Um Estado Não Operário e Não Burguês

Leon Trotsky

25 de Novembro de 1937

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Primeira Edição: Leon Trotsky, In Defense of Marxism, New York 1942.
Fonte: "Em Defesa do Marxismo", publicação da Editora "Proposta Editorial"
Direitos de Reprodução: © Editora Proposta Editorial. Agradeçemos a Valfrido Lima pela autorização concedida.


"A forma política e o conteúdo social

Os camaradas Burnham e Carter puseram, novamente em questão a natureza de classe do Estado soviético. A resposta que propõem é, em minha opinião, completamente falsa. Mas, já que estes camaradas, ao contrário de alguns ultra-esquerdistas, não suplantam a análise científica com alaridos estridentes, pode-se e deve-se discutir de novo esta questão extremamente importante.

Burnham e Carter não esquecem que a diferença principal entre a URSS e o Estado burguês contemporâneo se expressa no poderoso desenvolvimento das forças produtivas, resultado da transformação das formas de propriedade. Mais adiante, admitem que "a estrutura econômica, tal como foi estabelecida pela Revolução de Outubro, permanece, no fundamental, sem alteração". Disto deduzem que o proletariado soviético e mundial têm o dever de defender a URSS contra o imperialismo. Nisto estamos completamente de acordo com Burnham e Carter. Mas, por importantes que sejam os pontos de acordo, não esgotam o problema.

Sem solidarizar-se com os ultra-esquerdistas, Burnham e Carter consideram, no entanto, que a URSS deixou de ser um Estado operário "no sentido tradicional (?) que o marxismo dá a este termo", Mas como "a estrutura econômica continua ainda basicamente inalterada", a URSS também não se converteu em um Estado burguês. Ao mesmo tempo, Burnham e Carter negam-se — e não podemos senão felicitá-los — a considerar a burocracia como uma classe independente, Estes postulados, incompatíveis entre si, conduzem a que, da mesma forma que os stalinistas, o Estado soviético não seja já o órgão de uma dominação de classe. Que é então?

Temos assim, sob nossos olhos, uma nova tentativa de rever a teoria de classe do Estado. Não somos, evidentemente, fetichistas. Se novos fatos históricos exigem uma revisão de teoria, não nos deteremos perante esta necessidade. Mas a experiência lamentável das velhas revisões deveria, em todo o caso, inspirar-nos uma saudável prudência. Pensaremos dez vezes a velha teoria e os novos fatos antes de elaborar uma nova doutrina.

Os próprios Burnham e Carter afirmam, de passagem, que o Estado do proletariado pode, em função das condições objetivas e subjetivas, "exprimir-se em um considerável número de formas governamentais variadas". Acrescentamos para clarificar as coisas: ou através de uma luta livre de diversos partidos no seio dos soviets ou através da concentração do poder de fato nas mãos de um só indivíduo. A ditadura pessoal significa, evidentemente, o sintoma do perigo extremo para o regime. Mas, ao mesmo tempo, aparece, às vezes, como a única forma de salvar o regime. Em conseqüência, a natureza de classe do Estado define-se, não por suas formas políticas, mas sim por seu conteúdo social, quer dizer pelo caráter das formas de propriedade e das relações de produção que o Estado em questão protege e defende.

Burnham e Carter não negam isto, em principio, no entanto recusam-se a ver na União Soviética um Estado operário, e isso por duas razões, uma de caráter econômico e outra de caráter político: "Durante o ano passado, escrevem, a burocracia colocou-se definitivamente no caminho da destruição da economia planificada e nacionalizada". (Não fez mais do que "colocar-se no caminho de"?) Observamos mais longe que o curso do desenvolvimento "leva a burocracia a enfrentar-se já, sem cessar e cada vez mais profundamente, com as necessidades e os interesses da economia nacional" (não faz ainda mais do que "levá-la"?)

As contradições entre a burocracia e a economia observam-se já antes, mas durante o ano passado "os atos da burocracia sabotam ativamente o plano e arruínam o monopólio do Estado". ("arruínam", somente? ainda não o destruíram?)

Como dissemos, o segundo argumento tem um caráter político: "o conceito de ditadura do proletariado não constitui uma categoria essencialmente econômica, mas sim, em primeiro lugar, política (...). Todas as formas, todos os organismos, todas as instituições do Estado de classe do proletariado estão hoje destruídas e isso significa que o Estado de classe do proletariado está destruído." Este segundo argumento, considerado isoladamente, parece surpreendente, depois dos desenvolvimentos sobre as "formas diversas" do regime proletário. Evidentemente, a ditadura do proletário é, não só "essencialmente", mas sim total e inteiramente. uma "categoria política". No entanto, a política em si mesma não é senão economia concentrada. A dominação da social-democracia no Estado e os sovietes (na Alemanha em 1918-1919) não tinha nada em comum com a ditadura do proletariado, na medida em que deixava intacta a propriedade burguesa. Em contrapartida, um regime que conserva propriedade expropriada e nacionalizada contra o imperialismo é, por isso, independentemente das formas políticas, a ditadura do proletariado.

Burnham e Carter “admitem-no" no geral. É por isso que juntam um argumento econômico e um político. A burocracia, afirmam, não só expropriou definitivamente o proletariado do poder político, como também colocou a economia num beco sem saída. Se a burocracia, apesar de suas características reacionárias, jogou no período precedente! Um papel relativamente progressivo, durante o último período, pelo contrário, transformou-se definitivamente em um fator reacionário. Este juízo tem um núcleo que corresponde plenamente a todas as apreciações e todos os prognósticos da Quarta Internacional. Mais de uma vez recordamos que o "despotismo esclarecido" tinha tido um papel progressivo no desenvolvimento da burguesia, para depois transformar-se num freio a este desenvolvimento. Uma revolução, como sabemos, resolveu o conflito. O "despotismo esclarecido", escrevemos, pode ter um papel progressivo na formação da economia socialista em um período de tempo infinitamente mais curto. Este prognóstico confirma-se claramente ante os nossos olhos. Enganada pelos seus próprios êxitos, a burocracia esperava obter, sem cessar, um maior coeficiente de desenvolvimento econômico... No entanto, encaminhava-se para uma profunda crise da economia que constitui uma das fontes de seu atual pânico e da repressão desencadeada. Isto significa que na URSS as forças produtivas deixaram de crescer? Não podemos avançar semelhante afirmação. As possibilidades criadoras da economia são tão grandes que as forças produtivas, apesar do freio burocrático, ainda são capazes de se desenvolver durante muitos anos, mas com um ritmo de progressão muito mais moderado que até agora. Hoje é quase impossível avançar um prognóstico preciso a este respeito. Em todo caso, a crise política que neste momento dilacera a burocracia, é muito mais perigosa para ela do que a perspectiva de uma parada no desenvolvimento das forças produtivas.

No entanto, para simplificar a questão podemos admitir que a burocracia se converteu hoje em um freio absoluto ao desenvolvimento econômico. Este fato por si só, significa que a natureza de classe da URSS mudou ou que a URSS está privada de qualquer natureza de classe? Aqui reside, em meu entender, o erro principal de nossos camaradas...

A sociedade burguesa desenvolveu as forças produtivas até a guerra mundial. Foi só durante o último quarto de século que a burguesia se converteu em um freio absoluto ao seu desenvolvimento. Isto significa, portanto, que a sociedade burguesa deixou de ser burguesa? Não. Isso só significa que se converteu em uma sociedade burguesa em putrefação. Em toda uma série de países, a manutenção da propriedade privada só foi possível através da instauração de um regime fascista. Em outras palavras, a burguesia privou-se de todas as formas e de todos os meios de dominação política direta. Isto significa, portanto, que o Estado deixou de ser burguês? Não, na medida em que o fascismo protege a propriedade privada dos meios de produção com seus bárbaros métodos, e na medida em que o Estado, sob o fascismo, permanece burguês.

Não queremos, de maneira alguma, dar à nossa analogia um significado exaustivo. Mas mostra, sem dúvida, que a concentração do poder nas mãos da burocracia e a detenção do desenvolvimento das forças produtivas não mudam por si só a natureza de classe da sociedade e de seu Estado. Só a intervenção da violência revolucionária ou contra-revolucionária no terreno da propriedade pode modificar esta natureza.

Mas a história não conhece casos de oposição entre o Estado e a economia? Sim! Quando o "terceiro Estado" se apoderou do poder, a sociedade ainda permaneceu alguns anos. Durante os primeiros meses do regime soviético, o proletariado dirigia uma economia burguesa. A ditadura do proletariado apoiou-se durante vários anos, e em certa medida se apóia ainda, em uma economia pequeno-burguesa. Em caso de triunfo da contra-revolução burguesa na URSS, o governo deveria apoiar-se durante um largo período na economia nacionalizada. Mas, o que significa uma contradição temporal desta natureza entre o Estado e a economia? Significa a revolução ou a contra-revolução.

A vitória que uma classe consegue sobre a outra leva, precisamente, a reconstruir a economia no sentido dos interesses do vencedor. Mas uma situação tal, de encruzilhada, que constitui um momento necessário a toda a revolução social não tem nada em comum com a teoria do Estado sem classes que, na falta de uma verdadeiro patrão, é explorado por um empregado, quer dizer, o burocrata.

A norma e o fato

O que impede numerosos camaradas de terem uma apreciação sociológica correta da URSS, é que uma aproximação subjetiva e normativa do problema substitui lima aproximação objetiva e dialética. Burnham e Carter dizem também — e não é por casualidade — que não se pode considerar a União Soviética como um Estado operário no "sentido tradicional que o marxismo dá ao termo". Isso significa simplesmente que a URSS não responde às normas do Estado operário, tal como estão estabelecidas em nosso programa. Isto é indiscutível. Nosso programa baseia-se em um desenvolvimento progressivo do Estado operário e por isso mesmo, no seu desaparecimento gradual. A história, que nem sempre atua de acordo com nosso programa, confrontou-nos com um processo de degeneração do Estado operário. No entanto, isso significa que o Estado operário que entra em contradição com as exigências de nosso programa deixou por isso de ser um Estado operário? Um fígado atacado pela malária não corresponde a um tipo normal de fígado. Mas não deixa, por isso, de ser um fígado. A anatomia e a fisiologia não são suficientes para compreender a sua natureza. É preciso acrescentar a patologia. É evidentemente mais fácil dizer, diante de um fígado doente, "não gosto deste fígado" e voltar-lhe as costas. No entanto, um médico não pode dar-se a um luxo desses. Deve descobrir, nas condições da própria doença e na deformação do órgão suscitada pela doença, os meios terapêuticos da cura (a "reforma") ou da intervenção cirúrgica (a "revolução"). Para isto, antes de mais nada, deve. compreender que o órgão deformado é um fígado doente e não qualquer outra coisa.

Mas tomemos um comparação mais próxima: comparemos o Estado operário e o sindicato. Do ponto de vista do nosso programa, o sindicato deve ser uma organização de luta de classes. Que atitude tomar a respeito da American Federation of Labour (AFL)? Os seus dirigentes são notórios agentes da burguesia. Sobre todas as questões fundamentais, os senhores Green, Voll e companhia têm uma política diretamente contraditória com os interesses do proletariado. Pode-se levar a analogia mais longe e declarar que se, antes da formação do Commitee of Industrial Organization (CIO), a AFL tinha até certo ponto um trabalho progressivo, hoje, quando a atividade essencial da AFL consiste em lutar contra as tendências progressistas (ou menos reacionárias) da CIO, o aparato de Green converteu-se definitivamente em um fator reacionário. Isto será perfeitamente correto. Mas disso não se deduz, de nenhuma maneira, que a AFL deixe de ser uma organização sindical.

O caráter de classe do Estado define-se pela sua relação com as normas de propriedade dos meios de produção. O que define uma organização operária como sindicato, é sua relação com a repartição da renda nacional. O fato de que Green e Cia. defendam a propriedade privada dos meios de produção, define-os como burgueses. Se além disso estes senhores defendessem os benefícios da burguesia contra todos os atentados por parte dos trabalhadores, quer dizer, se lutassem contra as greves, contra os aumentos de salários, contra as ajudas aos desempregados, teríamos então uma organização amarela e não um sindicato. No entanto, para não romper com sua base, Green e Cia são obrigados, dentro de certos limites, a dirigir o combate dos trabalhadores pelo aumento de salários ou pelo menos contra a diminuição da parte que lhes está reservada na renda nacional. Este critério objetivo é suficiente para traçar em todas as ocasiões importantes uma linha de demarcação entre os sindicatos mais reacionários e as organizações amarelas. Por isso mesmo não só somos obrigados a combater dentro da AFL, como também a defende-la contra os amarelos, o Klux-Klux-Klan etc.

A função de Stalin, como a de Green, tem um duplo caráter. Stalin serve à burocracia e por isso à burguesia mundial, mas não pode servir a burocracia sem preservar o fundamento social que a burocracia explora em seu próprio interesse. Nessa medida, Stálin defende a propriedade nacionalizada contra o imperialismo e contra as camadas demasiado impacientes e ávidas da burocracia. No entanto ele realiza esta defesa por métodos que preparam o desmoronamento geral da sociedade soviética. É por isso que é preciso derrubar a camarilha stalinista. Mas é o proletariado revolucionário que deve derrubá-la. Não pode confiar esta tarefa aos imperialistas. O proletariado defende a URSS contra o imperialismo, apesar de Stalin.

O desenvolvimento histórico acostumou-nos a ter, à nossa frente, os sindicatos mais diversos: sindicatos combativos, reformistas, revolucionários, reacionários e católicos. Em um Estado operário, tudo isto é diferente. É a primeira vez que assistimos a uma experiência parecida. Dai a tendência de ver a URSS exclusivamente sob o ângulo das normas do programa revolucionário. Ao mesmo tempo o Estado operário é um fato objetivo, histórico, que está submetido à ação de distintas forças históricas que entram em total contradição com as normas "tradicionais".

Os camaradas Burnham e Carter têm toda a razão em dizer que Stálin e Cia. servem, com sua política. a burguesia internacional, Mas deve se colocar esta idéia em condições determinadas de tempo e lugar. Hitler também serve à burguesia, No entanto, há uma diferença entre as funções de Stalin e as de Hitler: este último defende as formas burguesas da propriedade. Stalin adapta os interesses da. burocracia as formas proletárias de propriedade. O próprio Stalin, na Espanha — quer dizer sobre o terreno do regime burguês — leva a cabo a função de Hitler (diferenciam-se pouco um do outro nos domínios dos métodos políticos em geral). A comparação dos papéis do próprio Stálin na URSS e na Espanha mostra-nos bem que a burocracia não constitui uma classe independente, mas sim um instrumento das classes; e que por sua vez é impossível definir a natureza social da burocracia a partir de sua virtude ou baixeza.

Burocracia burguesa de um Estado operário?

A afirmação de que a burocracia de um Estado operário tem caráter burguês deve parecer não só incompreensível, como simplesmente absurda para gente de espírito formalista.

No entanto, não existe, nem nunca existiu um Estado quimicamente puro. A monarquia prussiana semi-feudal cumpriu as mais importantes tarefas políticas da burguesia, mas cumpriu-as à sua maneira, quer dizer com um estilo feudal e não jacobino. Observamos hoje, no Japão, uma relação análoga entre o caráter burguês do Estado e o caráter semi-feudal da casta dirigente. Tudo isso impede que estabeleçamos uma distinção bastante clara entre a sociedade feudal e a sociedade burguesa. É verdade que se pode objetar que é infinitamente mais fácil a colaboração entre as forças feudais e burguesas, do que a colaboração entre as forças burguesas e proletárias. Pois no primeiro caso, se trata de duas formas de exploração de classe. Mas o Estado operário não cria uma nova sociedade em um só dia.

Marx escrevia que no primeiro período de sua existência, as normas burguesas de distribuição subsistem no seio do Estado operário. É preciso meditar nesta idéia, a fundo. O próprio Estado operário, enquanto Estado, é necessário precisamente porque nele permanecem vigentes as normas burguesas de distribuição. A burocracia representa o órgão desta distribuição. Isto significa que a burocracia, inclusive a mais revolucionárias, representa, até certo ponto, um organismo burguês no Estado operário.

Evidentemente, o que tem um sentido decisivo é o grau deste caráter burguês e a tendência geral de desenvolvimento. Se o Estado operário se desburocratiza e se reduz progressivamente a nada, o desenvolvimento vai assim na direção do socialismo. Se, pelo contrario, a burocracia se toma cada vez mais potente, autoritária, privilegiada e conservadora é porque as tendências burguesas no Estado operário se desenvolvem em detrimento das tendências socialistas; em outros termos, a contradição interna que existe em certo grau no Estado operário, desde os primeiros dias de sua constituição não diminui como exige a "norma", mas, ao contrario, cresce. Por enquanto, apesar do longo tempo decorrido, esta contradição não passou do terreno da distribuição ao da produção e não fez explodir a propriedade nacionalizada e a economia planificada; o Estado permanece operário.

Lênin dizia há quinze anos:

"Temos um Estado operário, mas com deformações burocráticas".

Nessa altura, as deformações burocráticas constituíam a herança direta do regime burguês e, neste sentido, pareciam um simples resíduo. No entanto, sob a influência de condições históricas desfavoráveis, o "resíduo" burocrático viu-se alimentado por novas fontes e se transformou em um enorme fator histórico. Precisamente por isso, falamos hoje da degeneração do Estado operário. Esta degeneração, como mostra o atual bacanal de terror bonapartista, aproxima-se do ponto crítico. O que não passava de uma pequena deformação burocrática prepara-se hoje para devorar o Estado operário sem deixar uma migalha e levantar, sobre as ruínas da propriedade nacionalizada, uma nova classe dirigente. Aproxima-se consideravelmente uma possibilidade, e não estamos dispostos a inclinar-nos a ela antes do tempo.

Pela dialética!

A URSS enquanto Estado operário não responde à norma "tradicional". Isso não significa ainda que não seja um Estado operário. Mas também não significa que a norma se tenha demonstrado falsa. A "norma" ê definida em função da vitória do proletariado internacional. Mas a URSS não é mais do que uma expressão parcial e desfigurada do Estado operário, atrasado e isolado.

Uma forma de pensar "puramente" normativa, idealista e ultimatista quer construir o mundo à sua imagem e desfazer-se simplesmente dos fenômenos de que não gosta. Só os sectários, quer dizer, a gente que é revolucionária só na sua própria imaginação, se deixam guiar por puras normas ideais. Dizem: não gostamos destes sindicatos, não os defendemos.

E cada vez prometem voltar a começar a história a partir do zero. Edificação, isso sim, um Estado operário quando o bom deus lhes ponha entre as mãos um partido ideal e sindicatos ideais. Esperando este feliz momento, fazem todos os trejeitos que podem frente à realidade. Um vigoroso trejeito é a mais alta expressão do "revolucionário" sectário.

Um modo de pensar puramente histórico, reformista, menchevique, passivo, conservador, ocupa-se, segundo a expressão de Marx, em justificar a podridão de hoje pela podridão de ontem. Os representantes deste tipo de pensamento entram nas organizações de massas para dissolverem-se no seu seio. Os desprezíveis "amigos" da URSS adaptam-se às baixezas da burocracia, invocando as condições históricas.

Em oposição a estes dois tipos de pensamento, o modo de pensar dialético, marxista, bolchevique, compreende os fenômenos no seu desenvolvimento objetivo e, ao mesmo tempo, encontra nas condições internas deste desenvolvimento, a base que lhe permite realizar suas "normas". Evidentemente fazendo isto, é impossível esquecer que não se pode esperar ver realizar as normas programáticas senão se estas representam a expressão generalizada das tendências progressivas do próprio processo objetivo.

Pode-se dar, aproximadamente, a seguinte definição programática do sindicato: organização de trabalhadores de uma corporação ou de uma indústria que tem por objetivo: 1) lutar contra o capital para melhorar a situação dos trabalhadores; 2) participar na luta revolucionária para derrubar a burguesia e 3) participar na organização da economia sobre fundamentos socialistas. Se compararmos esta realidade "normativa" e a realidade efetiva, poderia parecer que seríamos obrigados a afirmar: não existe um só sindicato no mundo. Mas semelhante forma de opor as normas e o fato, quer dizer, a expressão generalizada do desenvolvimento a uma manifestação particular deste mesmo desenvolvimento, uma oposição formal semelhante, ultimatista e não dialética entre o programa e a realidade fica totalmente sem vida e não abre nenhuma via de intervenção a um partido revolucionário. Ao mesmo tempo, os atuais sindicatos oportunistas podem, sob o impacto da decadência do imperialismo, e devem, se temos uma política correta neles, aproximar-se de nossas normas programáticas e cumprir um papel progressivo. Isto supõe, é claro, uma mudança completa de direção. É necessário que os trabalhadores dos EUA, da França, da Inglaterra, expulsem Green, Citrine, Jouhaux e Cia. Se o proletariado expulsa a tempo a burocracia soviética, encentrará, no dia seguinte ao da sua vitória, os meios de produção nacionalizados e os elementos essenciais da economia planificada. Isto significa que não terá que voltar a começar do zero. Enorme vantagem! Só janotas radicais habituados a saltar despreocupadamente de galho em galho, podem rejeitar de uma forma ligeira uma possibilidade semelhante. A revolução socialista é uma tarefa demasiado grandiosa para que se possa rejeitar de uma forma ligeira, com uma simples palmada, as suas inestimáveis conquistas materiais e voltar a começar do zero.

É excelente que os camaradas Burnham e Carter, ao contrário do nosso camarada francês Craipeau e toda uma série de outros, não esqueçam o fator que constituem as forças produtivas e não se recusem a defender a União Soviética. Mas esta posição é totalmente insuficiente. E se a criminosa direção da burocracia detém o desenvolvimento da economia? Neste caso, os camaradas Burnham e Carter deixarão o imperialismo destruir as bases sociais da URSS? Estamos certos que não. No entanto, sua definição não marxista da URSS, caracterizada como um Estado não-operário e não-burguês, abre a porta a todo o tipo de deduções.

Classe dirigente e, ao mesmo tempo, oprimida

Como nossa consciência política poderia deixar de se indignar — dizem os ultra-esquerdistas — quando nos querem obrigar a crer que na URSS, sob o regime de Stalin, o proletariado é a classe dirigente? Sob uma forma tão abstrata, semelhante afirmação é, efetivamente, suscetível de provocar indignação. Mas o problema é que as categorias abstratas, necessárias no processo de análise, não são totalmente convenientes para síntese que exige o maior caráter concreto possível. O proletariado soviético constitui a classe dirigente em um país atrasado, onde os bens materiais de primeira necessidade são produzidos em quantidade insuficiente. O proletariado da URSS domina em um país que não representa mais do que um doze avos da humanidade; o imperialismo domina os outros onze doze avos. A dominação do proletariado, já deformada pelo atraso e pobreza do país, está ainda duas ou três vezes mais deformada pela pressão do imperialismo mundial. O órgão de dominação do proletariado — o Estado — converte-se assim, em órgão da pressão do imperialismo (a diplomacia, o comércio exterior, as idéias e os costumes). Na escala histórica a luta pela dominação não se dá entre o proletariado e a burocracia, mas sim entre o proletariado e a burguesia mundial. Nesta luta a burocracia não é mais do que um mecanismo de transmissão. A luta não terminou. Apesar de todos os esforços que a camarilha moscovita desenvolve para demonstrar que representa uma segura força conservadora (cf. a política de Stalin na Espanha), o imperialismo mundial não dá sua confiança a Stalin; não lhe poupa as maiores humilhações e está disposto a derrubá-lo na primeira ocasião favorável. Hitler — aqui reside sua força — não faz mais do que exprimir, da forma mais conseqüente e franca a relação que liga a burguesia mundial e a burocracia soviética. A burguesia, seja fascista ou democrática, não pode satisfazer-se com as isoladas proezas contra-revolucionárias de Stalin; tem necessidade da contra-revolução completa nas relações de propriedade e de abertura no mercado russo. Enquanto não conseguir isto, considera o Estado soviético como um inimigo. E tem razão.

Nos países coloniais e semi-coloniais, o regime interno tem um caráter principalmente burguês. Mas a pressão do imperialismo, estrangeiro muda e altera de tal forma a estrutura econômica e política destes países, que a burguesia nacional (inclusive nos países politicamente independentes da América do Sul) não chega, mais do que parcialmente, à situação de classe dirigente. A pressão do imperialismo sobre os paises atrasados não muda, na verdade, seu caráter social fundamental, já que o sujeito e o objeto da pressão não representam mais do que níveis diferentes do desenvolvimento de uma só e mesma sociedade burguesa. No entanto, a diferença entre Inglaterra e Índia, o Japão e a China, os EUA e México é tão grande, que estabelecemos uma rigorosa distinção entre os países burgueses opressores e oprimidos e consideramos nosso dever defender os segundos contra os primeiros. A burguesia dos países coloniais e semi-coloniais representa uma classe semi-dirigente e semi-oprimida.

A pressão do Imperialismo sobre a União Soviética procura modificar a própria natureza da sociedade soviética. Esta luta — hoje pacífica, amanhã militar — atinge as formas de propriedade. Enquanto mecanismo de transmissão desta luta, a burocracia se apóia ora no proletariado contra o imperialismo, ora no imperialismo contra o proletariado, para aumentar sua própria força. Ao mesmo tempo, explora impiedosamente o seu papel de distribuidor dos magros bens materiais para garantir a sua prosperidade e poder. Pela mesma razão, a dominação do proletariado tem um caráter limitado, falseado, deformado. Dizer que o proletariado dominante em um único país atrasado e isolado, continua ainda sendo uma classe explorada, tem todo o fundamento. O imperialismo mundial representa a fonte da opressão, a burocracia funciona como mecanismo de transmissão desta opressão. Se há uma contradição entre os termos "classe dirigente e oprimida" esta contradição não surge dos erros do pensamento, mas sim de uma contradição na própria situação da URSS. É precisamente por isso que rejeitamos a teoria do socialismo em um só país.

Reconhecer na URSS um Estado operário — não o modelo deste Estado, mas sim uma deformação do modelo — não significa de forma alguma que seja concedida à burocracia soviética uma anistia teórica e política: pelo contrário, seu caráter reacionário aparece plenamente à luz da contradição, entre sua política anti-proletária e as exigências do Estado operário. Só esta forma de colocar o problema dá a verdadeira força motriz à nossa atividade dirigida a desmascarar os crimes da camarilha stalinista. Defender a URSS é não só lutar sem reservas contra o imperialismo, como também, preparar a derrubada da burocracia bonapartista.

A experiência da URSS sublinha a amplitude das possibilidades que o Estado operário contém, e o vigor de sua capacidade de resistência. Mas esta experiência demonstra também a potência da pressão exercida pelo capital e por sua agência burocrática, a dificuldade que o proletariado encontra para alcançar sua emancipação total e a importância que reveste a tarefa de educar e solidificar a nova Internacional no espírito de uma luta revolucionária implacável.

Coyoacán (México)


Inclusão 01/09/2009
Última alteração 14/04/2014