Stalinismo

Manoel Coelho Raposo


Ditadura do Proletariado x Partido Único


Do capítulo anterior conclui-se que a Ditadura do Proletariado está estreitamente ligada ao Estado na fase de transição da sociedade dividida em classes antagônicas para a sociedade sem classes, isto é, o comunismo.

Na fase de transição do capitalismo ao comunismo, o Estado Socialista tem de ser, necessariamente, mais forte que o próprio Estado Burguês. Agora perguntamos: isto significa que o Estado Burguês é mais democrático que o Estado Socialista? Naturalmente que não. Analisemos esta questão.

Como já foi dito, a burguesia, ao tomar o poder, destrói as relações de produção feudais, mas não destrói a base da exploração, que é a propriedade privada dos meios de produção, e, desta maneira, abre condições aos senhores feudais para continuarem explorando os trabalhadores, de acordo com as relações de produção burguesas. Destrói uma forma de exploração, mas cria outra. Portanto, quando os senhores feudais se transformam em burgueses, a sociedade toma nova composição, trazendo em seu bojo novas formas de contradições, isto é, contradições antagônicas — capital e trabalho — e não-antagônicas — forma capitalista de produção na indústria, pequenos e médios produtores urbanos, pequenos e médios agricultores etc.

Tanto a grande indústria como os pequenos produtores urbanos e rurais alicerçam-se na propriedade privada dos meios de produção; portanto, suas contradições não são antagônicas. Assim sendo, os choques que surgem destas contradições não-antagônicas, quando muito, levam a crises conjunturais que jamais ameaçarão o sistema capitalista como um todo. No máximo produzem abalos sociais que são rapidamente sufocados pelo aparelho repressivo do Estado burguês.

Mas o regime burguês gera nas suas entranhas, na afirmação de Marx, “o seu coveiro” que é o proletariado. A medida que a burguesia se desenvolve, aumenta o número de proletários que se incorporam à produção, enquanto o número de capitalistas diminui, devido ao processo natural da concentração capitalista.

Como o elemento dinâmico dentro do modo de produção são as forças produtivas — a natureza, o homem e os instrumentos de produção estas são barradas pelas relações de produção baseadas no trabalho assalariado, que se desvaloriza permanentemente, porquanto o fim do capitalismo é o lucro e não a satisfação das necessidades dos trabalhadores. A sociedade é assaltada por crises conjunturais, no início, para não tardar a ter de enfrentar as crises estruturais.

Do que foi dito, podemos compreender que a sociedade se divide cada vez mais em dois campos antagônicos. De um lado, a burguesia, representada por uma pequena parcela de capitalistas; e do outro, um imenso exército de proletários, ameaçados, permanentemente, pelo fantasma da recessão e do desemprego. Com o desemprego, forma-se por toda parte outro grande exército, o dos marginalizados do sistema.

Fica claro que esta divisão vai gerar sérios conflitos sociais dentro do sistema burguês, conflitos que refletem a composição da sociedade e que, inevitavelmente, gerarão partidos políticos para representá-los. No processo de surgimento dos partidos políticos, logicamente eles colocarão em seus programas a conquista do poder, pois do contrário não seriam partidos políticos.

Ocorre que, de todos os partidos políticos gerados nas entranhas da sociedade burguesa, somente um, o Partido Comunista, terá a missão de lutar contra o sistema capitalista, porquanto será o único partido, o do proletariado, que vai desfraldar a bandeira revolucionária de substituição do sistema capitalista pelo socialista. Todos os demais partidos serão apêndices do grande partido burguês, ou, para melhor nos expressarmos — parodiando

a Bíblia —, são vários partidos políticos, porém um só verdadeiro: o partido da propriedade privada dos meios de produção.

Assim sendo, as forças sociais vão ser polarizadas: de um lado, a burguesia, uma pequena minoria detendo em suas mãos toda a riqueza gerada pelo trabalho humano, e do outro, o proletariado, criador da riqueza, porém dela despojado. Acompanha-o uma “classe média” que se desintegra permanentemente para aumentar o exército da classe operária, e também os imensos contingentes de marginalizados, sem emprego, arrastando-se na mais absoluta miséria.

Ora, se o Estado é um instrumento de opressão de uma ou mais classes sociais sobre outra ou outras, o Estado Burguês é o instrumento de opressão de uma minoria privilegiada para garantir a ela calcar sob seus pés a imensa maioria da população. As formas de opressão a que a burguesia recorre são as mais variadas. Vão desde a ditadura fascista, com o seu rosário de torturas e assassinatos, até à alienação das mentes pelos meios mais sutis da mídia eletrônica.

A burguesia e os pseudocomunistas, defensores da democracia como valor universal, vêm de público afirmar que na democracia burguesa há lugar, inclusive, para a atuação legal dos partidos comunistas.

Isto é verdade, mas que partidos comunistas são estes? Poderiam os nossos ilustres burgueses e nossos ilustres pseudocomunistas apontar qual o partido comunista brasileiro que, em seu programa e em sua prática política, luta pela derrocada da propriedade privada dos meios de produção? Não existe nenhum, senhores. Quando muito aparecem sutis intenções, ou melhor, insinuações, que não passam de amontoados de palavras sem nenhum sentido prático e que apenas legitimam o sistema burguês como democrático.

A burguesia e os pseudocomunistas, defensores da democracia como valor universal, vêm de público afirmar que a burguesia é democrática porque permite o funcionamento do pluripartidarismo, enquanto, na fase de transição do capitalismo ao comunismo, a ditadura do proletariado institui o partido único, eliminando qualquer possibilidade de existência de partidos de oposição.

Isto também é verdade. Mas, repetindo o que já foi dito, a sociedade burguesa é dilacerada por profundas contradições, devidas à sua divisão entre classes antagônicas e não-antagônicas, o que enseja, independentemente da sua vontade, o surgimento de vários partidos políticos.

Como as contradições antagônicas na sociedade burguesa se resumem entre o capital e o trabalho, queira ou não a burguesia, a existência do partido revolucionário do proletariado também se dará independentemente de sua vontade, enquanto os demais partidos ditos de oposição são simples apêndices, ou departamentos, do grande partido burguês, que é o da propriedade privada dos meios de produção.

O partido revolucionário do proletariado haverá de ter a sua atuação sempre limitada aos quadros da constituição burguesa, sob pena de ser por ela lançado na clandestinidade.

A burguesia e os pseudocomunistas alegam que as ditaduras repressivas burguesas são fenômenos alheios à essência de seu sistema, provocados por elementos inescrupulosos e militares arbitrários em busca de poderes, enquanto a ditadura do proletariado é permanente, institui o partido único, e que, consequente- mente, o Estado socialista é antidemocrático em sua essência.

Analisemos este fenômeno social.

O Estado Socialista é antidemocrático em sua essência, como afirma a burguesia? E a Ditadura do Proletariado é antidemocrática, porquanto a sua existência abrange um longo período que vai desde a derrubada da burguesia, com a tomada do poder pela classe operária, até à total liquidação da propriedade privada dos meios de produção, perdurando enquanto houver remanescentes da pequena propriedade?

Naturalmente que tanto o Estado Socialista como a Ditadura do Proletariado, por ele engendrada, são fenômenos sociais inerentes ao sistema socialista, e jamais poderíamos considerá-los democráticos, em sua forma absoluta, porquanto negaríamos a própria essência do Estado, em qualquer sociedade dividida em classes, que é o instrumento opressor das classes que estão no poder contra as classes fora do poder.

Entretanto, a Ditadura do Proletariado é um fenômeno social mais democrático do que a Ditadura da Burguesia, mesmo esta se encontrando em sua forma democrático-burguesa. Vejamos por quê.

Já foi dito que o proletariado, ao realizar a revolução socialista, derruba a burguesia e inicia o processo de liquidação do elemento gerador da exploração, que é a propriedade privada dos meios de produção. Para realizar esta tarefa gigantesca, que corresponde aos interesses da imensa maioria da população, o proletariado revolucionário inicia a destruição do Estado Burguês, secularmente estruturado, como também, no lugar deste Estado, constrói o Estado Socialista, isto é, o Estado Proletário,

Esta tarefa obriga o proletariado a assumir uma atitude ditatorial implacável, pois vai encontrar feroz resistência da classe exploradora, então destronada do poder político, porém ainda detentora dos meios de produção e de toda uma argamassa cultural-psicológica embutida na superestrutura da sociedade que, aberta ou sutilmente, influencia negativamente no processo de construção da nova sociedade.

Vencer tamanha resistência recorrendo aos métodos “democráticos”, isto é, regime de pluripartidarismo, total liberdade de expressão, de palavra, de reunião etc., seria incorrer no erro de que a burguesia, uma vez derrubada do poder através da revolução, se encontraria vencida, e o proletariado já poderia dar-se ao luxo de desprezar a força repressiva do Estado. Isto é mais do que ilusão; é ingenuidade política.

Uma vez realizada a tomada do poder — a experiência nos indica que ela sempre se dará através de ampla coligação de forças: classe operária, camponeses médios e pobres, setores da “classe média”, das forças armadas, intelectuais etc. — , o proletariado vai ter de se defrontar com opiniões as mais diversas, pois cada setor participante da revolução trará consigo a sua ideologia própria, consequentemente, seus sonhos de como deva ser a sociedade que emerge.

Entretanto, trata-se de uma revolução proletária na sua essência, que terá de abrir picadas rumo ao seu objetivo: a implantação do socialismo.

Supor ser possível que esta caminhada se dê sem choques e conflitos e que, em muitos casos, não se possa transformar em lutas violentas do proletariado com seus antigos aliados, é outra ingenuidade política, só possível nas cabeças dos sonhadores, os partidários da utopia.

Numa entrevista de Stálin com H. G. Wells, o famoso jornalista e historiador inglês, realizada em 23 de julho de 1934, há um trecho que julgamos oportuno transcrever:

WELLS: ‘‘Tenho observado a propaganda comunista no Ocidente e parece-me que, nas condições atuais, tal propaganda soa muito fora de moda, por ser uma propaganda insurrecional. A propaganda a favor da derrubada violenta do sistema social soava hem quando dirigida contra as tiranias. Mas, nas atuais condições, quando o sistema se desmorona de todas as maneiras, seria preciso dar mais destaque à eficiência, à competência, à produtividade, do que à insurreição. Parece-me que o tom insurrecional é antiquado. Do ponto de vista das pessoas de mentalidade construtiva, a propaganda comunista no Ocidente é um obstáculo.”

STALIN: “Para começar, o velho sistema se desmorona, está em decadência. Isso é certo. Porém também é certo que novos esforços se fazem, por outros métodos, por todos os meios, para proteger, para salvar este sistema agonizante. O senhor tira conclusão errônea de premissa certa. O senhor estabelece, corretamente, que o velho mundo se afunda. Mas o senhor está enganado pensando que se afunda por si mesmo. Não. A substituição de um sistema social por outro é processo revolucionário complexo e de longo fôlego. Não é simplesmente um processo espontâneo e sim uma luta, um processo relacionado com o choque entre as classes. O capitalismo está em decadência, porém não deve ser comparado simplesmente com uma árvore que haja apodrecido tanto que virá ao chão com seu próprio peso. Não, a revolução, a substituição de um sistema social por outro, foi sempre uma luta, cruel e dolorosa, luta de vida e de morte. E cada vez que os representantes do novo mundo chegam ao poder, têm de se defender contra as tentativas do velho mundo de restaurar, pela força, a ordem antiga; os representantes do novo mundo têm sempre de estar alertas, de estar preparados para repelir os ataques do velho mundo contra o sistema novo.(1)

Se, como afirma Stálin, se trata de uma luta cruel, prolongada, e o proletariado revolucionário deve estar sempre alerta contra as tentativas da burguesia de retomar o poder através, inclusive, da força armada, qual o instrumento que o proletariado deve usar para lhe garantir o êxito na construção do socialismo? Naturalmente que é o Estado. E que tipo de Estado é este que deva ser mais democrático do que o Estado Burguês?

Como já foi dito, o Estado Burguês é um instrumento de opressão de uma classe minoritária visando a explorar a grande maioria da nação. Derrubada do poder a classe minoritária, a ele ascende a classe majoritária, que é a classe operária, acompanhada de seus aliados já mencionados.

Considerando a necessidade que o proletariado revolucionário tem de construir um Estado muito mais forte do que o Estado Burguês, considerando que este Estado vai gerar a Ditadura do Proletariado, que terá uma longa vida, isto é, enquanto perdurarem os últimos vestígios da propriedade privada dos meios de produção, a pequena propriedade, ou, até mesmo, enquanto perdurar o cerco capitalista no exterior da nação que realizou a revolução, como poder considerar este Estado mais democrático que o Estado Burguês?

A condição fundamental é que este Estado é o instrumento que os revolucionários utilizarão para destruir os privilégios da minoria exploradora — a burguesia — e construir o Estado da maioria da população, destacando-se a classe operária. Ao destruir os privilégios da minoria, o Estado Socialista vai liquidar o desemprego, a fome e o analfabetismo e criar as condições para o homem “conhecer as suas necessidades”, na afirmação de Engels, a condição básica da liberdade.

A Ditadura do Proletariado, que se confunde com o Estado Socialista, será implacável contra os inimigos do novo sistema, porém terá de ser democrática com a classe operária e seus aliados, sem descuidar dos vícios superestruturais do poder alicerçado na propriedade privada dos meios de produção, que certamente acompanharão todo o processo de construção do socialismo.

Para que este processo se dê firme e estejam sempre alertas contra as manobras da burguesia destronada do poder, o Estado Socialista e a Ditadura do Proletariado necessitarão de um comando posto em suas mãos, armado com a doutrina científica do Marxismo-Leninismo. Devem também ter profundo conhecimento da realidade objetiva da nação onde se desenvolve a revolução e do mundo, de um modo geral. Este comando é o partido revolucionário da classe operária, o Partido Comunista, ou outro nome que lhe queiram dar, desde que não se desvie dos fins a que se propõe e esteja presente em todos os setores da vida nacional, orientando o povo, debatendo seus problemas, agitando suas reivindicações, organizando a sociedade, educando e dirigindo todas as suas ações.

Lênin, muito cedo, isto é, em 1902, já havia descoberto a importância histórica reservada a este partido revolucionário, quando afirmava: “Deem-nos uma organização de revolucionários e levantaremos a Rússia(2).

A primeira experiência de Lênin para a formação deste partido revolucionário da classe operária se deu como resultado do trabalho que realizou logo após regressar do estrangeiro, quando reuniu “todos os círculos operários marxistas que atuavam em São Petersburgo (havia cerca de 20) numa única organização que se chamou União de Luta Pela Libertação da Classe Operária”.(3)

A História registra que as atividades da União de Luta Pela Liberdade da Classe Operária em São Petersburgo resultaram, para Lênin, pela primeira vez na Rússia, na fusão do socialismo com o movimento operário, e isto foi o embrião do futuro partido revolucionário dos combatentes operários da Rússia, o Partido Bolchevique.

Para organizar este Partido, que se tomou, com Lênin, um sonho e uma luta permanente, teve ele de envidar os maiores esforços, porquanto estava absolutamente convencido de que, sem um partido revolucionário de novo tipo, diferente de todos os par- tidos operários do ocidente, assentado em rígidos princípios de organização, baseado no centralismo democrático e obedecendo, em sua prática, ao princípio da crítica e da autocrítica, não seria possível o triunfo da Revolução e a construção do Socialismo diante da resistência encarniçada da burguesia destronada do poder. E via na imprensa revolucionária um dos meios fundamentais para a formação do partido quando, em 1901, no número 4 do Iskra, dizia em seu célebre artigo “Por Onde Começar”:

“Um jornal não é somente um propagandista, um orientador coletivo, é também um organizador coletivo.” E prosseguia: “Essa rede de agentes ligados ao jornal e entre si será o arcabouço do Partido.”(4)

Prosseguindo, Lênin mostrava que para se forjar o partido- revolucionário do proletariado, tem-se de dotá-lo teórica, política e ideologicamente, em estreita ligação com a prática revolucionária. Do contrário este partido poderá, até mesmo, realizar uma insurreição vitoriosa, assumir o poder, mas não estará em condições de fazê-lo funcionar de acordo com os interesses de classe do proletariado, levando à degenerescência o processo revolucionário. Lênin resumia o seu pensamento magistralmente em poucas palavras:

“Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário... Só um partido guiado por uma teoria de vanguarda pode desempenhar o papel de combatente de vanguarda.(5)


Notas de rodapé:

(1) J. Stálin. Em Defesa do Socialismo Científico. Editora Anita Garibaldi, pág. 96. (retornar ao texto)

(2) Lênin. Obras Escolhidas, tomo I, 1ª parte, pág. 261, Ed. Francesa, 1941. Ou Lênin: Biografia. Instituto Marx, Engels, Lênin, Stálin. Editorial Vitória Ltda., Rio de Janeiro, pág. 38. (retornar ao texto)

(3) Lênin, Biografia Instituto Marx, Engels, Lênin, Stálin. Editorial Vitória Ltda., Rio de Janeiro, 1955, pág. 28. (retornar ao texto)

(4) Lênin, Biografia. Instituto Marx, Engels, Lênin, Stálin. Editorial Vitória Ltda., Rio de Janeiro, 1955, pág. 67. (retornar ao texto)

(5) Lênin. Obras Escolhidas, Tomo IV. Editora Russa, pág. 380. Ou Lênin, Biografia. Instituto Marx, Engels, Lênin, Stálin. Editorial Vitória Ltda., Rio de Janeiro, pág. 68. (retornar ao texto)

Inclusão: 25/03/2020