Uma Oposição Pequeno-Burguesa no Socialist Workers Party

Leon Trotsky

15 de Dezembro de 1939

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Primeira Edição: Leon Trotsky, In Defense of Marxism, New York 1942.
Fonte: "Em Defesa do Marxismo", publicação da Editora "Proposta Editorial"
Direitos de Reprodução: © Editora Proposta Editorial. Agradeçemos a Valfrido Lima pela autorização concedida.


É preciso chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Agora que a posição de ambas as frações em luta se delineiam com perfeita clareza, deve-se dizer que a minoria do Comitê Nacional encabeça uma típica tendência pequeno-burguesa. Como qualquer grupo pequeno-burguês dentro do movimento socialista, a oposição atual se caracteriza assim: atitude desdenhosa frente à teoria e uma inclinação ao ecletismo; desrespeito pela tradição de sua própria organização; ansiedade por uma “independência” pessoal às expensas da ansiedade pela verdade objetiva, nervosismo ao invés de consistência; disposição para saltar de uma posição a outra; falta de compreensão do centralismo revolucionário e hostilidade frente a ele; e finalmente, inclinação a substituir a disciplina do partido por vínculos pessoais e laços de camarilha. Naturalmente que nem todos os membros da oposição manifestam essas características com a mesma força. No entanto, como sempre ocorre em um bloco de cores mal pintadas, o tom é dado por aqueles que estão mais à distância do marxismo e da política proletária. Obviamente abre-se à nossa frente uma luta séria e prolongada. Neste artigo, não me proponho esgotar o problema, mas tentarei esboçar suas características gerais.

Ceticismo e ecletismo teóricos

Em New International, de janeiro de 1939, os camaradas Burnham e Shachtman publicaram um longo artigo, "Intelectuais em retirada". O artigo, ainda que contivesse muitas idéias corretas e hábeis caracterizações políticas, estava inutilizado por um defeito fundamental que o viciava, senão o invalidava. Enquanto se polemizava contra rivais que se considerava — sem razão suficiente — acima de tudo, como proponentes de uma "teoria", o artigo deliberadamente não elevava o problema a um nível teórico. Era absolutamente necessário explicar porque os intelectuais "radicais” norte-americanos aceitavam o marxismo sem a dialética (uma campainha sem som). O segredo é simples. Em nenhum outro país houve uma recusa tão grande da luta de classes como na terra da "oportunidade ilimitada". A negação das contradições como força motriz do desenvolvimento, conduz à negação da dialética como a lógica das contradições no domínio do pensamento teórico. Assim como na esfera da política, se acreditava possível convencer todos sobre a correção de um programa "justo" através de inteligentes silogismos, e de que a sociedade poderia ser reconstruída com medidas "racionais", assim também na esfera da teoria se aceitava, como demonstrado, que a lógica aristotélica, rebaixada ao nível do "senso comum", seria suficiente para solucionar todas as questões.

O pragmatismo, mescla de racionalismo e empirismo, se transformou na filosofia nacional dos Estados Unidos. A metodologia teórica de Max Eastman não é fundamentalmente diferente da metodologia de Henry Ford — ambos consideram a sociedade viva desde o ponto de vista de um "engenheiro" (Eastman, platonicamente). Historicamente, a atual atitude desdenhosa frente à dialética se explica simplesmente pelo fato de que os avós e bisavós de Max Eastman e outros, não necessitaram da dialética pata conquistar territórios e se enriquecerem. Porém, os tempos mudaram e a filosofia do pragmatismo entrou em um período de falência igual ao do capitalismo norte-americano.

Os autores do artigo não mostraram, não puderam ou não souberam mostrar esta conexão interna entre filosofia e desenvolvimento material da sociedade, e explicaremos claramente porquê.

"Os dois autores do presente artigo", escreviam sobre si mesmos, "diferem completamente em sua análise sobre a teoria geral do materialismo dialético; um deles a aceita e o outro a nega... Não existe nada anômalo em tal situação. Ainda que, sem dúvida, a teoria está sempre ligada de uma ou outra forma à prática, a relação não é invariavelmente direta ou imediata; e como tivemos oportunidade de destacar antes, os seres humanos atuam muitas vezes inconsistentemente. Desde o ponto de vista de cada um dos autores, existe no outro, certa inconsistência entre "teoria filosófica" e prática política, que pode conduzir, em algumas ocasiões, a desacordos políticos concretos e decisivos. Porém, isso não acontece agora, nem ninguém ainda demonstrou que o acordo ou desacordo sobre as doutrinas mais abstratas do materialismo dialético afeta necessariamente as tarefas políticas concretas de hoje ou de manhã - e os partidos políticos, os programas, e as lutas se baseiam em tais tarefas concretas. Todos nós podemos esperar que enquanto marchamos juntos, ou que quando haja mais tempo, também nos poremos de acordo sobre as questões mais abstratas. Entretanto, aí estão o fascismo, a guerra e o desemprego".

Qual é o significado deste raciocínio completamente assombroso? Visto que, algumas pessoas, através de um método incorreto, chegam algumas vezes a conclusões corretas, e como se pelo fato de que algumas pessoas, mediante um método correto, não com pouca freqüência, chegam a conclusões incorretas, portanto... o método não tem grande importância. Meditaremos sobre o método alguma hora que tenhamos mais tempo, mas agora temos outras coisas para fazer. Imaginemos como raciocinaria um operário que, indo se queixar ao capataz de que suas ferramentas estão em mal-estado, recebesse esta resposta: com más ferramentas é possível realizar um bom trabalho, e com boas ferramentas, muita gente só desperdiça material. Temo que tal operário, se trabalha por empreitada, responderia ao capataz com uma frase nada acadêmica.

Um operário vê as ferramentas como materiais refratários que opõem resistência, o que o obriga a apreciar as boas ferramentas; ao passo que um intelectual pequeno-burguês — Ah! — utiliza como suas "ferramentas" observações fugitivas e generalizações superficiais... até que os grandes acontecimentos caiam sobre sua cabeça.

Exigir que todo membro do partido esteja familiarizado com a filosofia da dialética, seria, naturalmente, inerte pedantismo. Porém um operário que tenha passado pela escola da luta de classes, obtém a partir de sua própria experiência uma inclinação para o pensamento dialético. Ainda que não conheça esta palavra, está pronto a aceitar o próprio método e suas conclusões. Com um pequeno-burguês é pior. Naturalmente, existem elementos pequeno-burgueses ligados organicamente aos operários, que passam para o ponto de vista proletário sem uma revolução interior. Porém, constituem uma insignificante minoria. A coisa é muito diferente com a pequena-burguesia educada academicamente. Seus preconceitos teóricos já tomaram uma forma acabada, desde os bancos da escola. Por conseguirem aprender uma grande quantidade de conhecimentos, tanto úteis como inúteis, sem ajuda da dialética, acreditam que podem continuar, sem problemas, a viver sem ela. Na verdade, prescindem da dialética somente à medida que não conseguem afiar, polir ou agudizar teoricamente seus instrumentos de pensamento, e na medida em que não conseguem romper com o estreito círculo de suas relações diárias. Quando se vêm confrontados com grandes acontecimentos, perdem-se facilmente e reincidem em seus hábitos pequeno-burgueses de pensamento.

Apelar à "inconsistência" como justificativa para um bloco teórico sem princípios, equivale a alguém que se apresenta como marxista, mas com más credenciais. A inconsistência não é acidental, e em política não aparece somente como sintoma individual. Normalmente, a inconsistência desempenha uma função social. Existem grupos sociais que não podem ser consistentes. Os elementos pequeno-burgueses que não se liberaram das morosas tendências pequeno-burguesas dentro de um partido operário, vêem-se, sistematicamente, fazendo compromissos teóricos com sua própria consciência.

A atitude do camarada Shachtman frente ao método dialético, tal como se expressa no argumento acima citado, não pode ser chamado de outra coisa que não seja ceticismo eclético. É evidente que Shachtman deixou-se contagiar por esta atitude, não na escola de Marx, mas entre os intelectuais pequeno-burgueses, nos quais são próprias todas as formas de ceticismo.

Advertência e verificação

O artigo me surpreendeu, de tal forma que imediatamente escrevi ao camarada Shachtman: "Acabo de ler o artigo que você e Burnham escreveram a respeito dos intelectuais. Muitas partes são excelentes. No entanto, o parágrafo sobre dialética é o mais duro golpe que você, pessoalmente, como editor de New lnternational, poderia ter assentado à teoria marxista. O camarada Burnham diz: "Eu não reconheço a dialética". Isto está claro, e todos temos que admiti-lo. Porém, você diz: "Eu reconheço a dialética, mas não importa; não tem a menor importância". Releia o que você escreveu. Este parágrafo desorienta terrivelmente os leitores de New lnternational e é o melhor dos presentes aos Eastman de todo tipo. Muito bem! Falaremos sobre isso publicamente."

Minha carta foi escrita no dia 20 de janeiro, alguns meses antes da presente discussão. Shachtman não a respondeu até o dia 5 de março, quando de fato replicou, dizendo que não podia entender porque eu estava fazendo tanto barulho sobre o assunto. No dia 9 de março, respondi a Shachtman, com as seguintes palavras: "não fiz a mínima recusa sobre a possibilidade de colaboração com os anti-dialéticos, mas unicamente sobre a conveniência de se escrever um artigo conjunto onde a questão da dialética desempenha, ou pode desempenhar, um papel muito importante. A polêmica se desenvolve em dois planos: político e teórico. Sua crítica política está boa. Sua crítica teórica é insuficiente; se detém exatamente no ponto onde deveria se tornar mais agressiva. Em uma palavra, a tarefa consiste em demonstrar que seus erros (na medida em que são erros teóricos) são produto de sua incapacidade e recusa para pensar as coisas dialeticamente. Tal tarefa poderia ter sido realizada com um sério sucesso pedagógico. Ao invés disso, você declara que a dialética é uma questão privada, e que se pode ser um bom companheiro sem um pensamento dialético". Shachtman, ao se aliar nesta questão com o anti-dialético Burnham, privou-se da possibilidade de demonstrar porque Eastman, Hook e muitos outros iniciaram uma luta filosófica contra a dialética, mas terminaram com uma luta política contra a revolução socialista. Sem dúvida, esta é a essência da questão.

A atual discussão política no partido confirmou minhas apreensões e minha advertência, de forma incomparavelmente mais aguda do que poderia esperar, ou mais corretamente, do que poderia temer. O ceticismo metodológico de Shachtman deu seus frutos deploráveis na questão da natureza do Estado soviético. Já há algum tempo, Burnham começou a construir, de forma totalmente empírica, baseado em suas impressões imediatas, um Estado não-proletário e não-burguês, liquidando de uma só vez a teoria marxista do Estado como órgão de dominação de classe. Inesperadamente, Shachtman adotou uma posição evasiva: "Como vê, a questão está submetida a um exame posterior", além disso, a definição sociológica da URSS não possui nenhum significado direto e imediato sobre nossas "tarefas políticas", nas quais Shachtman está completamente de acordo com Burnham. Façamos uma nova alusão ao que estes camaradas escreveram sobre a dialética. Burnham rechaça a dialética. Shachtman parece aceita-la, mas...o dom divino da "inconsistência" 'permite que eles estejam de acordo nas conclusões políticas. A atitude de cada um deles frente à natureza do Estado soviético, reproduz, ponto por ponto, sua atitude frente à dialética.

Em ambos os casos, Burnham assume o papel dirigente. Tal coisa não é surpreendente: ele possui um método: o pragmatismo. Shachtman não tem método algum. Adapta-se a Burnham. Sem assumir uma completa responsabilidade pelas concepções antimarxistas de Burnham, defende seu bloco da agressão contra as concepções marxistas, com Burnham tanto na esfera da filosofia como na da sociologia. Em ambos os casos, Burnham aparece como um pragmatista e Shachtman como um eclético. Este exemplo tem a vantagem incalculável de que o paralelismo completo entre as posições de Burnham e de Shachtman em dois planos distintos de pensamento, e sobre duas questões de importância fundamental, saltará ainda mais aos olhos de camaradas que não tiveram nenhuma experiência em raciocínios puramente teóricos. O método de pensamento pode ser dialético ou vulgar, consciente ou inconsciente, mas existe e se faz reconhecer.

Em janeiro passado, ouvíamos de nossos autores: "Porém, agora não acontece, e nada ainda demonstrou, que o acordo ou desacordo sobre as doutrinas mais abstratas do materialismo dialético afete necessariamente as tarefas políticas concretas de hoje ou amanhã..." Nada ainda demonstrou! Passaram-se poucos meses antes que os próprios Burnham e Shachtman demonstrassem que sua atitude frente a uma "abstração" como o materialismo dialético, encontraria sua manifestação precisa em sua atitude frente ao Estado soviético.

Sem dúvidas, é necessário mencionar que a diferença entre os dois é mais do que importante, mas é de caráter político, e não teórico. Em ambos os casos, Burnham e Shachtman formaram um bloco sobre a base do rechaço e semi-rechaço à dialética. Porém, no primeiro caso, este bloco estava dirigido contra os adversários do partido proletário. No segundo caso, o bloco foi conformado contra a ala marxista de seu próprio partido. A frente de operações militares, por assim dizer, foi modificada, mas as armas continuam sendo as mesmas.

Não restam dúvidas de que a gente, muitas vezes, é inconsistente.

A consciência humana, no entanto, tende para uma certa homogeneidade. A filosofia e a lógica são obrigadas a confiar nesta homogeneidade da consciência humana, e não no que carece de homogeneidade, ou seja, na inconsistência. Burnham não reconheceu a dialética, mas a dialética reconhece Burnham, ou seja, estende seu domínio sobre ele. Shachtman acredita que a dialética não tem nenhuma importância nas conclusões políticas, porém, nas conclusões políticas do próprio Shachtman vemos os frutos deploráveis de sua atitude desdenhosa frente â dialética. Deveríamos incluir este exemplo nos livros de texto sobre materialismo dialético.

No ano passado, recebi a visita de um jovem professor inglês, de economia política, simpatizante da Quarta Internacional. Durante nossa conversa sobre as formas e meios para realizar o socialismo, expressou, repentinamente, as tendências do utilitarismo inglês, no espírito de Keynes e outros: "É necessário fixar um claro objetivo econômico, eleger os meios mais racionais para a sua realização" etc. Eu assinalei: "Vejo que você é um adversário da dialética". Respondeu-me com certo assombro: "Sim, não vejo nada de útil na dialética". "No entanto — respondi-lhe — a dialética me permitiu determinar, fundamentando-me em umas poucas observações suas sobre problemas econômicos, a que setor do pensamento filosófico você pertence. Só este fato demonstra que existe um valor apreciável na dialética". A partir de então, ainda que não tenha tido noticias sobre meu visitante, não tenho nenhuma dúvida de que ele defende a Opinião de que a URSS não é um Estado operário, que a defesa incondicional da URSS é uma opinião "fora de moda", que nossos métodos organizativos são maus etc. Assim como podemos estabelecer o tipo geral de pensamento de uma dada pessoa, baseados na sua relação com os problemas práticos, concretos, também é possível predizer, aproximadamente, e uma vez conhecendo seu tipo geral de pensamento, como ele se aproximará de um determinado indivíduo ou de outra questão prática. Este é o incomparável valor educativo do método dialético de pensamento.

O ABC da dialética materialista

Céticos gangrenosos como Souvarine acreditam que "ninguém sabe" o que é a dialética. E existem "marxistas" que se inclinam a fazer uma reverência diante de Souvarine, e esperam aprender algo com ele. E estes marxistas não só se escondem na Modern Monthly. Infelizmente, existe uma corrente de souvarinistas na atual oposição do SWP. E aqui, é necessário advertir os camaradas jovens: Cuidado com esta infecção maligna!

A dialética não é ficção ou misticismo, mas uma ciência das formas de nosso pensamento, na medida em que não se limita aos problemas cotidianos da vida, mas tenta chegar a uma compreensão de processos mais amplos e complicados. A dialética e a lógica formal mantêm uma relação semelhante à que existe entre as matemáticas inferiores e as superiores.

Aqui, tentarei esboçar a essência do problema, de forma bem resumida. A lógica aristotélica, do silogismo simples, parte da proposição de que "A" é igual a "A". Aceita-se este postulado como axioma para uma quantidade de ações humanas práticas e de generalizações elementares. Mas na verdade, "A" não é igual a "A". Isto é fácil de demonstrar, se observarmos estas duas letras com uma lente: são completamente diferentes uma da outra. Porém, alguém pode dizer que a questão não é o tamanho ou a forma das letras, uma vez que são somente símbolos de quantidades iguais, por exemplo, de uma libra de açúcar. A objeção é incongruente; na verdade, uma libra de açúcar nunca é igual a uma libra de açúcar: uma balança mais precisa sempre descobrirá uma diferença. Novamente, alguém pode objetar: no entanto, uma libra de açúcar é igual a si mesma. Isso também não é verdade: todos os corpos mudam constantemente, de tamanho, peso, cor etc. Nunca são iguais a si mesmos. Um sofista responderá que uma libra de açúcar é igual a si mesma, "em um dado momento". Além do valor prático extremamente duvidoso deste "axioma", este também não suporta uma crítica teórica. Como devemos conceber, realmente, a palavra "momento"? Se se trata de um intervalo infinito e sinal de tempo, então uma libra de açúcar está submetida, durante o transcurso desse "momento" a mudanças inevitáveis. Ou o "momento" é uma abstração puramente matemática, ou seja, zero tempo? Porém, tudo existe no tempo; e a própria existência é um processo ininterrupto de transformação; conseqüentemente, o tempo é um elemento fundamental da existência. Deste modo, o axioma "A" é igual a "A", significa que uma coisa é igual a si mesmo se não se modifica, isto é, se não existe.

À primeira vista, poderia parecer que essas "sutilezas" são inúteis. Na verdade, são de uma importância decisiva. O axioma "A" é igual a "A" é, por um lado, ponto de partida de todos nossos conhecimentos e, por outro, é também o ponto de partida de todos os erros do nosso conhecimento. Pode ser utilizado com uniformidade somente dentro de certos limites. Se as mudanças quantitativas de "A" são desprezíveis para a questão que temos na mão, então podemos presumir que "A" é igual a "A". É deste modo, por exemplo, que o vendedor e o comprador consideram uma libra de açúcar. Da mesma forma, consideramos a temperatura do Sol. Até pouco tempo atrás, considerávamos desta forma o poder aquisitivo do dólar. Porém, quando as mudanças quantitativas ultrapassam certos limites, se convertem em mudanças qualitativas. Uma libra de açúcar, submetida à ação da água ou do querosene, deixa de ser uma libra de açúcar. Nas mãos de um presidente, um dólar deixa de ser um dólar. Determinar o momento preciso, o ponto crítico, em que a quantidade se transforma em qualidade, é uma das tarefas mais importantes e difíceis em todas as esferas do conhecimento, inclusive a sociologia.

Todo operário sabe que é impossível elaborar dois objetos completamente iguais. Na transformação do bronze em cones, permite-se certo desvio nos cones, sempre que este não ultrapasse certos limites (chama-se isto de tolerância). Ainda que se respeitem as normas de tolerância, os cones são considerados iguais ("A" é igual a "A"). Quando se excede a tolerância, a quantidade se transforma em qualidade; em outras palavras, os cones são de qualidade inferior ou completamente inúteis.

Nosso pensamento científico é somente uma parte de nossa prática geral, incluindo as técnicas. Para os conceitos, também existe uma "tolerância" que não está fixada pela lógica formal baseada no axioma "A" é igual a "A", mas pela lógica dialética baseada no axioma de que tudo se modifica constantemente. O "sentido comum" se caracteriza pelo fato de que sistematicamente excede a "tolerância" dialética.

O pensamento vulgar trabalha com conceitos tais como capitalismo, moral, liberdade, Estado operário etc., considerando-os como abstrações fixas, presumindo que capitalismo é igual a capitalismo, moral é igual à moral etc. O pensamento dialético analisa todas as coisas e fenômenos em suas mudanças contínuas, uma vez que determina, nas condições materiais daquelas modificações, esse limite crítico em que “A" deixa de ser “A", um Estado operário deixa de ser um Estado operário.

O vício fundamental do pensamento vulgar radica no fato de querer se contentar com fotografias inertes de uma realidade que se compõe de eterno movimento. O pensamento dialético dá aos conceitos, através de aproximações sucessivas, correções, concreções, riqueza de conteúdo e flexibilidade; diria, inclusive, até certa suculência que, em certa medida, os aproxima dos fenômenos vivos. Não existe um capitalismo em geral, mas um capitalismo dado, em uma determinada etapa de desenvolvimento. Não existe um Estado operário em geral, mas um Estado operário determinado, em um país atrasado, rodeado por um cerco capitalista etc.

A relação entre o pensamento dialético e o pensamento comum é semelhante ao de um filme com uma fotografia. O filme não invalida a fotografia imóvel, mas combina uma série delas, de acordo com as leis do movimento. A dialética não nega o silogismo, mas nos ensina a combinar os silogismos de tal forma que nos leve a uma compreensão mais certeira da realidade eternamente em mudança. Hegel, em sua Lógica, estabeleceu uma série de leis: mudança de quantidade em qualidade, desenvolvimento através das contradições, conflito entre o conteúdo e a forma, interrupção da continuidade, mudança e possibilidade em inevitabilidade etc., que são tão importantes para o pensamento teórico como o silogismo simples para as tarefas mais elementares.

Hegel escreveu antes que Darwin e antes que Marx. Graças ao poderoso impulso que a Revolução Francesa deu ao pensamento, Hegel antecipou o movimento geral da ciência. Mas porque era somente uma antecipação ainda que feita por um gênio, recebeu de Hegel um caráter idealista. Hegel trabalhava com sombras ideológicas como realidade final. Marx demonstrou que o movimento dessas sombras ideológicas não refletia outra coisa que o movimento de corpos materiais.

Chamamos nossa dialética de materialista, porque suas raízes não estão no céu e nem nas profundezas do "livre arbítrio", mas na realidade objetiva, na natureza. A consciência surgiu do inconsciente, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do mundo inorgânico, o sistema solar da nebulosa. Em todas as balizas desta escala de desenvolvimento, as mudanças quantitativas se transformaram em qualitativas. Nosso pensamento, inclusive o pensamento dialético, é somente uma das formas de expressão da matéria em modificação. Neste sistema não existe lugar para Deus e nem para o Diabo, nem para a alma imortal, nem para modelos eternos de leis e morais. A dialética do pensamento, tendo surgido da dialética da natureza, possui, conseqüentemente, um caráter completamente materialista.

O darwinismo, que explicou a evolução das espécies através da marcha das transformações quantitativas em qualitativas, foi o maior triunfo da dialética em todo o terreno da matéria orgânica. Outro grande triunfo, foi o descobrimento da tábua de pesos atômicos de elementos químicos e, posteriormente, a transformação de um elemento em outro.

A estas transformações (espécies, elementos etc.) está, estreitamente ligada a questão da classificação, de igual importância nas ciências naturais e nas sociedades. O sistema de Linneo (século XVIII), que utilizava como ponto de partida a imutabilidade das espécies, se limitava à descrição e classificação das plantas, de acordo com suas características exteriores. O período infantil da botânica é análogo ao período infantil da lógica, já que as formas de nosso pensamento se desenvolvem como tudo o que vive. Somente o repúdio definitivo à idéia de espécie fixa, somente o estudo da história da evolução das plantas e sua anatomia, preparou as bases para uma classificação realmente científica.

Marx, que ao contrário de Darwin, era um dialético consciente, descobriu uma base para a classificação científica das sociedades humanas no desenvolvimento de suas forças produtivas e na estrutura das relações de propriedade, que constituem a anatomia social. O marxismo substituiu a vulgar classificação descritiva que ainda floresce nas universidades, por uma classificação dialética marxista. Somente mediante a utilização do método de Marx é possível se determinar, corretamente, tanto o conceito do que seja um Estado operário, como o momento de sua queda.

Como vemos, tudo isso não contém nada de "metafísico" ou "escolástico", como afirma a ignorância vaidosa. A lógica dialética expressa as leis do movimento no pensamento cientifico contemporâneo. A luta contra a dialética materialista expressa, ao contrário, um passado distante, o conservadorismo da pequena-burguesia, a auto-suficiência dos rotineiros universitários e... uma faísca de esperanças no outro mundo.

A natureza da URSS

A definição da URSS, dada pelo camarada Burnham —"nem Estado operário, nem Estado burguês"— é puramente negativa, se separa da corrente do desenvolvimento histórico, oscila suspenso no ar, carece de toda partícula de sociologia e representa, simplesmente, uma capitulação teórica do pragmatismo frente a um fenômeno histórico contraditório.

Se Burnham fosse um materialista dialético, teria demonstrado as seguintes questões: 1) Qual a origem histórica da URSS? 2) Que mudanças este Estado sofreu durante a sua existência? 3) Essas mudanças passaram de quantitativas para qualitativas? Ou seja, criaram uma dominação historicamente necessária por parte de uma nova classe exploradora? Responder estas perguntas, teria obrigado Burnham a chegar à única conclusão possível: a URSS ainda é um Estado operário degenerado.

A dialética não é uma chave mestra para todas as questões. Não substitui a análise científica concreta. Porém, dirige esta análise pelo caminho correto, colocando-a a salvo de extravios estéreis no deserto do subjetivismo e do escolasticismo.

Bruno R. coloca os regimes fascista e o soviético em uma mesma categoria de "coletivismo burocrático", pelo fato de que a URSS, Itália e Alemanha estão todos governados por burocracias; aqui e ali, seguem-se os princípios da planificação; em um caso, se extingue a propriedade privada, no outro, se limita a propriedade privada etc. Desta forma, baseando-se em uma relativa semelhança de certas características externas, de origens distintas, de distinto peso especifico, de distinta significação de classe, estabelece-se uma identidade fundamental de regimes sociais, completamente dentro do espírito dos professores burgueses que estabelecem categorias de "economia controlada", "Estado centralizado", sem se levar em conta, para nada, a natureza de classe de um ou de outro. No melhor dos casos, Bruno R. e seus seguidores ou semi-seguidores como Burnham, permanecem na esfera da classificação social ao nível de Linneo, que para sua justificação, teríamos que sublinhar, que viveu antes de Hegel, Darwin e Marx.

Ainda piores, e talvez mais perigosos, são aqueles ecléticos que expressam a idéia de que o caráter de classe do Estado soviético "não interessa", e que a direção de nossa política está determinada pelo "caráter da guerra". Como se a guerra fosse uma substância independente supra-social; como se o caráter da guerra não estivesse determinado pelo caráter da classe dominante, ou seja, pelo mesmo fator social que também determina o caráter do Estado. É assombrosa a facilidade com que alguns camaradas esquecem o ABC do marxismo, sob os golpes dos acontecimentos!

Não é surpreendente que os teóricos da oposição, que rechaçam o pensamento dialético, lamentavelmente capitulem diante da natureza contraditória da URSS. No entanto, a contradição entre as bases sociais assentadas pela revolução e pelo caráter da casta surgida da degeneração da revolução, não é só um fato histórico irrebatível, mas também uma força motriz. Em nossa luta pela derrubada da burocracia, nos baseamos nesta contradição.

Entretanto, alguns ultra-esquerdistas chegaram ao absurdo final, ao afirmarem que é necessário sacrificar a estrutura social da URSS para derrotar a oligarquia bonapartista! Não têm a mínima suspeita de que a URSS, sem a estrutura social criada pela evolução de Outubro, seria um regime fascista.

Evolução e dialética

Provavelmente, o camarada Burnham protestará dizendo que, como evolucionista, está tão interessado quanto nós, os dialéticos, no desenvolvimento da sociedade e das formas do Estado. Não discutiremos isso.

Desde a época de Darwin, toda pessoa culta, qualificou-se de "evolucionista". Porém, um verdadeiro evolucionista deve aplicar a idéia da evolução a suas próprias formas de pensamento. A lógica elementar, fundada no período em que a própria idéia de evolução não existia, é evidentemente insuficiente para a análise dos processos evolutivos. A lógica de Hegel é a lógica da evolução. Só que não devemos esquecer que o conceito de evolução foi completamente corrompido e castrado pelos professores universitários e escritores liberais, que o utilizam para se referirem ao "progresso" pacífico. Qualquer um que tenha chegado a entender que a evolução se desenvolve através da luta de forças antagônicas; que uma lenta acumulação de mudanças faz estalar, em determinado momento a velha carcaça, provocando uma catástrofe, uma revolução; finalmente, qualquer um que tenha aprendido aplicar as leis gerais da evolução ao próprio pensamento, é um dialético que se diferencia dos evolucionistas vulgares. O treinamento dialético da mente — tão necessário para um lutador revolucionário assim como os exercícios com os dedos para um pianista — exige que todos os problemas sejam tratados como processos, e não como categorias imóveis. Ao contrário, os evolucionistas vulgares se limitam geralmente, a reconhecer a evolução somente em certas esferas, e se contentam em todas as demais questões, com as banalidades do "senso comum".

O liberal americano, que se reconciliou com a existência da URSS — mais precisamente, com a burocracia de Moscou — acredita, ou pelo menos acreditava até o pacto germânico-soviético, que o regime soviético em seu conjunto é "algo progressivo", que as características repugnantes da burocracia ("naturalmente, elas existem!") iriam se apagando progressivamente, e que o "progresso" pacífico e incruento estaria conseqüentemente assegurado.

O radical pequeno-burguês vulgar se assemelha ao "progressista" liberal, na medida em que considera a URSS como um todo, sem levar em conta a sua dinâmica e suas contradições internas. Quando Stalin selou uma aliança com Hitler, invadiu a Polônia, e agora a Finlândia, os radicais vulgares ficaram triunfantes: estava demonstrada a identidade de métodos entre o stalinismo e o fascismo! No entanto, viram-se em dificuldades quando as novas autoridades convidaram a população a expropriar os grandes proprietários de terra e capitalistas. Nunca haviam previsto esta possibilidade! Entretanto, as medidas sociais revolucionárias, realizadas por meios burocrático-militares, não só não perturbaram nossa definição dialética da URSS como Estado operário degenerado, mas a confirmaram, da forma mais incontrovertida possível. Ao invés de utilizar este triunfo da análise marxista para perseverar na agitação, os oposicionistas pequeno-burgueses começaram a gritar, com uma pressa criminosa, que os acontecimentos haviam refutado nossos prognósticos, que nossas velhas fórmulas já não eram aplicáveis, que eram necessárias novas palavras. Que palavras? Eles mesmos, ainda não haviam se decidido.

Defesa da URSS

Começamos com a filosofia e logo passamos à sociologia. Tornou-se patente que em ambas as esferas, das duas personalidades dirigentes da oposição, uma havia tomado uma postura anti-marxista, a outra, uma postura eclética. Se agora considerarmos a política, particularmente a questão da defesa da URSS, veremos que grandes surpresas nos aguardam.

A oposição descobriu que nossa fórmula de "defesa incondicional da URSS", a fórmula de nosso programa, é "vaga, abstrata e fora de moda (?!)". Infelizmente, não explicam sob que futuras "condições", estão dispostos a defender as conquistas da revolução. A fim de dar pelo menos um grama de sentido à sua nova fórmula, a oposição tenta apresentar as coisas como se até agora tivéssemos defendido "incondicionalmente" a política internacional do governo do Kremlin com seu Exército Vermelho e sua GPU. Tudo colocado ao contrário! Na verdade, há muito tempo não defendemos a política internacional do Kremlin mesmo de forma condicional, e particularmente desde o dia em que proclamamos abertamente a necessidade de aniquilar, abertamente, a oligarquia do Kremlin mediante uma insurreição. Uma política equivocada não só mutila as tarefas correntes, mas também obriga a apresentação do próprio passado com uma luz falsa.

No artigo já mencionado, em New International, Burnham e Shachtman qualificaram corretamente o grupo de intelectuais desiludidos de "A Liga das Esperanças Abandonadas", e perguntavam insistentemente, qual seria a posição desta lamentável Liga no caso de um conflito militar entre um país capitalista e a União Soviética. "Portanto, aproveitamos esta ocasião, — escreviam — para exigir de Hook, Eastman e Lyons declarações sem ambigüidades sobre a questão da defesa da URSS, frente a um ataque de Hitler ou do Japão... ou, se for o caso, da Inglaterra..." Burnham e Shachtman não estabeleceram nenhuma "condição", não especificaram quaisquer circunstâncias "concretas" e, ao mesmo' tempo, exigiram uma resposta "sem ambigüidades". "... A Liga (das Esperanças Abandonadas) iria se abster de tomar uma posição ou se declararia neutra?", continuavam; "em uma palavra está a favor da defesa da URSS frente a um ataque imperialista, sem levar em conta e apesar do regime stalinista?" (grifo meu). Uma citação maravilhosa! E isto é exatamente o que declara o nosso programa. Em janeiro de 1939, Burnham e Shachtman estavam a favor da defesa incondicional da URSS e definiram corretamente o sentido da defesa incondicional como "sem levar em conta e apesar do regime stalinista". No entanto, este artigo foi escrito quando a experiência da revolução espanhola havia sido apurada até a sua consumação. O camarada Cannon está absolutamente correto quando diz que o papel do stalinismo na Espanha, foi incomparavelmente mais criminoso do que na Polônia ou Finlândia. No primeiro caso, a burocracia estrangulou uma revolução socialista empregando métodos de verdugo. No segundo caso, impulsionou a revolução socialista empregando métodos burocráticos. "Por que os próprios Burnham e Shachtman passaram tão inesperadamente à posição da Liga das Esperanças Abandonadas"? Por quê? Não podemos considerar como explicação, as referências super-abstratas de Shachtman sobre a "concreção dos acontecimentos". No entanto, não é difícil encontrar uma explicação. A participação do Kremlin no campo republicano, na Espanha, foi apoiada pelos democratas burgueses de todo o mundo. O trabalho de Stalin na Polônia e Finlândia foi furiosamente condenado por estes mesmo democratas. Apesar de todas as suas ruidosas fórmulas, a oposição aparece como um reflexo dentro do Socialist Workers Party, dos sentimentos da pequena-burguesia "esquerdista". Infelizmente, este fato é indiscutível.

"Nossos sujeitos", escreviam Burnham e Shachtman sobre a "Liga das Esperanças Abandonadas", "se orgulham, em alto grau, ao acreditarem que estão contribuindo com algo "fresco", que estão "revalorizando à luz de novas experiências" que "não são dogmáticos" ("conservadores"? - L. T.) que recusam a voltar a examinar suas "suposições básicas" etc. Que patético auto-engano! Nenhum deles trouxe à luz qualquer fato novo e nem proporcionou nenhuma nova compreensão do presente ou do futuro". Citação assombrosa! Não deveríamos acrescentar um novo capítulo ao seu artigo "Intelectuais em retirada"? Ofereço minha colaboração ao camarada Shachtman...

Como será possível que destacados indivíduos como Burnham e Shachtman, dedicados incondicionalmente à causa do proletariado, possam se tornar tão temerosos dos nada temíveis cavaleiros da Liga das Esperanças Abandonadas? No plano puramente teórico, no que se refere a Burnham, a explicação radica em seu método incorreto; no que diz respeito a Shachtman, em seu desprezo pelo método. Um método correto não só facilita a obtenção de uma conclusão correta, mas ao ligar cada nova conclusão com as precedentes, em uma cadeia consecutiva, fixa essas conclusões em nossa memória. Se as conclusões políticas se realizam empiricamente, não restam dúvidas de que então o sistema político marxista se vê, invariavelmente, substituído pelo impressionismo — característico, em tantas formas, dos intelectuais pequeno-burgueses. Cada nova virada dos acontecimentos surpreende o empírico-impressionista, obriga-o a esquecer o que ele mesmo escreveu ontem e produz nele, um ardente desejo de encontrar novas fórmulas antes que novas idéias apareçam em sua cabeça.

A guerra fino-soviética

A resolução da oposição sobre a questão da guerra fino-soviética, talvez com ligeiras mudanças, pudesse ser subscrita pelos bordiguistas, Vereecken, Sneevliet, Fenner Brockway, Marceau Pivert e outros, mas em caso algum pelos bolcheviques-leninistas. Baseada exclusivamente nas características da burocracia soviética e no mero fato da "invasão", a resolução carece do mais mínimo conteúdo social. Coloca a Finlândia e a URSS em um mesmo nível, e inequivocamente, "condena, rechaça e se opõem a ambos os governos e seus exércitos". No entanto, advertindo que algo não ia bem, a resolução, inesperadamente e sem relação alguma com o texto, acrescenta: "Ao aplicar (!) esta perspectiva, a Quarta Internacional naturalmente levará em conta (!) (é maravilhoso este "naturalmente") as diferentes relações econômicas da Finlândia e da Rússia". Cada palavra é uma pérola. Nossos amantes do "concreto", entendem por circunstâncias "concretas", a situação militar, os sentimentos das massas, e em terceiro lugar, regimes econômicos opostos. Quanto a este "levará em conta" estas três circunstâncias "concretas", a resolução não nos fornece o menor indício. Se a oposição se opõe igualmente a "ambos os governos e seus exércitos" em relação a esta guerra, como "levará em conta" as diferenças na situação militar e nos regimes sociais? Na verdade, nada disto é compreensível.
Com o objetivo de castigar os stalinistas por seus crimes indiscutíveis, a resolução, seguindo os democratas pequeno-burgueses de todo tipo, não diz uma só palavra sobre o fato de que na Finlândia, o Exército Vermelho expropria os grandes proprietários de terra e introduz o controle operário, enquanto prepara a expropriação dos capitalistas.

Amanhã os stalinistas estrangularão os operários finlandeses. Mas agora estão dando — estão sendo obrigados a dar — um tremendo impulso à luta de classes em sua forma mais aguda. Os chefes da oposição não constroem sua política sobre o processo "concreto" que está ocorrendo na Finlândia, mas sobre abstrações democráticas e nobres sentimentos.

Aparentemente, a guerra soviético-finlandesa começa a ser complementada por uma guerra civil, na qual o Exército Vermelho se encontra, na atual fase, no mesmo campo que os pequenos camponeses e operários finlandeses, enquanto que o exército finlandês goza do apoio das classes proprietárias, da conservadora burocracia operária e dos imperialistas anglo-saxões. As esperanças que o Exército desperta entre as classes baixas finlandesas será uma ilusão, a não ser que a revolução internacional intervenha; a colaboração do Exército Vermelho com essas classes será somente temporária. O Kremlin se apressará para voltar suas armas contra os operários e camponeses finlandeses. Tudo isso nós já sabemos agora, e dizemos isto abertamente, como advertência. Porém, nesta guerra civil "concreta" que ocorre na Finlândia, qual a posição "concreta" que devem tomar os partidos "concretos" da Quarta Internacional? Se lutaram na Espanha, no campo republicano, apesar do fato dos stalinistas estarem estrangulando a revolução socialista, tanto mais devem participar na Finlândia, naquele campo em que os stalinistas estão sendo obrigados a apoiar a expropriação dos capitalistas.

Nossos inovadores tapam as brechas de sua posição com frases violentas. Qualificam de "imperialista" a política da URSS. Que vasto enriquecimento das ciências! De hoje em diante, tanto a política externa do capital financeiro, como a política de exterminar o capital financeiro se chamará imperialismo. Tal coisa ajudará significativamente a aclarar e educar os operários! Mas o Kremlin — gritará, por exemplo, o mui temerário Stanley — apóia simultaneamente a política do capital financeiro na Alemanha! Esta objeção se baseia na substituição de um problema por outro, na dissolução do concreto no abstrato (o erro comum do pensamento vulgar).

Se amanhã Hitler for obrigado a enviar armas aos hindus, os operários revolucionários alemães deverão se opor a esta ação concreta através de greves ou sabotagens? Ao contrário, devem assegurar que os insurretos recebam as armas o mais rápido possível. Esperamos que isto esteja claro para Stanley. Porém, este exemplo é puramente hipotético. Utilizamos este exemplo para demonstrar que até um governo fascista do capital financeiro pode, em certas condições, ser obrigado a apoiar um movimento nacional revolucionário (que tentará estrangular no dia seguinte). Por exemplo, nunca e sob nenhuma circunstância, Hitler apoiaria uma revolução proletária na França. Mas atualmente, o Kremlin se vê obrigado — e esta não é uma situação hipotética, mas real — a provocar um movimento social revolucionário na Finlândia (a fim de tentar estrangulá-lo politicamente amanhã). Ocultar determinado movimento social revolucionário com o termo geral de imperialismo só porque é provocado, mutilado e ao mesmo tempo estrangulado pelo Kremlin, não atesta outra coisa a não ser a própria pobreza teórica e política.

É necessário acrescentar que a extensão do conceito de "imperialismo", ressente-se inclusive do atrativo de ser uma novidade. Hoje em dia, não só os "democratas", mas também a burguesia dos países democráticos qualificam a política soviética de imperialista. O objetivo da burguesia é evidente: velar as contradições sociais entre a expansão capitalista e a soviética; ocultar o problema da propriedade, e dessa forma ajudar o verdadeiro imperialismo. Qual o objetivo de Shachtman e dos outros? Eles mesmos não sabem. Sua novidade terminológica toma-os objetivamente alheios à terminologia marxista da Quarta Internacional, e faz com que se aproximem da terminologia dos "democratas". Esta circunstância — ai! — novamente certifica a aguda sensibilidade da oposição diante da pressão da opinião pública pequeno-burguesa.

"A questão organizativa"

Ouve-se cada vez mais freqüentemente, nas fileiras da oposição: "a questão russa não é de importância decisiva em si e por si mesma; a tarefa mais importante consiste em modificar o regime do partido". Tem-se que entender que mudança de regime significa mudança de direção, ou mais precisamente à eliminação de Cannon e seus mais estreitos colaboradores nos postos dirigentes. Estas vozes clamorosas demonstram que a tendência em direção a uma luta contra a "fração de Cannon" precedeu esta "concreção dos acontecimentos" a que se referem Shachtman e outros, quando explicam sua mudança de posição. Ao mesmo tempo, estas vozes nos recordam toda uma série de grupos opositores do passado, que combateram em distintas ocasiões; e que, quando a base dos princípios começou a tremer sob seus pés, passaram à chamada "questão organizativa" — o caso foi idêntico com Molinier, Sneevliet, Vereecken e muitos outros. Por desagradáveis que possam parecer estes precedentes, é impossível deixá-los de lado.

No entanto, seria incorreto acreditar que o deslizamento da luta para a "questão organizativa" representa uma simples "manobra" na luta fracional, Não, os sentimentos interiores da oposição lhes diz na verdade, e ainda que de forma confusa, que a questão se refere não somente ao "problema russo", mas também, a toda a forma de tratar os problemas políticos em geral, incluindo também os métodos de construção do partido. E em certo sentido, tal coisa é correta.

Mais acima, também tentamos demonstrar que a questão não se refere somente ao problema russo, mas ao método de pensamento da oposição, que possui raízes sociais. A oposição está sob a influência das tendências e dos estados de ânimo da pequena-burguesia. Esta é a essência de todo o problema.

Vimos com clareza a influência ideológica de outra classe nos casos de Burnham (pragmatismo) e de Shachtman (ecletismo), Não levamos em conta outros dirigentes como o camarada Abern, porque ele geralmente não participa em discussões de princípio, limitando-se ao plano da questão "organizativa". No entanto, isto não quer dizer que Abern não tenha nenhuma importância. Ao contrário, pode-se dizer que Burnham e Shachtman são aficcionados da oposição, enquanto que Abern é o profissional indiscutido. Abern, e somente ele, tem seu próprio grupo tradicional que surgiu do velho Partido Comunista e que chegou a deslindar-se durante o primeiro período de existência independente da "Oposição de Esquerda", Todos que tiveram diferentes razões para a crítica ou descontentamento se aferraram a este grupo.

Toda luta fracional séria dentro de um partido é sempre, em última instância, um reflexo da luta de classes. A fração da maioria estabeleceu desde o inicio a dependência ideológica da oposição ante a democracia pequeno-burguesa. A oposição, ao contrário, exatamente por seu caráter pequeno-burguês, sequer tentou buscar as raízes sociais do campo hostil.

A oposição iniciou uma dura luta fracional que agora está paralisando o partido, em um momento muito crítico. Para que esta luta possa se justificar e não ser condenada severamente, seriam necessárias razões muito sérias e profundas. Para um marxista, tais razões só podem ter um caráter de classe. Antes de iniciarem sua áspera luta, os chefes da oposição eram obrigados a formularem, a si mesmos, esta pergunta: que influência de classe não-proletária se reflete na maioria do Comitê Nacional? No entanto, a oposição não fez a mínima tentativa para realizar tal análise classista das divergências. Vê, unicamente, "conservadorismo", "erros", "maus métodos" e deficiências psicológicas, intelectuais e técnicas semelhantes. A oposição não está interessada na sua natureza de classe, assim como não se interessa pela questão da natureza de classe da URSS.

Só este fato basta para demonstrar o caráter pequeno-burguês da oposição, com seu tom de pedantismo acadêmico e seu impressionismo jornalístico.

Para compreender que camadas ou classes se refletem na luta fracional, é preciso se estudar historicamente a luta de ambas as frações. Aqueles membros da oposição que afirmam que a atual luta não tem "nada de comum" com as velhas lutas fracionais, demonstram uma vez mais sua atitude superficial diante da vida de seu próprio partido. O núcleo fundamental da oposição é o mesmo que se agrupou há três anos em volta de Muste e Spector. O núcleo fundamental da maioria é o mesmo que se agrupa em volta de Cannon. Entre as figuras dirigentes, somente Shachtman e Burnham passaram de um campo para outro. Porém essas mudanças pessoais, por importantes que sejam não modificam o caráter geral dos dois grupos. Aqui, não entrarei no processo histórico da luta fracional; remeto o leitor ao excelente artigo, em todos os seus aspectos, de Joseph Hansen, "Métodos organizativos e princípios políticos".

Se abstrairmos todo o acidental, pessoal e episódico, se reduzirmos os atuais grupos em luta a seus tipos políticos fundamentais, então, sem dúvida alguma, a luta do camarada Abern contra o camarada Cannon foi a mais consistente. Nesta luta, Abern representa o grupo propagandista, pequeno-burguês em sua composição social, unidos por velhos laços pessoais e quase possuindo o caráter de uma família. Cannon representa o partido proletário em processo de formação. O direito histórico desta luta — independente de quais equívocos e erros possam ter sido cometidos — está completamente do lado de Cannon.

Quando os representantes da oposição começaram a gritar que a "direção está em bancarrota", que "as previsões mostraram-se incorretas", que "fomos surpreendidos pelos acontecimentos", que "é necessário modificar nossas palavras-de-ordem", tudo isto sem se esforçarem, por mínimo que fosse, para pensar seriamente as questões, apareceram fundamentalmente como derrotistas partidários. Esta lamentável atitude se explica pela irritação e pelo medo do velho círculo propagandista frente a novas tarefas e novas relações partidárias. O sentimentalismo dos velhos laços pessoais não quer se submeter ao sentido do dever e da disciplina. A tarefa que o partido tem diante de si, consiste em romper os velhos laços de camarilha e integrar os melhores elementos do passado propagandista no partido proletário. É necessário desenvolver tal espírito de patriotismo partidário de forma que ninguém se atreva a dizer: "A realidade do assunto não é a questão russa, mas o fato de que nos sentimos melhores e mais cômodos sob a direção de Abern do que sob a direção de Cannon".

Eu, pessoalmente, não cheguei ontem a esta conclusão. Eu a expressei dezenas e centenas de vezes em conversas com membros do grupo de Abern. Invariavelmente, enfatizei a composição pequeno-burguesa deste grupo. Propus; repetida e insistentemente, transferir aqueles militantes de trajetórias pequeno-burguesa, que haviam se demonstrado incapazes de captar operários para o partido, da categoria de militantes para a de simpatizantes. Como os fatos demonstraram, cartas pessoais, conversas e advertências, não conduziram a nada — a gente dificilmente aprende com a experiência alheia. O antagonismo entre as duas camadas do partido e os dois períodos de seu desenvolvimento emergiu para a superfície e tomou o caráter de uma amarga luta fracional. Não resta nada a não ser dar uma opinião, clara e definida, à seção americana e a toda Internacional. Diz um provérbio russo: "A Amizade é amizade, mas dever é dever".

Pode-se colocar a seguinte pergunta: Se a oposição é uma tendência pequeno-burguesa, isso significa que é impossível se conseguir, posteriormente, a unidade? Como reconciliar a tendência pequeno-burguesa com a proletária? Colocar a questão desta forma, equivale a julgá-la unilateralmente, anti-dialeticamente, e por tanto, de forma falsa. Na presente discussão, a oposição manifestou claramente suas características pequeno-burguesas. Porém, isto não quer dizer que não tenha outras características. A maior parte dos membros da oposição está profundamente dedicada à causa do proletariado e é capaz de aprender. Ligada atualmente a um meio pequeno-burguês, poderá, amanhã, ligar-se ao proletariado. Os inconsistentes, influenciados pela experiência, podem se tornar mais consistentes. Quando o partido chegar a abarcar milhares de operários, até os fracionalistas profissionais podem se reeducar no espírito da disciplina proletária. É preciso dar tempo para que isto ocorra. Por isso, a proposta do camarada Cannon, de manter a discussão livre de toda ameaça de separação, expulsões etc., era adequada e absolutamente correta.

No entanto, não é menos indubitável que se o partido em seu conjunto toma o caminho da oposição, poderia ficar totalmente destruído. A atual oposição é incapaz de dar ao partido uma direção marxista. A maioria do atual Comitê Nacional expressa de forma mais profunda, séria e consciente do que a minoria, as tarefas proletárias do partido. Exatamente por causa disso, a maioria não pode ter nenhum interesse em, fazer a luta caminhar para a cisão — as idéias corretas triunfarão. Também não podem desejar a ruptura dos elementos sãos da oposição — a experiência do passado demonstra muito claramente quantos grupos improvisados existiram, que se separaram da Quarta Internacional e se viram condenados à esterilidade e à decomposição. Por isso podemos encarar o próximo Congresso do partido sem nenhum temor. Ele rechaçará as novidades anti-marxistas da oposição e garantirá a unidade do partido.


Inclusão 15/05/2009
Última alteração 12/08/2014