História da Revolução Russa

Léon Trotsky


O paradoxo da Revolução de Fevereiro


A insurreição tinha vencido. Mas a quem ela passou o poder arrancado à monarquia? Chegámos ao problema capital da Revolução de Fevereiro: como e porquê o poder se encontrou nas mãos da burguesia liberal?

Quando os sarilhos rebentaram, no 23 de Fevereiro, não prestaram importância nos círculos da Duma e da “sociedade” burguesa. Os deputados liberais e os jornalistas patriotas encontraram-se como habitualmente nos salões e discutiam juntos a questão de Trieste e de Fiume, e afirmavam de novo que a Rússia tinha necessidade absoluta dos Dardanelos. Enquanto que a oukase de dissolução da Duma tinha já sido assinada, uma comissão parlamentar discutia ainda, apressadamente, a transmissão dos serviços de abastecimento à municipalidade. Menos de douze horas antes do levantamento dos batalhões da Guarda, a Associação para as relações entre eslavos ouvia calmamente a leitura do seu relatório anual.

“Foi ao regressar a pé dessa reunião – escreveu um dos deputados – foi somente então que o silêncio angustioso e o aspecto desértico das ruas que, que habitualmente eram mais animadas.”

Um vazio angustioso fez-se à volta das velhas classes dirigentes, e os seus herdeiros de amanhã estavam apreensivos.

Por volta do dia 26, tornou-se evidente, tanto para o governo como para os liberais, que o movimento era sério. Nesse dia, houve entre os ministros e certos membros da Duma conciliábulos tendendo a um acordo, sobre os quais os liberais nunca mais tocaram no assunto. Protopopov, nas suas deposições, declarou que os líderes do bloco da Duma exigiam ainda, como habitualmente, a nomeação de novos ministros gozando da confiança pública:

“Esta medida, talvez, acalmará o povo.”

Mas o dia 26 marcou, como se sabe, uma pausa no desenvolvimento da revolução e o governo, por algumas horas, sentiu-se mais confortável. Quando Rodzianko se apresentou junto de Golytsine para o persuadir a demitir-se, o presidente do Conselho indicou sobre a mesa, a oukase da dissolução da Duma, já assinada por Nicolau, mas ainda sem data. Foi Golytsine quem datou o documento. Como o governo poderia tomar esta resolução no momento em que se desenvolvia a revolução? Sobre isso, a burocracia dirigente tinha já há muito tempo estabelecido a sua posição.

“Que nós estejamos com ou sem o bloco, pouco importa ao movimento operário. Pode-se vencer esse movimento por outros meios e, até ao momento, o ministério do Interior safou-se bem.”

Foi assim que falava Goremykine desde Agosto 1915. Por outro lado, a burocracia considerava que a Duma, se ela foi dissolvida, não se terminaria por nenhuma conclusão audaciosa. Foi assim que em Agosto de 1915 que o príncipe Chtcherbatov, ministro do Interior, no momento da discussão da dissolução da Duma, descontente, afirmou:

“É muito improvável que os deputados se decidam em se insubordinar. São, em maioria, cobardes, que não ariscam a pele.”

O príncipe não se exprimia com muita elegância, mas acertava em cheio, no fim de contas. Na sua luta contra a oposição liberal, a burocracia sentia-se assim em terreno firme.

Na manhã do dia 27, os deputados alarmados pela amplitude crescente dos acontecimentos, reuniram-se em sessão ordinária. Foi somente então que a maioria soube que a dissolução foi proclamada. A medida pareceu tanto mais inesperada que, ainda na véspera, houve conversações de conciliação.

“E no entanto – escreveu orgulhosamente Rodzianko – a Duma inclinou-se diante da lei, esperado ainda encontrar uma saída para esta situação complicada; ela não votou nenhuma resolução no sentido de recusar em dissolver-se ou do recurso à violência para se reunir.”

Os deputados juntaram-se em conferência privada, e confessaram a sua impotência. Chidlovsky, liberal moderado, lembrou mais tarde, com algum sarcasmo, que um certo Nekrassov, cadete da extrema esquerda, futuro associado de Kerensky, propôs

“estabelecer uma ditadura militar que devolveria o poder a um general popular”.

Entretanto, certos dirigentes do bloco progressista, que não assistiram a esta conferência particular, tentaram de maneira prática salvar a situação. Rogaram o grande-duque Miguel para vir a Petrogrado e, aí, propuseram exercer a ditadura, “forçar” o pessoal do governo a demitir-se e exigir do czar, pelo telefone, que ele “cedesse” um ministério responsável. No mesmo momento que se rebelavam os primeiros regimentos da Guarda, os líderes da burguesia faziam uma última tentativa para esmagar a insurreição com a ajuda de uma ditadura dinástica e, ao mesmo tempo, concordarem com a monarquia às despensas da revolução.

“A irresolução que manifestou o grande-duque – declarou Rodzianko, com um tom desolado – teve por consequência que se deixou escapar o momento favorável.”

A facilidade com a que os intelectuais radicais acreditavam no que eles desejavam, vê-se no testemunho de Sokhanov, socialista sem afiliação partidária, que começou neste período, a desempenhar, no palácio Tauride, um certo papel político.

“Informaram-me – escreveu nas suas amplas Memórias – o essencial que se produziu novamente na política nas primeiras horas desta inesquecível jornada: a oukase despedindo a Duma foi promulgada, e a Duma recusou disolver-se, elegendo um comité provisório.”

O que procede foi escrito por um homem que mal saía do palácio de Tauride e que tinha na mão os deputados notórios. Na sua História da Revolução, Miliokov, segundo Rodzianko, declarou categóricamente:

“Após uma serie de discursos inflamados, decidiu-se que os deputados não deixariam Petrogrado, mas não foi dito que, contrariamente à legenda que pretende, que os membros da Duma recusariam separar-se como representantes de uma instituição.”

Recusar separar-se, foi tomar, de facto, uma iniciativa, ainda que tardia. Não deixar a capital, era lavar as mãos e esperar para ver a volta que as coisas tomavam. A credulidade de Sokhanov desculpa-se portanto por certas circunstâncias atenuantes. O rumor segundo o qual a Duma teria tomado a decisão revolucionária de não obedecer à okase imperial tinha sido metida a circular, à pressa, pelos jornalistas parlamentares, no seu boletim de informação, a única publicação de então, no seguimento da greve geral. Ora, como a insurreição tinha vencido naquele dia, os deputados não se apressaram em refutar o erro cometido, encorajando assim na sua ilusão seus de esquerda: eles só restabeleceram a verdade após terem emigrado. O episódio é, parece, de importância secundária, mas é muito significativa. O papel revolucionário da Duma no dia 27 de Fevereiro na sua totalidade um mito nascido da credulidade política dos intelectuais radicais, satisfeitos e assustados pela revolução, incapazes de acreditar que as massas pudessem levar a questão a bom termo, e apressados em encontrar rapidamente apoio junto da burguesia censitária.

Entre as Memórias dos deputados que pertenceram então à maioria da Duma, foi felizmente conservado um relatório que nos diz como esta Duma acolheu a revolução. Segundo o príncipe Mansyriev, cadete de direita, não se encontrou, entre os deputados que se juntaram em grande número na manhã do dia 27, nenhum dos membros da direcção, nenhum dos líderes dos partidos, nenhum dos chefes de fila do bloco progressista: os ausentes já estavam informados sobre a dissolução da Duma e sobre a insurreição, e preferiram não se mostrarem o mais tempo possível; tanto mais que, precisamente nesse tempo, eles estavam provavelmente em conversações com o grande- duque Miguel sobre uma ditadura.

“No seio da Duma, a emoção era geral, o transtorno profundo, - disse Mansyriev. Nem se ouviam conversas animadas; eram somente suspiros e curtas respostas do género: “Cá estamos!” ou ainda confissões de temores pessoais.”

Tal é a narrativa de um deputado dos mais moderados, que deve suspirar mais profundamente que os outros.

Antes das duas horas da tarde, quando os líderes se viram forçados em ir à Duma, o secretário da direcção trouxe um alegre notícia, no entanto infundada:

“As desordens serão brevemente reprimidas, foram tomadas medidas.”

É possível que tenham compreendido “medidas” em vez de conversações sobre uma ditadura. Mas a Duma, estava esgotada, e esperava uma palavra decisiva do líder do bloco progressista. Ora, Miliokov declarou:

“Nós não podemos tomar, neste momento, nenhuma decisão, primeiro porque não sabemos qual é a extensão dos sarilhos, seguidamente porque ignoramos de qual lado alinha a maioria das tropas da guarnição, dos operários e das organizações sociais. É necessário recolher as informações precisas sobre tudo isso, e, seguidamente examinar a situação; agora, ainda é demasiado cedo.”

Às duas horas da tarde, dia 27 de Fevereiro, era ainda demasiado “cedo” para o liberalismo! “Recolher informações” significa lavar as mão e esperar a conclusão da luta.

Mas Miliokov não acabou o seu discurso, que aliás, ele tinha começado com a ideia de a terminar com nada, porque Kerensky que se precipitou na sala, muito comovido anunciou: uma imensa multidão de povo e de soldados, avançara a caminho do palácio de Tauride, e esta multidão tem intenção de exigir da Duma que ela tome o poder!... Um deputado radical sabe exactamente o que reclamam as potentes massas populares. Na realidade, é Kerensky em pessoa que exige, pela primeira vez, que a Duma tome o poder – esta Duma que, no fundo, espera sempre que a insurreição seja reprimida. A comunicação de Kerensky provoca “um sarilho geral” e há “olhares assustados”. Todavia, ele não teve tempo de terminar quando foi interrompido pelo oficial de diligências, que ocorreu assustado: destacamentos de soldados, ultrapassando outros, aproximaram-se do palácio, não sendo impedidos de entrar pelos homens do posto, o chefe da guarda seria gravemente ferido. Um minuto depois, aconteceu que os soldados entraram no palácio.

Mais tarde, deveria ser dito, nos discursos e nos artigos, que os soldados vieram saudar a Duma e prestar sarmento. Mas, pelo momento, todos foram invadidos por um pânico mortal. A vaga subiu-lhes à garganta. Os líderes sussurravam entre eles. É preciso ganhar tempo. Rodzianko apressou-se em submeter à votação a proposição que lhe sugeriram para constituir um comité provisório. Aclamações. Mas todos só tinham uma ideia: fugir dali rapidamente, não se tratava de forma nenhumas eleições! O presidente, tão aterrorizado como os outros, propôs que se confiasse ao Conselho dos decanos a tarefa de formar o comité. Novas aprovações tumultuosas do punhado de deputados que ficaram na sala: a maioria eclipsou-se. Foi assim que reagiu primeiro a Duma dissolvida pelo czar diante a insurreição vitoriosa.

Entretanto, a revolução, no mesmo edifício, mas num local menos decorativo, criava um outro órgão de poder. Os dirigentes revolucionários não tinham nada para inventar. A experiência dos sovietes de 1905 estavam gravados para sempre na consciência operária. A cada ascenso do movimento, mesmo no decurso da guerra, a ideia de constituir sovietes renascia quase automaticamente. E, ainda que a concepção do papel dos sovietes fosse profundamente diferente entre os bolcheviques e os mencheviques (os socialistas revolucionários não tinham opinião estabelecida), a própria forma desta organização estava, parece, fora de discussão. Os mencheviques, membros do comité das indústrias de guerra, que acabavam de tirar da prisão, encontraram-se no palácio de Tauride com os representantes activos do movimento sindical e da cooperação pertencentes à mesma ala direita, assim que como os parlamentares Tchkheidzé e Skobelev, - e eles constituíram logo ali um comité executivo provisório do Soviete dos deputados operários, o qual se completou durante o dia, principalmente com os antigos revolucionários que tinham perdido o contacto com as massas, mas mantinham “um nome”. O comité executivo, cooptando igualmente bolcheviques, convidou os operários a elegerem imediatamente os seus deputados.

A primeira sessão do Soviete foi marcada para a noite do mesmo dia, no palácio de Tauride. Ela abriu, às nove horas, e rectificou a composição do executivo e designou, além disso, representantes oficiais de todos os partidos socialistas. Mas não se tratava aí do verdadeiro significado desta primeira assembleia dos representantes do proletariado vencedor na capital. Os delegados dos regimentos insurgentes vieram à sessão exprimir as sua felicitações. Entre eles, haviam os soldados analfabetos, marcados pela insurreição e que não tinham papas na lingua. Mas eles encontravam precisamente as palavras que nenhum outro tribuno possuía.

Foi uma das cenas das mais patéticas de uma revolução que acabava de sentir a sua força, o despertar das massas sem número, a imensidade das tarefas a realizar, o orgulho dos seus sucesso, uma alegre palpitação do coração ao pensar num dia seguinte que devia ser ainda mais radioso que este dia. A revolução ainda não tem ainda ritos, a rua está ainda cheia de fumo, as massas não sabem ainda cantar o seu novo repertório, a sessão desenrola-se na desordem, com a potência das águas vernais que transbordam, o Soviete abafou-se pelo entusiasmo. A revolução é já potente, mas ainda pueril na sua ingenuidade.

Nesta primeira sessão foi decidido unir a guarnição com operários num só Soviete de deputados e soldados. Quem, primeiro, propôs esta resolução? É provável que ela viesse de diversos lados, como um eco da fraternização entre operários e soldados, que, nesse dia, tinha decidido da sorte da revolução. Não se pode, todavia, dispensar de assinalar que, segundo Chliapnikov, os sociais patriotas protestavam contra a intromissão da tropa na política.

A partir do momento onde foi constituido, o Soviete, pelo intermédio do seu comité executivo, começou a agir como o poder governamental. Ele elegeu uma comissão provisória para os abastecimentos e o cargo de se ocupar de maneira geral das necessidades dos insurrectos e da guarnição. Organizou o seu estado-maior revolucionário provisório (tudo, nesses dias, foi declarado provisório) que falámos precedentemente. Para retirar aos funcionários do antigo regime a faculdade de dispor dos recursos financeiros, o Soviete decidiu que os corpos da guarda revolucionária ocupassem logo o Banco do Império, a Tesouraria, a Moeda e os serviços de fabricação de títulos do tesouro. As tarefas e as funções aumentaram constantemente sob a pressão das massas. A revolução encontrou o seu centro incontestado. Os operários, os soldados e logo os camponeses não se dirigiram senão ao Soviete, que tornou-se, aos seus olhos, o ponto de concentração de todos as esperanças e de todos os poderes, a incarnação mesmo da revolução. Mas os representantes das classes possuidoras virão também pedir ao Soviete, mesmo rangendo os dentes, uma protecção, directivas, soluções a conflitos.

Todavia, desde das primeiras horas da vitória, enquanto que o novo poder revolucionário se constituía com rapidez fabulosa e uma força irresistível, os socialistas que se encontravam à cabeça do Soviete lançavam à volta deles olhares inquietos, procurando um verdadeiro “patrão”. Eles consideravam coisa natural que o poder passasse para a burguesia. Aqui forma-se o nó político principal do novo regime: por um lado, o fio conduz à sala do Executivo dos operários e dos soldados; por outro, ele leva ao centro dos partidos burgueses.

O conselho dos decanos da Duma, pelas três horas, no momento que a vitória na capital já estava decidida, eleito um “Comité provisório dos membros da Duma”, constituido com elementos dos partidos do bloc progressista, ao qual se juntou Tchkeidzé e Kerensky. Tchkeidzé recusou. Kerensky hesitava. O nome do comité indicava, em termos circunspectos, que não se tratava de um órgão oficial da Duma do Império, que se formava somente, a título privado, um órgão da conferência dos membros da Duma. Os líderes do bloco progressista só meditaram somente numa questão até ao fim: como escapar às responsabilidades e manter as mãos livres?

A tarefa do Comité foi determinada em termos ambiguos, cuidadosamente escolhidos:

“restabelecer a ordem e as relações com as instituições e as personalidades”.

Nem uma palavra sobre a natureza da ordem que esses senhores entendem restabelecer, sobre as instituições com as quais eles desejam manter relações. Eles ainda não estendem a mão para pele do urso...possivelmente o animal ainda não estava morto, mas gravemente ferido!... Foi somente às onze horas da noite, do dia 27 de Fevereiro, quando, segundo a confissão de Miliokov, “o movimento revolucionário manifestou-se com toda a sua amplitude”, que “o comité provisório decidiu dar mais um passo e de tomar o poder que deixava escapar o governo”. Imperceptívelmente, o comité dos membros da Duma transformou-se em comité da Duma: quando se quer conservar as aparências jurídicas de uma sucessão do poder, não há melhor meio senão falsear.

Mas Miliokov calou-se sobre o mais importante: os líderes do Comité executivo que se formou durante o dia tinham arranjado tempo de se apresentarem ao Comité provisório e de lhe persuadir a tomar o poder. Esta pressão amigável devia ter consequências. Seguidamente, Miliokov explicou a decisão do Comité da Duma dizendo que o governo ter-se-ia aprontado a marchar contra os insurrectos das tropas seguras e que,

“nas ruas da capital, poder-se-ia temer verdadeiras batalhas”.

Na realidade, o governo não dispunha mais de tropas, era já tinha sido derrubado. Rodzianko escreveu mais tarde que

“se a Duma tinha recusado tomar o poder, ela teria sido detida e massacrada completamente pelas tropas revoltadas, e que o poder teria caído imediatamente nas mãos dos bolcheviques.”

Há aí, seguramente, um exagero absurdo, completamente no espírito do honrado cavalheiro; mas ela traduz sem dúvida o estado de espírito da Duma que, vendo-se atribuir o poder, considerou-se como políticamente violada.

Em tal situação, a solução não era fácil. As hesitações de Rodzianko eram particularmente movimentadas, que suscitavam outras:

“O que vai acontecer? É uma revolta ou não?”

Um deputado monárquico, Chulguine, deu, segundo as suas palavras, esta resposta à Rodzianko:

“Não há nenhuma revolta. Tomai o poder na qualidade de sujeito fiel...Se os ministros fugiram, alguém deve substituí-los...Pode haver duas saídas: ou tudo acabará por se arranjar, o soberano designará um novo governo, nós remetemos-lhe o poder. Se isso não resultar, se nós não recolhemos o poder, este cairá nas mãos de gente já eleita por uma certa canalha, nas fábricas...”

Inútil de citar as bestialidades pronunciadas pelo cavalheiro reaccionário contra os operários: a revolução esmagou esses senhores. A moral é clara: se a monarquia ganhou, nós estaremos com ela; se a revolução é vencedora, despachemos-nos a elaborá-la.

A consulta demorou. Os líderes democratas esperavam, muito agitados, uma solução. Enfim, do gabinete de Rodzianko, saiu Moliokov. Tinha um ar solene. Avançando para a delegação do Soviete, declarou:

“Há uma decisão, tomamos o poder...”

E, nas suas Memórias, Sokhanov escreveu com entusiasmo:

“Não perguntei o que significava esse “nós”. Não pedia mais nada. Mas, segundo a expressão corrente, sentia em todo o meu ser a nova situação. Sentia-me como o barco da revolução, balançava nesse tempo, ao grado dos elementos furiosos, vinha içar as velas, encontrar a estabilidade e a regularidade dos movimentos na temível tempestade que o sacudia.”

Que termos refinados foram utilizados para confessar prosaicamente o servilismo da democracia pequeno-burguesa diante do capitalismo liberal! E que tremendo erro de perspectiva política: o abandono do poder aos liberais não dará nenhuma estabilidade ao barco do Estado, e, ao contrário, a partir desse dia, tornar-se-à para a revolução uma razão de impotência, de caos formidável, de sobreexcitação das massas, de debandada da frente e, a seguir, de um extremo empenhamento na guerra civil.

Se olharmos para os séculos passados, a passagem do poder para as mãos da burguesia parece seguir uma regra definida: em todas as revoluções precedentes, nas barricadas lutavam operários, pequenos camponeses, pequenos artesãos, um certo número de estudantes; os soldados tomavam partido; a seguir, a burguesia bem abastecida, que tinha prudentemente observado os combates de barricadas pela janela, recolhia o poder. Mas a Revolução de Fevereiro de 1917 diferenciava-se das revoluções precedentes pelo carácter incomparavelmente mais elevado e pelo alto nível político da classe revolucionária, pela desconfiança hostil dos insurrectos em relação à burguesia liberal e, em consequência, pela criação, no próprio momento da vitória, de um novo órgão de poder revolucionário: um Soviete apoiando-se sobre a força armada das massas. Nessas condições, remeter o poder à burguesia isolada politicamente e desarmada pede uma explicação.

Antes de tudo, é preciso considerar de perto as relações de forças que se estabeleceram, resultado da insurreição. A democracia soviética não estava obrigada pelas circunstâncias objectivas a renunciar ao poder, em proveito da alta burguesia? A própria burguesia nem pensava nisso. Já sabemos que, longe de esperar que revolução lhe daria o poder, a burguesia previa desta última um perigo de morte para toda a sua situação social.

“Os partidos moderados – escreveu Rodzianko – não somente não desejavam uma revolução: eles temiam-na simplesmente. O partido da liberdade do povo (“cadetes)”, nomeadamente, como esquerda dos grupos moderados e, em consequência, tendo mais pontos de contacto com os partidos revolucionários do país, estava mais que qualquer outro preocupado diante da catástrofe iminente.”

A experiência de 1905 lembrava de maneira demasiado convincente aos liberais que uma vitória dos operários e dos camponeses poderia revelar-se não menos perigosa para a burguesia que para a monarquia. A marcha da insurreição de Fevereiro, segundo as aparências, confirmava somente esta previsão. Uniformes que fossem, sob vários pontos de vista, as ideias política das massas revolucionárias, nesses dias, a linha de separação entre trabalhadores e a burguesia foi contudo traçada.

Stankevitch – docente na Universidade, que tinha conhecimentos nos círculos liberais, amigo e não inimigo do bloco progressista, caracterizou da seguinte maneira o estado de espírito desses meios no dia após a insurreição que eles não com seguiram prevenir:

“Oficialmente, eles triunfariam, eles celebrariam a revolução, gritavam vivas em honra dos combatentes da liberdade, cobriam-se de fitas vermelhas, marchavam sob as bandeiras vermelhas... Mas, no fundo, e a sós, eles estavam amedrontados, tremiam e sentiam-se prisioneiros do elemento hostil que se metia por caminhos desconhecidos. Nunca esquecerei a cara de Rodzianko, grande e gordo proprietário, grande personagem, quando, mantendo um ar de altiva dignidade, mas também, com os seus traços pálidos, as marcas de um profundo sofrimento e do desespero, atravessava a multidão de soldados, descontraídos nos corredores do palácio de Tauride. Oficialmente, dizia-se que “os soldados tinham vindo apoiar a Duma na luta contra o governo”, mas, de facto, a Duma tinha sido dissolvida, desde dos primeiros dias. E encontrar-se-ia a mesma expressão sobre todos os rostos, entre os membros do Comité provisório da Duma e nos meio que a rodeavam. Diz-se que representantes do bloco progressista choraram, quando chegaram a casa, em cenas de histeria causadas pelo desespero e impotência.”

Esse testemunho vivo tem mais valor que todas as outras pesquisas sociológicas sobre as relações entre as forças. Segundo a narrativa de Rodzianko, este tremia de indignação impotente ao ver os soldados desconhecidos, “obedecendo a ordens dadas não se sabe por quem”, procediam à prisão de altos dignitários do antigo regime e levavam-os à Duma. O cavalheiro encontrava-se assim, de certa maneira, responsável pela prisão de de pessoas com as quais não estava sempre de acordo mas que era pessoas do seu meio. Consternado por essas medidas “arbitrárias”, Rodzianko convocou ao seu gabinete Chtcheglovitov, que tinham prendido, mas os soldados recusaram-se a remetê-lo ao dignitário que eles detestavam.

“Como tentava dar provas de autoridade – escreve Rodzianko – os soldados cercavam o prisioneiro mostrando-lhe suas armas, com um ar provocante e insolente; seguidamente, Chtcheglovitov foi levado não sei para onde.”

Poder-se-ia confirmar de maneira mais clara Stankevitch, afirmando que os regimentos vindos, dizia-se, apoiar a Duma, revogavam a realidade?

Que o poder, desde da primeira hora, pertenceu ao Soviete, os membros da Duma podiam somente permitirem-se sobre esse assunto menos ilusões que ninguém. Chidlovsky, deputado outubrista, um dos chefes do bloco progressista, escreveu nas sua Lembranças:

“O Soviete tomou possessão de todos os centros de correios e do telegrafo, de todas as gares de Petrogrado ou ainda das tipografias, de maneira que, sem autorização, tivesse sido impossível enviar um telegrama ou abandonar Petrogrado ou mesmo de imprimir um manifesto.”

Esta característica sem equívocos das relações de força só precisam de serem esclarecidas sob um aspecto: a “tomada” dos correios e telégrafos, caminhos de ferro, tipografias, etc., pelo Soviete, significa somente que os operários e os empregados dessas empresas não queriam subornar-se a ninguém, excepto ao Soviete.

A queixa de Chidlovsky ilustra-se melhor por um episódio que se desenrolou quando as negociações sobre o poder entre os líderes do Soviete e da Duma. A reunião geral foi interrompida por um comunicado urgente informando de Pskov, onde o czar se encontrava agora, após ter deambulado sobre as linhas de caminho de ferro, quando Rodzianko foi chamados à estação de telegrafo. O todo poderoso presidente da Duma declarou que não iria sozinho. Que os Senhores deputados operários e soldados me forneçam uma escolta ou venham comigo; senão serei preso ao chegar ao telegrafo... Bem entendido! - continuou, irritando-se. - Vocês têm agora o poder e a força. Podem naturalmente mandarem prender-me... Talvez nos prendam todos! Não sabemos!” Isto passou-se no primeiro de Março; apenas quarenta e oito horas passadas desde que o comité provisório, à cabeça do qual se encontrava Rodzianko, tinha “tomado” o poder.

Como, entretanto, em tais circunstâncias, os liberais se encontravam no poder? Quem (e como?) os tinham habilitado a formar esse governo saído de uma revolução que eles temiam, contra a qual eles tinham agido, que procuraram esmagar, que se tinha feito com tanta resolução e ousadia que o Soviete dos operários e soldados, saído da insurreição, mostrava-se naturalmente e incontestavelmente mestre da situação?

Escutemos agora o outro lado, o que abandonou o poder. Sokhanov escreveu sobres os dias de Fevereiro:

“O povo não estava de forma nenhuma voltado para a Duma, ele não se interessava por ela e não sabia que fazer dela – a título político ou técnico – o centro do movimento.”

Essa confissão é tanto mais digna de atenção que o autor, nas primeiras horas, vai esforçar-se para que o poder seja transmitido a um governo da alta burguesia. “Podemos-nos exprimir mais categóricamente? Uma situação política poderia ser mais clara? E, no entanto, Sokhanov, em plena contradição com a situação e com ele mesmo, declarou logo:

“O poder que acaba de substituir o czarismo não deve ser burguês...É sobre esta dedução que é preciso guiarmo-nos. De outro jeito, a insurreição falharia e a revolução perder-se-ia.”

A revolução perdida por causa de um Rodzianko!

A questão das relações de forças entre as forças sociais é aqui substituida por um esquema concebido à priori e na terminologia convencional: aí precisamente está a quinta-essência do doutrinário dos intelectuais. E veremos mais longe que esse doutrinário não tinha nada de platónico: ele substituía uma função política perfeitamente realista, ainda que ele tivesse os olhos vendados.

Não foi por acaso que citámos Sokhanov. Neste primeiro período, o impostor do comité executivo não era o seu presidente, Tchkheidzé, honesto e provinciano limitado, mas Sokhanov, o homem menos adequado, digamos, de uma maneira geral para a liderança de uma revolução. Meio populista, meio marxista, mais observador consciencioso que homem político, mais jornalista que revolucionário, mais pensador que jornalista, ele não era capaz de manter uma concepção revolucionária até ao momento que esta concepção deveria ser aplicada. Internacionalista passivo durante a guerra, decidiu desde do primeiro dia da revolução, que se deveria logo que possível entregar o poder e a guerra à burguesia. Como teórico, pelo menos por necessidade, senão pela sua capacidade de juntar as duas pontas, ele era superior aos outros membros do comité executivo de então. Mas a sua principal força consistia mesmo assim no facto que ele traduzia em linguagem doutrinária os traços orgânicos desta irmandade de gente de toda a especie, portanto homogénea: falta de fé nas suas próprias forças, medo das massas, atitude arrogante, mas deferente em relação à burguesia. Lenine dizia de Sokhanov que ele era um dos melhores representantes da pequena burguesia. E é o que se pode dizer de lisonjeiro sobre ele.

Não se deve esquecer que se trata aqui, antes de mais, da pequena burguesia de um novo tipo capitalista: empregados da indústria, do comércio, da banca, funcionários do capital por um lado, e da burocracia operária por outro lado, isto é desse novo terceiro estado em nome do qual o social democrata alemão bem conhecido Eduard Bernstein, no fim do século passado, tinha empreendido a revisão da concepção revolucionária de Marx. Para dizer como a revolução cedeu o poder à burguesia, devemos introduzir um elo intermediário no seguimento dos factos políticos: os pequenos burgueses democratas e socialistas do género de Sokhanov, os jornalistas e os políticos de um novo terceiro estado, que ensinavam às massas que a burguesia é a inimiga, mas temiam sobretudo subtrair as massas à autoridade deste inimigo. A contradição entre o carácter da revolução e o de um governo que daí resultou explica-se pelo carácter contraditório do novo meio pequeno burguês que se colocou entre as massas revolucionárias e a burguesia capitalista. No decurso dos acontecimentos ulteriores à revolução, o papel político da democracia pequena burguesa novo género nos será completamente desvendada. Previamente, limitemos-nos em dizer algumas palavras.

Na insurreição, é a minoria da classe revolucionária que intervém directamente e encontra a sua força no apoio ou, pelo menos, as simpatias da maioria. A maioria activa a e combativa, sob o fogo do inimigo, avança inevitavelmente os seus elementos mais revolucionários e os mais abnegados. É sobretudo natural que, nos combates de Fevereiro, os operários bolcheviques tenham estado nos postos avançados. Mas a situação muda com a vitória, quando ela encontra a sua estabilidade política. Nas eleições para a constituição de órgãos e instituições da revolução vitoriosa são convocada e afluem as massas infinitamente mais numerosas que as que combateram de armas na mão. Isto diz respeito não somente às instituições gerais da democracia,tais que as Dumas municipais, os zemstvos, ou mais tarde a Assembleia constituinte, mas também os órgãos de castas tais como os sovietes de deputados operários.

A esmagadora maioria dos operário, mencheviques, socialistas revolucionários e sem partido, apoiaram os bolcheviques no momento onde a luta contra o czarismo se tornou uma luta de corpo a corpo. Mas só houve uma pequena maioria de operários que compreenderam que os bolcheviques se distinguiam dos outros partidos socialistas. Todavia, todos os trabalhadores traçaram uma clara linha de demarcação entre eles e a burguesia. Foi o que determinou a situação política após a vitória. Os operários elegeram socialistas, isto é, os que estavam não somente contra a monarquia, mas também contra a burguesia. Eles quase que não diferenciavam entre os três partidos socialistas. Mas como os mencheviques e os socialistas revolucionários dispunham de quadros intelectuais incomparavelmente mais consideráveis que se juntavam a eles vindos de todos os lados, obtendo assim de uma vez uma reserva formidável de agitadores, as eleições, mesmo nas fábricas e oficinas, deram-lhes uma preponderancia formidável.

No mesmo sentido, mas com uma força incalculável, ia a pressão da tropa despertada. No quinto dia da insurreição, a guarnição de Petrogrado seguiu os operários. Após a vitória, ela foi chamada a eleger sovietes. Os soldados deram voz e confiança aos que se pronunciavam contra os oficiais monárquicos, pela revolução, e souberam dizê-lo em voz alta: estes últimos eram voluntários, escriturário da tropa, oficiais da saúde, jovens oficiais do tempo da guerra recrutados entre os intelectuais, pequenos empregados da administração militar, isto é, a camada inferior do mesmo “novo terceiro Estado”. Quase todos inscreveram-se desde Março no partido socialista revolucionário que, pela inconsistência do seu pensamento, respondia melhor à situação social intermediária assim como à insuficiência política deles. Os representantes da guarnição foram, por consequência, muito mais moderados e mais burgueses que a própria massa dos soldados. Esta, todavia, não via a diferença, a qual só se devia manifestar após a experiência dos meses seguintes.

Os operários, por outro lado, queriam tornar sua ligação com os soldados tão estreita que possível para consolidar uma aliança comprada com sangue e armar de forma mais segura a revolução. E como, em nome do exército, falavam sobretudo os socialistas revolucionários da última hora, a autoridade desse partido e dos seus aliados, os mencheviques, só podiam aumentar aos olhos dos operários. Foi assim que, nos sovietes, se afirmou a preponderancia dos dois partidos conciliadores. Basta dizer que, mesmo no Soviete do bairro de Vyborg, o papel dos dirigentes pertenceu nos primeiros tempos aos operários mencheviques. O bolchevismo, nesse período, fervia somente nas profundidades da revolução. Os oficiais do bolchevismo, mesmo no seio do Soviete de Petrogrado, representavam uma minoria que, aliás, não definia muito claramente a sua tarefa.

Foi assim que se constituiu o paradoxo da Revolução de Fevereiro. O poder está nas mãos dos socialistas democratas. Eles não o detêm de forma nenhuma por acaso, por um golpe de mão à moda de Blanqui; não, o poder foi-lhe abertamente dado pelas massas populares vitoriosas. Essas massas não somente recusaram a sua confiança à burguesia, o seu apoio, mas elas não a diferenciavam da nobreza ou da burocracia. Elas meteram as suas armas exclusivamente à disposição dos sovietes. Ora, a única preocupação dos socialistas que acederam facilmente à cabeça dos sovietes era de saber se a burguesia, politicamente isolada, odiada pelas massas, inteiramente hostil à revolução, consentiria em recolher o poder das suas mãos. O seu consentimento deve ser adquirido a qualquer preço; mas como a burguesia não pode evidentemente renunciar ao seu programa, somos nós, “socialistas” que convêm que desistamos do nosso: calarmo-nos sobre a monarquia, sobre a guerra, sobre a questão agrária, com a condição que a burguesia aceite a prenda do poder.

Entregando-se a esta operação, os “socialistas”, como eles riam deles próprios, continuam a denominar a burguesia de outra forma salvo de inimigo de classe. É com um ceremonial quase religioso que se celebra um acto de provocação sacrilégio. Uma luta de classe levada até ao fim visa a conquista do poder. A faculdade essencial de uma revolução é de levar a luta de classe até ao fim. Uma revolução é precisamente uma luta directa pela tomada do poder. Ora, nós, “socialistas” preocupamo-nos não de arrancar o poder ao inimigo de classe, (dizem) que, portanto, não o detém e não o saberia tomar pelos seus próprios meios, mas de lhe entregar a qualquer preço esse poder. Não é um paradoxo? Parece tanto mais impressionante que a experiência da Revolução alemã de 1918 ainda não existia e que a humanidade não tinha ainda sido testemunha da prodigiosa operação do mesmo género, com sucesso, que realizou o “novo terceiro Estado” que dirige a social democracia alemã.

Como é que os conciliadores explicam a sua conduta? Eles tinham primeiro um argumento de doutrinários: a revolução sendo burguesa, os socialistas não devem comprometer-se ao tomar o poder; - que a burguesia responda por ele própria! Foi com um tom muito intransigente. Mas, na realidade, a pequena burguesia escondia sob o exterior da intransigência as suas lisonjas diante da potência da riqueza, da instrução, do censo. Os pequenos burgueses reconheciam à alta burguesia uma especie de direito primordial a tomar o poder, independentemente das relações de forças. Foi pouco mais ou menos, no fundo, o gesto instintivo do pequeno comerciante ou do modesto professor que, na gare ou no teatro, apaga-se respeitosamente para deixar passar...Rothschild! Os argumentos dos doutrinários servem de compensação à consciência que eles tinham da sua própria nulidade. Dois meses mais tarde, quando se tornou evidente que a burguesia não chegaria a reter pelos seus próprios meios o poder que lhe tinha sido cedido, os conciliadores rejeitaram sem dificuldade os seus preconceitos “socialistas” e entraram num governo de coligação. Não para expulsar a burguesia, mas para a salvar. Não contra a vontade desta, mas a convite que tinha o tom de uma ordem: a burguesia ameaçava os democratas de lhe jogar o poder à cabeça, em caso de recusa.

O segundo argumento invocado para rejeitar o poder foi, teve a aparência, de ordem prática, sem ser, no fundo, mais séria. Sokhanov, que já conhecemos, invocava antes de tudo “a dispersão” da Rússia democrática: “Nas mãos da democracia não se encontrava então organizações sólidas e influentes, nem partidos, nem sindicatos, nem municipalidades.” Isso tinha um tom de troça! Sobre os sovietes de deputados operários e soldados, nem uma palavra é pronunciada por um socialista que fale em nome dos sovietes. E no entanto, graças à tradição de 1905, os sovietes surgiram, de qualquer modo, da terra e tornaram-se incomparavelmente mais potentes que todas as outras organizações que tentaram mais tarde rivalizar com eles (municipalidades, cooperativas, parcialmente os sindicatos). No que diz respeito à classe camponesa, a força dispersa pela sua própria natureza, ela era organizada, mais do que ela tinha alguma vez sido, em consequência da guerra e da revolução: a guerra tinha reunido os camponeses na tropa e a revolução tinha dado ao exército um carácter político! Pelo menos oito milhões de camponeses reunidos em companhias e em esquadrões, os quais constituíam imediatamente suas delegações revolucionárias por intermédio dos quais, a qualquer momento, sob apelo telefónico, poderiam constituir-se. Isso equivaleria à dispersão?

Pode-se seguramente dizer que no momento onde se decidia a questão do poder, a democracia ainda não sabia qual seria a atitude da tropa na frente. Nós não levantaremos a questão de saber se havia o mais pequeno motivo de temer ou de esperar que os soldados da frente, excedidos pela guerra, quisessem apoiar a burguesia imperialista. Basta constatar que esta questão fosse integralmente resolvida nos dois ou três primeiros dias que os conciliadores empregaram justamente a preparar nos corredores um governo burguês. “A insurreição estava, no 3 de Março, felizmente terminada”, confessou Sokhanov. Embora todo o exército tivesse aderido aos sovietes, seus líderes afastavam o poder com toda a sua força: eles temiam-o tanto mais que ele se concentrava completamente entre as suas mãos.

Mas então porquê? Como é que os democratas, os “socialistas” que se apoiavam directamente sobre tais massas humanas que não conheceu nunca nenhuma democracia na história, e ainda sobre massas providas de uma experiência considerável, disciplinada, armadas, organizadas em sovietes – como esta democracia poderosa, inquebrável tivesse parecido, poderia temer a tomada do poder? Este enigma, subtil à primeira vista, se explica pelo facto que a democracia não tinha confiança no seu próprio apoio, apreendiam as massas, duvidavam da solidez da confiança dada a esta, e, sobretudo, temia a “anarquia”,isto é receava, após ter recolhido o poder, tornar-se, no exercício da autoridade, o instrumento do que se chama os elementos desencadeados. Noutros termos, a democracia não se sentia convidada a tomar a liderança do povo, no momento do seu ascenso revolucionário, mas designada como ala esquerda da ordem burguesa, uma especie de antena desta estendida do lado das massas. Ela se dizia e considerava-se mesmo socialista para esconder não somente às massas, mas aos seus próprios olhos, seu papel efectivo: se ela não se excitava, ela não pôde jogar esse papel. Assim se explica o paradoxo fondamental da Revolução de Fevereiro.

Na noite do primeiro de Março, os delegados do comité executivo, Tchkheidzé, Stieklov, Sokhanov e outros foram à sessão do comité da Duma para discutir as condições nas quais o novo governo seria apoiado pelos sovietes. O programa dos democratas passava completamente em silêncio os problemas da guerra, da proclamação da República, da repartição das terras, do dia de oito horas, e concluía uma única reivindicação: a da liberdade de agitação para os partidos de esquerda. Belo exemplo de desinteresse, para os povos e o séculos: os socialistas que tinham nas mãos todo o poder,e de quem dependia completamente a recusa ou cedência de outras liberdades de agitação, cediam o poder aos seus inimigos de classe “sob as condições que estes prometiam... a liberdade de agitação! Rodzianko não ousava ir à estação de telegrafo e dizia a Tchkhei

dzé e a Sokhanov: “Vocês têm o poder, podem calar-nos todos.” Tchkheidzé e Sokhanov responderam-lhe; “Tomai o poder, mas não nos prenda por ter feito propaganda!” Se estudasse-mos as negociações dos conciliadores com os liberais e, em suma, todos os episódios das relações mútuas entre a ala esquerda e a ala direita do palácio de Tauride, nesses dias, dir-se-ia que, sob a cena gigantesca onde se desenrolava um drama popular histórico, um grupo de actores provinciais, aproveitando um canto livre e de uma pausa, desempenhava uma comédia musical por travestis interpostos.

Os líderes da burguesia, devemos prestar-lhes essa homenagem, não esperavam nada de igual. Teriam temido talvez menos a revolução se tivessem calculado que os seus dirigentes adoptariam uma tal politica. Na verdade, mesmo nesse caso, eles teriam cometido um erro de cálculo, mas logo de forma comum com estes últimos. Temendo portanto que a burguesia não consentisse tomar o poder, mesmo nas condições propostas, Sokhanov lançou um ultimato ameaçador: “Os elementos desencadeados podem ser dominados por nós – ou por ninguém... Só há uma saída: que vocês aceitem as nossas condições.” Noutros termos: “Aceitai um programa que é também o vosso. Mas nós prometemos-vos, em contrapartida, de refrear as massas que nos deram o poder.” Pobres domadores de elementos!

Miliokov foi surpreendido. “Ele nem sonhava – escreve Sokhanov – em esconder a sua satisfação e sua agradável surpresa. Mas quando os delegados do Soviete, para dar às suas palavras mais peso, acrescentaram que as suas condições eram “definitivas”, Miliokov tornou-se sentimental e encorajou-os por uma frase: “Sim, compreendi-os bem e reflecti muito e pensei como o nosso movimento operário tinha avançado desde 1905...” Foi sobre este mesmo tom indulgente que os crocodilos da diplomacia do Hohebzollern se entretinham, em Brest-Litovsk, com os delegados da Rada ucraniana, homenageando a maturidade de homens de Estado antes de os engolir. Se a democracia soviética não foi engolida pela burguesia, não foi por mérito de Sokhanov, nem por culpa de Miliokov.

A burguesia recebeu o poder nas costas do povo. Ela não dispõe de qualquer apoio nas classes trabalhadoras. Mas, com o poder, ela obteve em segunda mão qualquer coisa como um apoio: os mencheviques e os socialistas revolucionários, incitados pelas massas, remetiam por sua própria iniciativa um mandato de confiança à burguesia. Se considerar-mos esta operação numa perspectiva enviesada de uma democracia formal, ter-se-á o quadro das eleições em duas etapas, nas quais os mencheviques e os socialistas revolucionários tomam o papel técnico de intermediários, isto é de eleitores dos cadetes. Se consideramos a questão do ponto de vista politico, devemos dizer que os conciliadores traíram a confiança das massas ao apelar ao poder daqueles contra os quais eles próprios tinham sido eleitos. Enfim, de um ponto de vista social mais profundo, a questão coloca-se assim: os partidos pequeno burgueses que, nas condições da vida quotidiana, se mostram extraordinariamente pretenciosos e satisfeitos com eles próprios, ressentiram, logo que a revolução os levou à cimeira do poder, ansiedade diante a sua própria insuficiência e se apressaram a passar o leme aos representantes do capital. Nessa acção vacilante manifestaram-se de repente a temível inconsistência do novo terceiro Estado e a sua humilhante dependência diante da alta burguesia. Compreendendo ou simplesmente pressentindo que, aliás, eles não estariam em condições de manter por muito tempo o poder, que eles deveriam em breve ceder, seja à direita, seja à esquerda, os democratas concluíram que era preferível entregá-lo no próprio dia aos sólidos liberais, em vez de ser no dia seguinte aos representantes extremistas do proletariado. E assim elucidado, o papel dos conciliadores, qualquer que seja o seu condicionamento social, não deixa de ser uma traição para com as massas.

Tendo confiado nos socialistas, os operários e os soldados viram-se, de uma maneira imprevista por eles próprios, politicamente expropriados. Ficaram desconcertados, alarmaram-se, mas não encontraram logo saída. Seus próprios eleitos atordoaram-os com argumentos aos quais eles não tinham qualquer resposta pronta, mas que contradiziam todos os seus sentimentos e os seus anseios. As tendências revolucionárias das massas não correspondiam mais, no momento da insurreição de Fevereiro, às tendência conciliadoras dos partidos pequenos burgueses. O proletariado e os camponeses votavam pelo menchevique e o socialista revolucionário, não como para conciliadores, mas como para inimigos do czar, do proprietário, do capitalista. Ao votar por estes últimos, eles estabeleceram uma divisória entre eles próprios e os seus objectivos. Eles já não podiam avançar mais sem bater na parede que eles mesmos tinham erigido sem a derrubar. Tal foi o surpreendente quiproquó nas relações de classe que revelou a Revolução de Fevereiro.

Ao paradoxo fundamental se juntou imediatamente outro. Os liberais consentiram em recolher o poder das mãos dos socialista somente com a condição que a monarquia aceitaria o poder das suas próprias mãos.

Enquanto que Gotchokov, com o monárquico Cholguine, que o leitor já conhece, foi a Pskov para salvar a dinastia, o problema de uma monarquia constitucional tornou-se o ponto central das negociações entre os dois comités do palácio de Tauride. Miliokov esforçou-se em demonstrar aos democratas que lhe traziam o poder na palma da mão, que os Romanov não seriam mais um perigo, que naturalmente, Nicolau devia ser eliminado, mas que o czarevitch Alexis, sob a regencia de Miguel, poderia muito bem assegurar a prosperidade do país: “Um é uma criança doente, o outro um imbecil.” Juntemos a isso a característica dada por um monárquico liberal, Chidlovsky, ao candidato czar: “Miguel Alexandrovitch evitava de qualquer maneira de se intrometer nos assuntos do Estado, qualquer que ele fosse, e consagrar-se-ia inteiramente aos desportos hípicos.” Surpreendente recomendação, sobretudo se se quisesse apoiá-la diante das massas. Quando da fuga de Luís XVI para Varennes, Danton declarou pretensamente, no clube dos Jacobins, que um homem que tinha o espírito fraco não podia mais ser um rei. Os liberais russos acreditavam contrariamente que um monarca de espírito fraco faria o mais belo ornamento do regime constitucional. Aliás, foi um argumento que não foi forçado, calcado sobre a psicologia dos idiotas da esquerda, e foi mesmo assim demasiado grosseiro para eles. Sugeriu-se, nas largas esferas da burguesia liberal, que Miguel Alexandrovitch era um “anglomane”, sem precisar se a sua anglomania dizia respeito as corridas de cavalos ou o parlamentarismo. O essencial era ter um “símbolo familiar do poder”, falta do qual o povo imaginar-se-ia que o poder não existia mais.

Os democratas escutavam, admiravam solenemente e aconselhavam … a proclamação da República? Não, somente não antecipar sobre esta questão. O artigo 3 das estipulações do comité executivo dizia explicitamente:

“O governo provisório não deve de maneira nenhuma empreender acções que predeterminem a forma futura do governo.“

Miliokov colocava a questão da monarquia como um ultimato. Os democratas desesperavam. Então as massas vieram ao seu socorro. Nos encontros no palácio de Tauride, absolutamente ninguém, nem operários, nem soldados, não queria um czar e não havia meio de lhes impor. Contudo, Miliokov tentou contrariar a opinião e passar por cima das cabeças dos aliados de esquerda para salvar o trono e a dinastia.

Na sua História da Revolução, ele próprio notou, circunspecção que, na noite do 2 de Março, a agitação causada pelo seu comunicado sobre uma regencia de Miguel “cresceu consideravelmente”. Rodzianko descreveu em cores muito mais vivas o efeito que produziram sobre as massas as maquinações monárquicas dos liberais. Logo que chegou de Pskov, comunicando o acto de abdicação de Nicolau em favor de Miguel, Gotchkov, a pedido dos ferroviários, nas oficinas do caminho de ferro, descreveu o que se tinha passado, leu em público o documento e terminou gritando: “Viva o emperador Miguel”. O resultado foi inesperado. O orador, segundo a relação de Rodzianko, foi imediatamente preso pelos operários, mesmo, diz-se, ameaçado de ser fuzilado.

“Foi com dificuldades que o libertaram com a ajuda de uma companhia que estava de guarda num regimento da vizinhança.”

Como habitualmente, Rodzianko exagerou sobre certos pontos; mas, no essencial, os factos foram exactamente reproduzidos. O país tinha tão radicalmente vomitado a monarquia que ela não teria podido de maneira nenhuma ser engolido pelo povo. As massas revolucionárias não admitiam mais um novo czar?

Colocados diante de tais circunstâncias, os membros do comité provisório, um após outro, afastavam-se de Miguel não definitivamente mas “esperando a Assembleia constituinte”: logo se verra. Só Miliokov e Gotchkov apoiaram a monarquia até ao fim e continuaram a colocar esta condição prévia para a sua participação no governo. Que fazer? Os democratas pensavam que, sem Miliolov, não se poderia formar um governo burguês e que, sem um governo burguês, não se poderia salvar a revolução. As recriminações e conversas se prolongaram interminavelmente. Na sessão da manhã, no dia 3 de Março, o comité provisório parecia ter alinhado completamente com esta opinião que “seria necessário levar o grande-duque a abdicar...” Miguel considerava-se já como o czar! Um cadete da esquerda, Nekrassov, tinha mesmo um texto de abdicação já pronto. Mas como Miliokov recusava obstinadamente ceder, encontraram enfim, após debates apaixonados, esta formula: “os dois partidos submetem ao grande duque as suas opiniões motivadas e, sem avançar mais a discussão, submetem-se à sua decisão.”

Assim, o homem “completamente imbecil” que o seu irmão mais velho, transtornado pela insurreição, tinha tentado, contrariamente aos próprios estatutos dinásticos, de transferir o trono, tinha-se constituido em árbitro na questão da forma do Estado que convinha a um país em revolução. Tão verosimilhante que isso possa parecer, esses debates sobre a sorte do Estado tiveram realmente lugar. Para incitar o grande-duque a desinteressar-se pelas suas cocheiras em consideração do trono, Miliokov assegurou-lhe que haveria a inteira possibilidade de reunir, fora de Petrogrado, forças militares que defenderiam os seus direitos. Noutros termos, mal Miliokov recebeu o poder das mão dos socialistas que logo produziu o plano do golpe de Estado monárquico. Quando terminaram os discursos para ou contra, os quais não tinham sido poucos, o grande-duque pediu um momento de reflexão. Convidou Rodzianko à sala vizinha e pôs-lhe cruamente esta questão: os novos dirigentes poderiam garantir-lhe não somente a coroa, mas também a sua cabeça?

O incomparável gentil-homem respondeu que só podia prometer ao monarca morrer com ele, se fosse necessário.

Isso não convinha de forma nenhuma ao pretendente. Quando, após ter apertado Rodzianko nos braços, Miguel Romanov voltou-se para os deputados que esperavam, explicou, “muito firmemente”, que renunciava à alta mas terrível função que lhe ofereceram. Então, Kerensky, que personificava nas conversações a consciência da democracia, sobressaltou da cadeira exclamando:

“Sua Alteza é um coração nobre?”

Ele jurou que iria proclamá-lo em todo o lado.

“A ênfase de Kerensky – notou secamente Miliokov – harmonizava-se mal com a decisão prosaica adoptada.”

Não se pode estar de acordo sobre isso. O texto desse intermédio não se prestava com certeza a discursos enfáticos. A comparação feita acima com uma comédia musical interpretada num canto de uma arena antiga deve ser completada no sentido que a cena se encontra cortada em duas por écrans: de um lado, os revolucionários suplicando os liberais para salvarem a revolução; de outro, os liberais suplicando a monarquia de salvar o liberalismo.

Os representantes do comité executivo ficaram espantados ao verem que um homem tão esclarecido e perspicaz como Miliokov se mostrou recalcitrante, teimando por uma monarquia qualquer, e mesmo estando pronto a desistir do poder no momento que não lhe davam como prenda suplementar um Romanov. O monarquismo de Miliokov não era nem de um doutrinário nem de um romântico; pelo contrário, provinha de um cálculo explicito dos proprietários assustados. O seu cinismo consistia também da sua debilidade irremediável. O historiados Miliokov podia certamente alegar que um dos líderes da burguesia revolucionária francesa, Mirabeau, no seu tempo, tinha igualmente tentado reconciliar a revolução com o rei. Aí também, a base estava nas apreensões dos proprietários sobre a propriedade: era mais prudente de abrigar a monarquia, mesmo se a monarquia se mantinha sob a protecção da Igreja. Mas, em 1789, a tradição do poder real em França era ainda reconhecida pelo povo, sem contar que toda a Europa circundante era monárquica. Ao ligar-se ao rei, a burguesia francesa mantinha-se sobre um mesmo terreno, com o povo, pelo menos no sentido que explorava os preconceitos deste último contra ele próprio.

A situação era completamente diferente na Rússia em 1917. Abstracção feita das catástrofes e dos prejuízos sofridos pelo regime monárquico em diferentes países, a monarquia russa tinha sido irremediavelmente rachada depois de 1905. Após o dia 9 de Janeiro, o papa Gapone lançou o anatema sobre o czar e a sua “raça de víboras”. O Soviete dos deputados operários que se constituiu em 1905 mantinha-se abertamente no campo republicano. Os sentimentos monarquistas da classe camponesa, sobre os quais o czarismo contou muito tempo e que alegava a burguesia para cobrir o seu próprio monarquismo mostrou-se simplesmente inexistente. A contra-revolução belicosa, que, mais tarde, ergueu-se -a datar da empresa de Kornilov – ainda que hipocritamente, mas tanto mais demonstrativa, negava o poder czarista: a ideia monárquica tinha perdido as suas raízes no povo.

Todavia, esta mesma Revolução de 1905, que tinha dado um golpe mortal à monarquia, minou para sempre as tendências repúblicas incertas da burguesia “avançada”. É em contradição de um com outro que se realizaram estes dois processos complementares. A partir das primeiras horas da Revolução de Fevereiro, a burguesia, sentindo que ela se afogava, agarrou-se a uma palhinha. Ela precisava da monarquia, não que ela tivesse essa fé em comum com o povo, mas, pelo contrário, porque ela não podia mais opor-se às crenças populares outra coisa senão um fantasma coroado. As classes “cultivadas” da Rússia avançaram sobre o terreno da revolução não como anunciadoras de um Estado racional, mas como os campeões das instituições medievais. Não tendo nem povo, nem neles próprios nenhum ponto de apoio, elas procuraram por cima delas.

Arquimedes pretendia levantar a terra, se lhe dessem um ponto de apoio. Miliokov, ao contrários procurava um ponto de apoio para impedir que lhe transtornem a propriedade. E aí, ele sentia-se mais próximo dos mais decrépitos generais do czar, dos altos dignitários da Igreja ortodoxa, que os democratas domesticados que não se preocupavam que a condescendência dos liberais. Impotentes em fazer malograr a revolução, Miliokov tomou firmemente a resolução de a enganar. Ele estava pronto a encaixar muitas coisas: as liberdades cívicas para os soldados, as municipalidades democráticas, a Assembleia constituinte, mas somente com a condição que lhe deixassem o seu ponto de apoio de Arquimedes: a monarquia. Ele propunha-se fazer gradualmente da monarquia o eixo à volta do qual se agruparia o corpo dos oficiais generais, a burocracia renovada, os príncipes da Igreja, os proprietários, todos os descontentes da revolução e, começando por um “símbolo”, criar pouco a pouco um travão real monárquico, à mediada que as massas se cansassem da revolução. Tratava-se de ganhar tempo!

Um outro líder do partido cadete, Nabokov, explicou mais tarde qual teria sido a vantagem capital se Miguel tivesse aceite o trono:

“A questão fatal da convocação de uma Assembleia constituinte em tempo de guerra teria sido metida de lado.”

São palavras que não devem ser esquecidas: a luta levada a cabo para adiar os prazos da Assembleia constituinte teve um lugar importante no período que vai entre Fevereiro e Outubro; os cadetes, nessa luta, ao negarem categóricamente que a sua ideia foi de atrasar a convocação dos representantes do povo, perseguiram perseverantes, obstinados, uma política de escamoteio. Infelizmente! Agindo assim eles não precisavam de se apoiar senão neles próprios: não tiveram que se abrigar atrás da monarquia, no fim de contas. Após a deserção de Miguel, nem mesmo Miliokov pôde apoiar-se numa palhinha.


Inclusão 20/05/2010
Última alteração 14/04/2014