Sobre o texto de Lenin, “Esquerdismo: doença infantil do comunismo”, a condenação dos futuros renegados

Il Programma Comunista


I. O cenário do drama histórico de 1920


Em uma celebração de Lenin na Casa del Popolo em Roma, por iniciativa da esquerda comunista italiana logo após sua morte (veja também a tradução em francês, mais bela que no original, publicada na Programme Communiste, nossa revista teórica internacional, n° 12, julho-setembro de 1960), o conferencista, fazendo justiça ao alegado “oportunismo tático de Lenin”, citou um trecho inicial do clássico O Estado e a revolução, dizendo o seguinte:

Lenin diz que a falsificação dos grandes pioneiros revolucionários é inevitável, como ocorreu com Marx e seus melhores seguidores. Escapará o próprio Lenin desse destino? Certamente não!

O balanço dos trinta e seis anos que se passaram dessa previsão óbvia, acompanhado passo a passo pela crítica desapiedada da esquerda, demonstra que o volume de merdas falsificadas que o oportunismo tentou imputar sobre a figura de Lenin é pelo menos dez vezes mais nojento que o despejado em cima de Marx.

Os falsificadores seguem sempre os mesmos meios covardes: constroem uma lenda no lugar da realidade histórica em que se formaram o método e o programa daqueles grandes comunistas, recortam citações isoladas, forjadas e apartadas das condições de luta efetivas que deram origem a esses textos clássicos e, por fim, invertem descaradamente seu sentido, especulando sobre as duras condições de luta da classe revolucionária que, na maioria dos casos, também devido a sua pobreza, deve se contentar com um arsenal de armas teóricas fornecido por ferros-velhos de terceira ou quarta mão.

Mas um trabalho marxista, como é feito em nossas nossas fileiras, sem diletantismos vazios e vaidosos, sem nenhum oportunismo desprezível e facilmente corruptível, possibilita demonstrar que cada página e cada frase do “Esquerdismo” açoita, como um chicote implacável, a cara de pau dos traidores e renegados.

Por isso, é necessário esquecer a retórica e a demagogia, para retornar à história concreta dos fatos. Somente nesta — e não na crônica baixa e fofoqueira dos eventos contemporâneos — é que se lê o traço único e luminoso da doutrina e da atuação revolucionária que, há um século, os coboldos(1) tentam confrontar.

Primavera de 1920

Havia apenas quatro anos desde o regresso de Lenin à Rússia, em outubro de 1917, e há apenas um ano (em março de 1919), enquanto o oportunismo vergonhoso da Segunda Internacional naufragava na guerra, a Terceira Internacional foi fundada.

Em torno do Partido Bolchevique chegavam, de todas as partes do mundo, maldições e aplausos, invectivas ferozes e adesões ardentes. Na época a que nos referimos, o primeiro compromisso do partido russo ainda não deixava de ser com a guerra em curso, a guerra civil contra os brancos, Denikin, Kolchak, Yudenich, Wrangel e as mil avalanches assentadas nos planos de ataque alemão, inglês, francês e japonês. Tal período, que cobrimos a fundo em extensos trabalhos sobre os rumos da revolução russa, teve na linha de frente essa luta não apenas política, mas também abertamente militar: tudo tinha de estar subordinado à vitória.

Se Lenin fosse aquele oportunista em que tentam transformá-lo há quarenta anos, não teria hesitado um minuto antes de escolher entre as adesões e as declarações de guerra. Em um mundo de inimigos ferozes, todos os amigos teriam sido aceitos sem quaisquer ressalvas, tal era a urgência de se encontrar apoio internacional onde todas as burguesias centuplicavam seus esforços ferozes, embestiadas com o terror da ditadura vermelha.

Em vez disso, Lenin escreve esse texto em preparação ao II Congresso, convocado para junho de 1920. Ele conhece as lições da história — como esse texto demonstra em primeira mão –, que a vitória na Rússia veio porque o partido foi, em sua formação e preparação, implacável e contundente no reconhecimento de inimigos e aliados. Sua preocupação central é que o partido revolucionário mundial não seja formado sem uma base rigorosa de doutrina programática e organizativa, mesmo a custo de ter de rejeitar muitos e muitos adeptos de fora da Rússia.

Daquela operação seletiva, dá-se a versão banal que toma de empréstimo os costumes da política burguesa parlamentar. Já estava claro que existia um perigo da “direita”, já que elementos situados entre a II e III Internacionais gostariam de penetrar na nova para turvá-la: o centrismo, o kautskismo; contra os quais Lenin já havia ferozmente martelado. Mas havia outros adeptos a serem reexaminados com atenção: eram aqueles que vinham, no jargão político, da “esquerda”. Tratava-se de anarquistas, libertários e sindicalistas considerados revolucionários da escola de Sorel.

Todos esses elementos aderiram aos eventos na Rússia por força de sua aceitação da violência armada na luta de classes. Porém, Lenin sabia muito bem que o entusiasmo de muitos idiotas (em sua maioria indivíduos requintados e covardes) com o espetáculo de uma porradaria ou de um tiroteio não tinha nada a ver com a posição revolucionária. Ele sabia que esses elementos, muito erroneamente tratados como de esquerda, eram muitas vezes de origem proletária e sinceros em seus erros, mas sabia igualmente bem que não se tratava de absolvê-los moralmente, mas de organizar a força revolucionária, e apenas em relação a esses desviados usava termos menos candentes do que aqueles dados aos oportunistas de direita (embora em ambas as linhas houvesse operários enganados e intelectualoides que aspiravam à liderança).

O perigo central contido nesse falsíssimo esquerdismo consiste na recusa dos ensinamentos fundamentais da revolução russa sobre o Estado e o partido como meios essenciais da revolução, ao longo de toda uma fase histórica. Na doutrina e na organização, os anarquistas foram julgados na polêmica de Marx e Engels na I Internacional. Na Rússia, segundo Lenin, eles demonstraram estar na direção errada quando eram predominantes, nos anos 1870–1880, “revelando a incompetência do anarquismo como teoria revolucionária”. Quanto aos sindicalistas sorelianos, Lenin os conhecia menos, pois eram próprios dos países latinos, em que a crítica de sua doutrina vinha principalmente dos marxistas de direita, quase ao final da guerra (não de nós, na Itália; aliás, nota-se que os socialistas reformistas, os sindicalistas sorelianos e inclusive os anarquistas caíram no social-chauvinismo, em França e Itália).

Porém, Lenin viu a escola incorreta avançando em uma ala dita de esquerda, entre os comunistas alemães do Partido Espartaquista, que se dividiu no KPD (Partido Comunista da Alemanha) e no KAPD (Partido Comunista Operário da Alemanha) e nos grupos holandeses da Tribuna de Gorter e Pannekoek.

Por que essa corrente, apesar de sua declarada simpatia pela Revolução de Outubro, preocupa Lenin? Justamente porque Lenin não era um oportunista, mas um defensor do rigor teórico.

Lenin quase desculpa os falsos esquerdistas da Rússia e da França porque nunca seguiram uma linha da tradição marxista. Com sua percepção genial, ele se preocupa bastante com aqueles que até agora se dizem marxistas, como nós fazemos hoje com aqueles que se dizem… leninistas. Lenin cita esta pérola de um artigo de Karl Erler, com o título edificante de “Dissolução do partido”:

a classe operária não pode demolir o Estado burguês sem aniquilar a democracia burguesa, e não pode aniquilar a democracia burguesa sem destruir os partidos.

Aqui, Lenin não pôde deixar de explodir:

as mentes mais confusas entre os sindicalistas e anarquistas podem ficar satisfeitas: alemães sólidos, que se consideram solidamente marxistas, chegam a falar baboseiras incríveis!

Ponto central: a ditadura do partido

A Internacional Comunista não poderia definir-se apenas reunindo esses socialistas que reivindicam a violência armada como meio da luta de classes proletária. A distinção teria sido insuficiente. Agora, Lenin suspeita com razão de todos esses grupos, mas não tanto quanto dos direitistas, como diz em certo momento:

até mesmo no IX Congresso de nosso partido russo (em abril de 1920) havia uma pequena oposição, que falou contra a “ditadura dos líderes”, contra a “oligarquia”, etc. Portanto, na “doença infantil” do “comunismo de esquerda” entre os alemães, não há nada de estranho, nada de novo, nada terrível. É uma doença que passa sem perigo e, depois dela, esse organismo torna-se ainda mais forte.

Eis a ideia de Lenin em relação à famosa doença infantil. Mas ele sabia bem qual era o outro perigo que vinha dos centristas e da famosa “direita”. Era a “doença senil” do comunismo, que conduziu o organismo revolucionário à morte hodierna, com efeito muito mais deletério do que a ruinosa crise da II Internacional.

Na onda de comentários que a Revolução Russa trouxe consigo, a maior parte de nossos críticos e detratores, sem ter compreendido nada da grandiosa teoria de Marx e Lenin sobre a ditadura do proletariado, com um coro que ia dos burgueses de direita aos democratas e anarquistas, passou a provocar contra os “ditadores”, ou o ditador Lenin.

Os liberais esqueceram-se da figura colossal de seus ditadores, de Cromwell a Robespierre e Garibaldi; entre os libertários, havia aqueles que, mencionados na referida comemoração, simplesmente escreveram: luto ou festa? As esquerdas da Holanda, Alemanha e de outros países hesitavam quanto à “ditadura”, e Lenin mostrou justamente que o faziam porque estavam imbuídas de uma mentalidade democrática e pequeno-burguesa, que não era diferente daquela que escandalizou os centristas kautskistas e todos os imbecis que desde então vêm gritando: socialismo não é nada além de democracia, de liberdade para todos! E são as mesmas figuras imundas que hoje falam em nome de Lenin.

Porque é justamente nessas páginas, que teriam sido escritas contra nós, os verdadeiros marxistas de esquerda, que Lenin dispara todas as hesitações e todas as distinções de princípio entre a ditadura do proletariado, a ditadura do partido e até mesmo a ditadura de dadas pessoas.

Na verdade, em seu 5º parágrafo, intitulado “O comunismo na Alemanha: os líderes, o partido, a classe, as massas”, Lenin cita amplamente um panfleto dos comunistas alemães de esquerda, que levanta a alternativa oca: por princípio, deve-se aspirar à ditadura do partido comunista, ou àquela da classe proletária? E que, um pouco mais adiante, contrapõe duas soluções: o partido dos líderes, que atua de cima, e o partido das massas, que aguarda a ascensão da luta de baixo.

A crítica desenvolvida por Lenin nessa questão reduz-se a determinar que, caso se renuncie ao “domínio do partido” que escandalizava esses comunistas, renuncia-se à ditadura do proletariado e à revolução, e se o desejo é que o partido não atue por meio dos “líderes”, simplesmente por medo dessa palavra, recai-se na mesma impotência. Nosso partido é diferente de todos os partidos, nossa engrenagem de homens revolucionários é diferente de todas as engrenagens bajuladoras e publicitárias dos outros movimentos. E Lenin reconectará isso à necessidade vital da organização “ilegal”.

Em sua formidável habilidade de clareza, Lenin não dará aqui definições filosóficas de “categorias” tais como massas, classe, partido e líderes. O tempo urgia e a sistematização veio por outra via. Mas o texto de Lenin retira do caminho toda hesitação sobre a necessidade de que a ditadura seja do partido, e em determinados casos extremos, de certos homens do partido; e isso aterroriza desde então todos os bem-pensantes, todavia sempre dispostos a se prostrar para cúpulas de quatro duques; ou, como costumamos dizer, de quatro marionetes(2).

Nada a ver com mandatos eleitorais e consultas internas!

O simples fato de expor o dilema “ditadura do partido ou ditadura da classe?”, “ditadura (partido) dos líderes ou ditadura (partido) das massas?” atesta uma confusão de ideias incrível e irremediável… Todos sabemos que as massas estão divididas em classes; que é possível contrapor as massas e as classes somente quando se contrapõe a imensa maioria genérica, não articulada segundo a posição na ordenação social da produção, às categorias que ocupam uma posição especial nela; que as classes normalmente são, na maior parte dos casos, pelo menos nos países civilizados modernos, dirigidas por partidos políticos, e que os partidos políticos são dirigidos, como regra geral, por grupos mais ou menos estáveis de pessoas revestidas de maior autoridade, dotadas de maior influência e esperança, são eleitas aos cargos de maior responsabilidade e são chamadas de líderes. Tudo isso é elementar, simples e claro (Ed. Mosca, 1948, p. 565) [Edição italiana].

Diagnóstico da traição dos “líderes”

Essas palavras claras evocam aquelas de Engels sobre os anarquistas espanhóis:

Uma revolução é o ato mais autoritário que pode existir.

A revolução de classe é uma guerra, uma guerra civil; são necessários um exército, um Estado-maior, um partido e, com a vitória, um Estado, um governo dos homens no poder.

O presente texto explica que a confusão de ideias surge da necessidade de agir em uma situação ilegal, gerada na Alemanha após a I Guerra, em vez da plena legalidade precedente.

Quando, por esse costume, por causa do rumo tempestuoso da revolução e do desenvolvimento da guerra civil, foi necessário passar rapidamente à alternância entre legalidade e ilegalidade, à combinação de uma e outra, aos métodos “incômodos” e “não democráticos” de seleção, formação ou conservação de “grupos dirigentes”, essas pessoas se desviaram e começaram a conceber baboseiras grosseiras (Ibid., p. 566).

Muitos bons proletários queimados pelas traições dos socialistas de 1914 passaram a desconfiar de qualquer líder, independente de quem fosse. Lenin recorda que a degeneração da liderança é algo antigo e esclarecido pelos marxistas, e não se resolve com a “contraposição dos líderes às massas”. Não se trata de líderes maus e massas boas, mas do processo degenerativo dos líderes e das massas.

Marx e Engels explicaram muitas vezes as causas profundas desse fenômeno (…) com o exemplo da Inglaterra (…) nos anos 1852–1892. A posição monopolista da Inglaterra separou das massas uma “aristocracia operária” meio pequeno-burguesa e oportunista. Os líderes dessa aristocracia operária passavam continuamente para o lado da burguesia e eram mantidos por ela, direta ou indiretamente. Marx conquistou o ódio honorário desses canalhas, rotulando-os abertamente de traidores (Ibid.)

Este fenômeno, diz Lenin, repetiu-se na II Internacional com a guerra.

Apareceu por toda parte o tipo do líder oportunista, traidor, social-chauvinista e apoiador dos interesses de sua corporação, da camada constituída pela aristocracia operária. Criou-se um distanciamento entre os partidos oportunistas e as “massas”, isto é, as camadas mais amplas de trabalhadores; em sua maioria, os operários com salários mais baixos. A vitória do proletariado revolucionário é impossível sem a luta contra esse mal, sem desmascarar, humilhar e expulsar os líderes oportunistas e social-traidores; essa é a política seguida pela Terceira Internacional (Ibid.)

Qual marxista é capaz de confundir essa posição histórica com a proposta libertária: o mal está no partido, o mal está nos famosos “líderes”?

Era uma questão de princípios e de programa, e não de tática contingente ou, pior, local, nacional, alemã. O fato histórico de que houve líderes e partidos inteiros, cada um deles referindo-se ao proletariado e também a sua doutrina revolucionária específica e clássica, que passaram ao lado do inimigo de classe, não leva a repudiar a arma do partido e a arma, caso se queira chamá-la assim, do “líder”. A doutrina marxista de fato, desde seu início, rejeitou tais objeções, desde o Manifesto, que exige a participação do proletariado no partido de classe (que, segundo os estatutos da I Internacional, “se opõe a todos os outros partidos”) até os escritos de Marx e Engels sobre a revolução e a contrarrevolução na Alemanha; e assim por diante.

Hoje podemos dizer mais. Na época de Marx e Lenin, ainda não se sabia que um “Estado” da vitória proletária, como o russo, degenerava-se ao ponto de se passar para o lado do inimigo de classe na política externa (aliança de guerra) e interna (medidas econômico-sociais capitalistas). Tal fato histórico por si só basta para demonstrar como é imbecil não enxergar que o oportunismo de hoje consumou algo vinte vezes mais infame que o de ontem, como observado por Marx e Lenin; não só desonrou tanto o partido como os homens do proletariado, como desonrou o primeiro Estado da ditadura proletária. Porém, esse fato que se exprime dizendo não só “o ser humano é corruptível, o proletariado é corruptível, socialistas e comunistas são corruptíveis e o partido é corruptível”, mas também “o próprio Estado proletário é corruptível” — como efeito de relações de forças históricas reais e não porque a carne é frágil, ou outras explicações éticas! — não nos autoriza a dizer: renunciemos ao Estado, o poder é uma porcaria e corrompe a tudo!

Essa heresia teórica era muito bem conhecida por Marx e Lenin, que a esmagaram para sempre. E Lenin localiza nos erros de princípio da esquerda alemã a mesma ideia incorreta: horror ao poder; e reitera que todos devemos saber empunhar essas armas difíceis: as pessoas, o partido e a direção do governo estatal. O problema é indicar a via histórica pela qual nossos militantes políticos, nosso partido revolucionário e nosso aparato de Estado serão completamente distintos de todos aqueles — lamentavelmente em parte proletários — que o passado produziu: e chegarão à forma original teorizada em nossa doutrina.

Lenin, que colocou este problema insuperavelmente, mas — humano e mortal como era — não previu a solução, entendeu que os esquerdistas da Alemanha, tendo aberto o flanco para dúvidas contra à forma-partido, duvidavam também da forma-Estado, e não haviam, na doutrina, compreendido a forma histórica da ditadura, enunciada sem hesitação pelo marxismo. Eles acreditavam erroneamente que o partido deveria ser rapidamente dissolvido para que não se vissem mais traidores, inclusive dissolvendo o Estado para evitar as famosas e pequeno-burguesas “seduções corruptoras pelo exercício do poder”.

A duração da ditadura

Antes de concluir esta demonstração, gostaria de salientar que o perigo contra o qual Lenin se ergueu não era um erro de tática, que discutiremos em um segundo momento, mas um erro fundamental de princípio e, portanto, um erro que não pode ser remediado apenas com medidas organizativas internas ao partido. Naquele momento histórico, estava em questão a tomada de medidas “constituintes” do novo partido comunista mundial; na maioria desses casos, o erro é evitado não se deixando seduzir pela aquisição de um fluxo de membros, mas colocando um ponto final nessa questão, sem piedade das cisões e das difamadas “excomunhões”. Será bom citar a passagem de Lenin, de incomparável vigor, da qual se deduz que a ditadura deve ser aceita não por um breve instante, mas por toda uma fase histórica longa e árdua. Essa não é uma medida “emergencial”, como diriam no jargão que é moda hoje, mas se trata da parte vital, do oxigênio que alimenta nossa teoria e nossa batalha.

Ao proclamar a inutilidade e o caráter burguês dos partidos políticos (…) vemos como sempre é possível chegar a um erro monumental, partindo de um pequeno erro, caso este seja levado até o fim.

A negação do partido e da disciplina partidária; esse é o resultado em que chegou a oposição. E isso equivale ao completo desarmamento do proletariado frente à burguesia. Isso equivale precisamente àquela dispersão, àquela inconstância e àquela incapacidade de ser firme, de ser unido e de coordenar a ação, que são próprias da pequena-burguesia e arruínam inevitavelmente todo movimento revolucionário do proletariado, caso venham a ser tratadas com indulgência.

Desse ponto em diante, a passagem é tão clássica — nisso concluiremos o presente estudo — e tão completamente coerente com a tese da esquerda italiana, que defendemos hoje, quando Lenin não está mais presente, e que defendemos quando ele estava, antes da ligação de nosso movimento na Itália com a nova Internacional e com Lenin (ligação que ocorreu precisamente naqueles meses de 1920, nos quais ele organizou pessoalmente a viagem a Moscou de um delegado da fração comunista abstencionista do partido socialista, que não estava incluído na delegação “eleita democraticamente”). A partir daqui, os destaques [em itálico e comentários entre parênteses] foram acrescentados ao texto por nós e não por Lenin:

do ponto de vista do comunismo, negar o partido significa querer saltar da véspera do colapso do capitalismo (na Alemanha) não para a fase inferior ou intermediária, mas para a fase superior do comunismo. Nós na Rússia (no terceiro ano depois da derrubada da burguesia) demos os primeiros passos rumo à passagem do capitalismo ao socialismo, ou seja, à fase inferior do comunismo. As classes continuaram a existir e existirão ainda por anos [destacado por Lenin], em todos os lugares, mesmo depois [idem] da conquista do poder pelo proletariado. É possível que esse período seja mais curto na Inglaterra, onde não há camponeses (mas, há, no entanto, pequenos produtores!). Suprimir as classes não significa apenas expulsar [ou matar, nota nossa] os proprietários fundiários e capitalistas — isso é algo que fizemos com relativa facilidade –, mas significa [é Lenin quem enfatiza isso aqui] eliminar os pequenos produtores de mercadorias, os quais não é possível expulsar, não é possível esmagar, mas é necessário chegar a um acordo; eles podem (devem) ser transformados, reeducados apenas com um trabalho de organização muito longo, muito lento e muito prudente. Eles rodeiam o proletariado por todos os lados com um clima pequeno-burguês, penetram nesse ambiente, o corrompem, impelem continuamente o proletariado a recair na falta de caráter, na dispersão, no individualismo e na alternativa do entusiasmo e do abatimento, que são próprias da pequena-burguesia. São necessárias a mais rigorosa centralização e disciplina no seio do partido político do proletariado para se contrapor a esses defeitos, para que o proletariado cumpra justamente sua função organizativa (que é sua função central) de maneira bem-sucedida, vitoriosamente. [Os últimos itálicos de Lenin querem dizer que os semiproletários podem ter auxiliado na luta civil, mas depois se desorganizaram e descentralizaram: agora, a ênfase será nossa.] A ditadura do proletariado é uma luta tenaz, sanguinária e sem sangue, violenta e pacífica, militar e econômica, pedagógica e administrativa, contra as forças e as tradições da velha sociedade. A força do hábito de milhões e dezenas de milhões de pessoas é a mais terrível das forças. Sem um partido de ferro, endurecido na luta, sem um partido que goze da confiança de tudo que há de honesto na sua classe [defendemos que na classe há, bem como nas massas, resíduos doentios, vítimas da influência contrarrevolucionária, e que, em princípio, quando não podem ser tratadas pedagogicamente, serão tratadas repressivamente sem piedade], sem um partido que saiba observar o estado de ânimo das massas e influenciá-lo [sem se submeter a ele!], é impossível conduzir com sucesso uma luta desse tipo.

Vencer a grande burguesia centralizada [leis monopolistas e fascistas] é mil vezes mais fácil que “vencer” milhões e milhões de pequenos produtores, os quais, através de sua atividade cotidiana, contínua, discreta, imperceptível e dissolvente, chegaram àqueles mesmos resultados de que a burguesia necessita e que levam à restauração [itálico em Lenin] da burguesia. Os que enfraquecem, ainda que pouco, a disciplina férrea do partido, do proletariado (sobretudo durante a ditadura do proletariado) ajudam de fato a burguesia contra o proletariado (pp. 567–568).

Com essa formulação explícita e decisiva, Lenin queria tirar do caminho outra falha dos comunistas de esquerda, que pensavam que o soviete operário fosse um substituto do partido comunista, e, portanto, sua instituição, que valia como a ditadura do proletariado, já que a burguesia não vota nos sovietes, autorizando a “dissolução do partido político”, chegando ao ponto de invocar os sovietes antes da luta revolucionária. Os esquerdistas italianos, no final de 1919, combateram decididamente essa tese antimarxista, posteriormente condenada no II Congresso, na resolução relativa aos sovietes ou conselhos de fábrica, sobre as quais convirá falar novamente.

Estratégia e tática da Internacional

Neste momento, a imprensa do oportunismo stalinista destacou que o “Esquerdismo” de Lenin marca seu 40º aniversário. Para essa gentalha, não há nada além do cerimonial e anotações de datas fixas para reverências convencionais, aniversários onomásticos e pantomimas similares. Naturalmente, no livro “Esquerdismo” estão interessados nos trechos usados cem vezes, e sempre de modo enganoso, contra a esquerda italiana, embora esta tenha sido mencionada sobretudo de forma elogiosa. Mas essa é a menor de nossas preocupações e, mesmo com Lenin, insistimos em discutir o método internacional, e não o desta pequena província italiana.

Aqui, cabe a nós determinar que Lenin tratou de questões táticas contingentes ou nacionais com o objetivo único de explicar pontos de princípio acerca da constituição e da estratégica histórica do movimento comunista revolucionário, com o olhar sempre fixo nas metas da revolução mundial e da organização do partido comunista mundial.

Mostraremos que, nessa obra vital, a esquerda italiana o apoiou e o entendeu melhor que ninguém nas questões cruciais. Porém, para a clareza de nossa exposição, que não pode ser breve, devem ser citadas as questões táticas que, na acepção mais ampla, foram imputadas aos alemães e holandeses naquela ocasião, uma vez que sempre foi cômodo identificar a posição destes com a posição dos italianos.

A oposição alemã se fundamentava em dois pontos práticos. Antes de tudo, defendia a saída dos comunistas dos sindicatos oportunistas, chamados de “reacionários”; e, nesse aspecto, nada tinha em comum com os comunistas italianos. Embora existissem, na Itália, com tendências anarquistas, os sindicatos de esquerda que o KAPD propunha fundar na Alemanha, nós na Itália nunca apoiamos o racha sindical e trabalhamos no seio da reformistíssima Confederazione Generale del Lavoro [Confederação Geral do Trabalho] para derrubar seus líderes, de acordo com a tática favorita de Lenin. Aqui, a solução tática descende diretamente dos princípios. A função revolucionária está no partido em sua forma primária, e não nos sindicatos e conselhos de fábrica. A exigência era, portanto, e Lenin obviamente aprovava, formar o novo partido comunista rachando o partido político, e não boicotando o sindicato de direita ou qualquer outro sindicato; na realidade, então, defendendo o sindicato unitário.

O segundo erro da esquerda alemã foi o boicote às eleições parlamentares. Aqui, os filisteus gritam que Lenin precisou estigmatizar alemães e italianos. Mas Lenin sabia e ensinou que a posição nos dois casos eram distintas.

Não é fácil para o tolo comum saber que uma coisa é negar a função primária do partido comunista na insurreição revolucionária e no Estado, para deixá-la aos outros órgãos proletários “imediatos” como sindicatos, conselhos e sovietes, nos quais há o imediatismo, nosso principal inimigo, e derivar dessa negação do aspecto político da luta também a negação do aspecto parlamentar; outra é contrapor, em dada passagem histórica, a política legalista à política revolucionária, questão que discutimos com Lenin sem chegar a um acordo, mas aceitando, por disciplina, sua solução.

Para nós, será fácil demonstrar, seja neste ou num estudo posterior, dedicado ao parlamentarismo, que estávamos em princípio com Lenin e a divergência era tática, embora os traidores de hoje sejam contra Lenin e contra nós, por princípio, na questão do parlamentarismo. Na verdade, no II Congresso se discutiu o melhor caminho para destruir o parlamentarismo, e Lenin defendeu com a maioria que essa destruição fosse feita a partir de dentro, e não de fora do parlamentarismo. Ingressaram nos parlamentos e estes não só continuam lá como sempre, mas os palhaços que se dizem leninistas juram de pés juntos que estão prontos a lutar para defendê-los. Seguindo-os nesta questão, as massas não são menos desviadas e vão às urnas com a fé social-democrata de que se trata de uma “via ao socialismo”

A trama da obra de Lenin

Para mostrar a diferença entre nós e aqueles que citam frases soltas, e que nisso não podem ser senão discípulos dos deformadores stalinistas, deduziremos as posições programáticas e de princípio a partir de um exame de todas partes, ordenadas, do opúsculo sobre o “Esquerdismo”.

Lembremo-nos do sumário, depois de ter fornecido outros dados históricos. Nas teses do II Congresso Sobre as principais tarefas da Internacional Comunista, o ponto 18 declara inadequadas as concessões sobre as relações entre o partido, a classe operária e as massas, de uma série de movimentos que são indicados no Partido Comunista Operário da Alemanha [KAPD], em parte do Partido Comunista Suíço(3) [PCS], na revista húngara Kommunismus (cuja bela luta pela revolução russa não escondia erros doutrinários num sentido idealista], na Workers’ Socialist Federation [Federação Socialista dos Trabalhadores) inglesa, na estadunidense IWW (Trabalhadores Industriais do Mundo), na escocesa Shop Stewards (comitês de fábrica). É verdade que aqui também o boicote sindical e parlamentar são condenados, mas, em efeito, trata-se de uma tomada de posição dos marxistas ortodoxos que ainda combatemos hoje, mesmo em grupos antistalinistas, sob o nome de “imediatismo”.

Outro destaque. Em uma reunião pré-congresso em Leningrado, discutiu-se se esse movimento poderia ser aceito no congresso como seção e não apenas como meros ouvintes. Para surpresa até mesmo dos russos, os delegados da esquerda italiana propuseram sua exclusão com o argumento de que se tratava do congresso da Internacional dos partidos políticos, e apenas partidos comunistas poderiam aderir. Isso foi, depois, esclarecido nas “condições de admissão”, os célebres 21 pontos.

Queremos, portanto, fazer uso do “Esquerdismo” de Lenin? Pois bem. A questão é lê-lo e saber lê-lo. Determinamos o quadro histórico. O sumário é o seguinte:

  1. Em que sentido é possível falar da importância internacional da revolução russa?
  2. Uma das principais condições do sucesso dos bolcheviques.
  3. A principal etapa da história do bolchevismo.
  4. O bolchevismo cresceu, se reforçou e endureceu lutando contra os inimigos no seio do movimento operário.
  5. O comunismo “de esquerda” na Alemanha. Os líderes, o partido, a classe e as massas.
  6. Os revolucionários devem trabalhar em sindicatos reacionários?
  7. Deve-se participar nos parlamentos burgueses?
  8. “Nenhum meio-termo”?
  9. O comunismo “de esquerda” na Inglaterra.
  10. Algumas conclusões.
  1. O racha dos comunistas alemães.
  2. Os comunistas e os “independentes” na Alemanha.
  3. Turati e companhia na Itália.
  4. Falsas conclusões a partir de premissas corretas.

Como dissemos, lembramos o momento histórico em que Lenin foi levado a escrever esse texto, importantíssimo por suas teses, válidas em todas as épocas, e que hoje os proclamados leninistas oficiais ultrajam a toda hora. Depois, nos detivemos sobre o tema do parágrafo 5 para demonstrar qual era a principal preocupação de Lenin: o perigo da desvalorização da função primária do partido e o medo da ditadura do partido. Uma condenação verdadeiramente clássica do abusado antipoliticismo imediatista e obreirista é sempre rompida pelo marxismo clássico.

Lidaremos com todos os outros pontos abaixo. Acerca da questão do parlamentarismo, sublinharemos que a linha de Lenin prevê boicote e participação; lembremo-nos da história do partido italiano e da fase ridícula da saída, junto com o burguês Aventino, desejada pelos centristas, ao passo que a esquerda, que não dirigia mais o partido, impôs o retorno.

Citaremos uma passagem na qual Lenin demonstra que talvez os abstencionistas tivessem agido bem ao rachar em Bolonha, em outubro de 1919, com a grande maioria que, querendo eleições, os queria junto de Turati.

Quanto à teoria do comprometimento, lembremo-nos de que se trata da recusa ao acordo de Brest-Litovski em 1918, enquanto a esquerda italiana, sem nenhuma ligação, adotou para si própria a tese de Lenin da assinatura do tratado com os bandidos alemães, e não aquela da guerra revolucionária até o extermínio*.

Sobre a questão dos sindicatos e conselhos de fábrica, será fácil demonstrar que, àquela altura e depois, a tese combatida pela II Internacional foi justamente aquela dos ordinovistas gramscianos, que sempre suspeitaram da ortodoxia.

Reconhecemos que este modo de ler Lenin ou Marx é trabalhoso. Porém, é o único que se defende da crescente ruína oportunista.

Quem quiser se tornar efêmero e se apaziguar em lugares-comuns e frases sutilmente isoladas, pode se acomodar nessa estrumeira.