei você no terreno em que deve estar e do qual você fez incessantes e vãos esforços para escapar, dignos de melhor causa. Espero você, então, esta noite no auditório do Ministério da Educação para debater, exclusivamente, estes três pontos, aliás correlacionados: sua calúnia infame no sentido de que eu estou construindo uma mansão na Guatemala com o produto das malversações dos fundos do material e da merenda escolar. . .

Espero você para isso, lembre-se bem, para isso e somente para isso. Quando você, utilizando de seus métodos habituais — que eu conheço melhor do que ninguém em Cuba —, afastar-se do tema, será chamada a sua atenção pelo coordenador. Se você repetir a sua manobra suja — que é, sem dúvida, o motivo pelo qual você vem ao auditório —, você perderá definitivamente o direito à palavra. Como conheço as suas misérias, as suas simulações, as suas farsas e as acrobáticas manobras, todas de má-fé e fraudulentas, os seus gritos e a sua histeria afeminada já faz 24 anos, sei muito bem que você tem a intenção de descumprir estas condições e de não acatar a autoridade do coordenador. Outra coisa, e esta é a última: a única pessoa que entendeu o seu famoso e insistente paragrafozinho sobre a liberdade de expressão em todo este tempo fui eu. A liberdade de palavra, para você, significa, concretamente, a liberdade de insulto contra o presidente Prío, sua família e seu governo e, por outro lado, liberdade para escapar, para fugir de sua covarde calúnia, ficando de tal modo dissolvido, ignorado, esquecido o tema único do material escolar e da merenda, relacionados com a mansão na Guatemala.”(18)

Para o desenvolvimento da polêmica, Aureliano designou como moderador Octavio de la Saurée Tirapó, diretor da escola de jornalismo de Havana, cronista parlamentar há vinte anos e homem apegado sem dúvida a seu nome.

Naquele mesmo dia, ao entardecer, os invisíveis localizaram Chibás em um restaurante do Vedado, em companhia de Pardo Liada e de outros amigos. Saurée Tirapó dirigiu-se à mesa de Chibás e lhe entregou a última lista de demandas, na qual exigiam não fazer referência a pessoas do governo, salvo ao próprio ministro da Educação. Nem sequer podiam ser mencionados os funcionários, nem o presidente da República, nem seus familiares, nem o governo como entidade.

Como de fato era possível abordar o tema da Guatemala à margem de outras irregularidades cometidas pelo autenticismo, Chibás aceitou. Mais do que isso, comprometeu-se a não mencionar o cúmplice principal: o presidente da República.

Para aquele debate, Aureliano designou juízes, nomeou moderadores e dispôs guarda-costas armados. Contratou, além disso, várias emissoras de rádio, estações de televisão e noticiários de cinema e, em menos de uma semana, publicou 1000 polegadas de anúncios e textos nos principais jornais.

Esse esbanjamento de publicidade criou uma grande expectativa: os partidários e os opositores desejavam sobremaneira que Chibás mostrasse as provas de que dispunha.

No início da noite de 21 de julho, a polícia, sob as ordens do comandante Casais, tomou todas as ruas que levavam ao Ministério da Educação pouco antes das 9; quando Chibás parecia sozinho (tinham ficado para trás seus mais próximos colaboradores), alguém ordenou que se fechasse o portão do Ministério.

Os cronistas da época afirmam que a porta estava entreaberta e que, depois de dada aquela ordem, uma legião de porteiros, burocratas e policias correram para fechá-la na cara de Chibás.

— Você não tem nada a fazer aqui — gritou-lhe um capitão da polícia.

Chibás discutiu, mas foi inútil. Não o deixaram entrar, e ele teve de se retirar. Dentro do prédio, diante das câmaras de televisão e dos microfones de numerosas emissoras, Aureliano olhava o relógio a cada momento “para dar a impressão de que aguardava seu adversário”.(19)

Em seguida, o magnífico simulador ocupou o centro da Presidência, distribuiu saudações e recebeu aplausos. Ia começar o ato. Ia começar a farsa.

A ausência de Chibás no auditório do Ministério de Educação ficou para a manipulada opinião pública não como um ato de força imposto por Aureliano, mas como parte da impotência e da covardia do líder da ortodoxia, porque um dos erros de Chibás foi querer demonstrar a corrupção política e administrativa através daquelas provas.

A pessoa ou as pessoas que ofereceram a Chibás tais provas certamente eram de sua mais absoluta confiança. Não há outra explicação que não fosse um recrutamento para cumprir o objetivo. Os serviços especiais, a cúpula do autenticismo e talvez os próprios elementos vinculados à Máfia em Havana puseram em prática esse grande aparato propagandístico e policial. Isso corroeu em boa parte o prestígio de Chibás entre as massas.

Uma das formas mais eficientes do bombardeio contra Chibás foi não deixá-lo chegar ao auditório. Chibás cometeu, de forma geral, dois grandes erros:

  1. Mudou o método que vinha utilizando para denunciar a corrupção administrativa do autenticismo.
  2. Ofereceu provas que não tinha e que, além disso, em nenhum momento foram necessárias.

Isso permitiu que os serviços especiais levassem o projeto até o final. Nem sequer a cúpula do Partido Ortodoxo, formada por diversos interesses e contradições, foi capaz de proteger Chibás da intriga: “sua massa era revolucionária, mas lhe faltava a direção correta”.(20) Dessa forma, o líder da ortodoxia foi levado a uma atividade a portas fechadas, em um auditório que nunca esteve a seu alcance.

Os poderosos magnatas da imprensa cubana que no começo alentaram sua denúncia — revista Bohemia, consórcio dirigido pelos Goar Mestre, que então eram simpatizantes das campanhas moralizadoras —, iniciaram um rápido processo de distanciamento.

É interessante observar como, em julho de 1951, Pumarejo, uma pessoa vinculada aos interesses da Máfia e que ganharia fama na televisão por causa de sua filosofia sobre os jogos de azar, fez uma transferência da emissora nacional Union Radio y Union Radio Televisión, destinada a tirar os ortodoxos daquele poderoso meio de difusão que estavam utilizando. Naquela época, comentou-se vivamente que se tratava de uma manobra dos Prío, coisa que não era certa (pelo menos inteiramente), pois, por detrás dessa operação, encontrava-se a família Barletta, que, para a questão das cadeias nacionais de Union Radio y Televisión, usou como cobertura, entre outras, a empresa Humara y Lastra.

Pardo Liada vinha atuando como diretor do programa popular La Palabra e nem esperou ser despedido: cobrou 4 mil pesos por dois meses de salário e imediatamente desistiu do programa. Foi um dos primeiros a anunciar que a questão da Union Radio era manipulada pelos Prío. Naqueles dias, Pardo Liada achava-se muito intranquilo, visivelmente nervoso, até o dia em que Chibás decidiu suicidar-se.

Contra Chibás foram utilizados todos os métodos, inclusive o mecanismo vulgar da burla. Foi iniciada uma grande campanha para ridicularizá-lo, através do humorismo escrito, de chistes, alusões e ironias; enquanto isso, incitavam-no febrilmente para que mostrasse as provas, que não existiam na realidade. Chibás foi levado a sustentar uma mentira naquele mar de roubos, fraudes e malversações que se tornaram o primeiro e o segundo mandato dos autênticos.

Foi então que Chibás anunciou que, em seu próximo programa de rádio (já não tinha acesso à televisão), apresentaria as tão esperadas provas; porém, quando falou em 29 de julho, todo o seu discurso foi uma clara evidência de que já tinha a certeza de que fora vítima de um engano.

Nessa penúltima apresentação, ele não insiste na mansão da Guatemala, mas ataca a cúpula em toda a sua corrompida atuação e denuncia o verdadeiro negócio de Aureliano com os Prío na Guatemala: a exploração de um gigantesco consórcio de madeira.

Todavia, já era tarde demais. A opinião pública fora de tal formacondicionada naquelas três semanas que não lhe interessavam maisas verdades que Chibás pudesse dizer. Só queria as provas damansão na Guatemala. Vejamos como a revista Bohemia enfocou esse assunto:

Na verdade, o discurso dominical de ERCH estava longe de ser o que o povo inteiro aguardava com ansiedade. A população, depois de uma hora de exposição, estava frustrada. Até o tom de voz de Chibás era diferente naquela noite. Logicamente o sentimento haveria de ser-lhe adverso naquela oportunidade.(21)

Chibás estava sozinho, encurralado, ameaçado inclusive de ser expulso do Congresso como difamador. Estavam preparando para ele uma acusação por atentar contra a estabilidade das instituições nacionais, para retirar-lhe a imunidade parlamentar. Em poucos dias, havia perdido a sua antiga credibilidade e, em um gesto de derradeira honradez, optou pela morte, não sem antes protagonizar um dramático chamado ao povo cubano.

Depoisde sua morte, em um artigo intitulado “Tem de cumprir seu destino histórico”, um jornalista da época atreveu-se a escrever demaneira memorável:

Os adversários de Chibás compreenderam, como ocorre nos filmes de gangsteres, que era preciso calar o juiz, já que não se podia comprá-lo por seus compromissos políticos. Tinham de apelar para meios indiretos.(22)

O presidente Carlos Prío havia definido muito antes as consequências desse ato, com o recado que, através de seu vice-presidente Guillermo Alonso Pujol, havia enviado ao general Batista:

Nenhuma pessoa amiga minha pode cometer o ato de atentar contra a vida de Batista. Quem estivesse envolvido nesses planos deixaria imediatamente de ser meu amigo e sobre ele cairia o peso da lei. É claro que um ataque à vida de Batista tornaria Chibás presidente, como um atentado a Chibás tornaria Batista presidente.(23)


Notas de rodapé:

(1) Castro, Fidel. Jornal Alerta. “El Informe de Fidel Castro al Tribunal de Cuentas”. Havana, 4 de março de 1952, pp. 1 e 7. (retornar ao texto)

(2) Cuervo Navarro, Pelayo. “Historiando fraudes”. Revista Bohemia. Havana, 7 de novembro de 1946. (retornar ao texto)

(3) Ibid. (retornar ao texto)

(4) Vignier, E. Alonso, G. La corrupción política y administrativa en Cuba: (1944- 1952). Editorial de Ciências Sociales. Havana, 1973. (retornar ao texto)

(5) Pino-Santos, Oscar. Cuba, historia y economia. Editorial de Ciências Sociales. Havana, 1983, pp. 542-549. (retornar ao texto)

(6) Comissão do Senado norte-americano presidida pelo senador democrata do Estado de Tennesee, Estes Kefauver, que investigou o crime organizado nos Estados Unidos entre 1950-1951. (retornar ao texto)

(7) Sondem, Frederic Jr. Brotherhood of evil: the mafia (La Mafia). Editorial Brugueras, S. A. Barcelona, 1960, p. 191. (retornar ao texto)

(8) Do livro Crimen en América, de Estes Kefauver, escrito depois que terminou seu trabalho à frente do comitê que leva seu nome. “Por alguma razão ignorada (diz Frederic Sondern Jr., na página 192 de La Mafia, referindo-se ao livro de Kefauver) não recebeu a atenção que merecia (. . . )” (retornar ao texto)

(9) Sondern, Frederic, Jr. Ob. cit. p. 194. (retornar ao texto)

(10) Ibid., p. 191. (retornar ao texto)

(11) Ibid., p. 120. (nota não localizada no original usado para a transcrição)

(12) Ferrara, Orestes. Revista Bohemia. “Carta a Guillermo Alonso Pujol”. Havana, 14 de janeiro de 1951, p. 63. (retornar ao texto)

(13) Gosh, Martín A. Hammer Richard. El último testamento de Lucky Luciano, EdicionesGrijalbo, S. A. Barcelona, 1975, pp. 399-400. (retornar ao texto)

(14) No artigo “Ante la Historia”, de Guillermo Alonso Pujol, escrito depois do golpe de Estado de 1952 e publicado pela revista Bohemia, de 5 de outubro de 1952, nas páginas 60-63, à margem das manipulações que trata de realizar o autor sobre aqueles acontecimentos, torna-se evidente que as relações e contatos do vice-presidente de Prío com Batista eram de extrema confiança e estavam amparados por uma velha e profunda amizade. (retornar ao texto)

(15) Revista Bohemia. Seção “Em Cuba”. Havana, 22 de julho de 1951, p. 72. (retornar ao texto)

(16) Revista Bohemia. Seção “Em Cuba”. Havana, 29 de julho de 1951, p. 67. (retornar ao texto)

(17) Ibid. (retornar ao texto)

(18) Ibid. (retornar ao texto)

(19) Revista Bohemia. “La violenta polêmica Chibás-Sánchez Arango”. Havana, 29 dejulho de 1951, p. 76. (retornar ao texto)

(20) Castro, Fidel. Informe del Comitê Central del PCC al Primer Congreso del Partido. Havana, 1975, p. 21. (retornar ao texto)

(21) Revista Bohemia. Seção “Em Cuba”. Havana, 5 de agosto de 1951, p. 75. (retornar ao texto)

(22) Revista Bohemia. “Tiene que cumplir su destino histórico”. Havana, 12 de agostode 1951. (retornar ao texto)

(23) Revista Bohemia. “Ante la historia”, de Guillermo Alonso Pujol. Havana, 5 de outubro de 1951, p. 60. (retornar ao texto)

Inclusão: 25/10/2023