A inspiradora de Luiz Carlos Prestes

Figueiredo Pimentel


III. Terra gaucha


capa

Os negócios pastoris corriam mal.

Os estancieiros imploravam aos tropeiros a compra do seu gado. O coronel Hilpert planejava vender a fazenda. Venderia tudo e embarcaria com a mulher e a neta para sua terra natal. Havia vinte anos que não ia a Hamburgo e cinquenta e cinco anos que residia no Rio Grande do Sul, onde se casara com uma gaúcha. Ambos os filhos do casal Hilpert morreram. O velho fazendeiro vivia com a mulher e a neta. Tasso, irmão de Taciana, estava estudando nos Estados Unidos. D. Carlota, já muito velha, com 73 anos de idade, doente, com o coração a arrebentar, não queria deixar a quela fazenda onde vivia há meio século. Que o marido a esperasse morrer. Não tardaria muito. Ela não podia fazer a viagem à Alemanha. Dali não sairia. Era natural que o marido quisesse passar os últimos dias de vida em sua terra. Também ela tinha o mesmo direito.

Taciana vinha sempre como o anjo de paz, consolar seus avós.

— Se você quiser, vá, que eu fico com a avozinha. Iremos ambas para o Rio de Janeiro, ou ficaremos aqui mesmo.

— Havia de ser engraçado eu partir e deixar vocês duas sozinhas por aí afora, sem rumo. Também não sou nenhum selvagem que pudesse abandoná-las por meu bem-estar.

— Mesmo porque eu não me separo do meu velho. Sinto-me cansada. Já estou muito velha.

— Nós podíamos resolver este problema da melhor maneira. Lucraríamos os três. Vovô vende a fazenda e nós iremos residir no Rio de Janeiro.

Nossa fortuna nos garante uma vida folgada. Vovô descansará deste trabalho insano da fazenda e vovozinha viverá em paz também. Eu não posso mais viver aqui. Sinto um tédio horrível. Preciso de vida, de liberdade.

— Você precisa casar-se, Taciana, interveio o velho coronel como que para mudar de assumpto. Você está com vinte e dois anos; não tem um rumo na vida; está perdendo a sua mocidade e ficando triste. É rica e bonita e o seu casamento será fácil. Você precisa de filhos, de alegria, de vida, mundana. Vou fazer o que você propõe. Venderei tudo isto e esperarei a morte sossegadamente. Também já estou muito velho.

E a conversa continuava para maior irritação de Taciana.

Casar-se... Mas com quem? Quem a compreenderia? Ela quedava-se absorta nesses pensamentos. Vivia longe do mundo. Ali só via pastagens, morros, animais, os empregados da fazenda.

Levantou-se e chegou à janela. Um dia lindo, de sol quente. A mesma paisagem vista todos os dias. Lá estavam os cavalos, os bois, as árvores cheias de frutos, o verde imenso dos campos, a grande pastagem.

Beijando os avós, Taciana despediu-se. Ia fazer o seu passeio habitual. Precisava respirar um pouco, distrair-se pelos campos.

O sol inundava a terra com a sua luz divina. O vento soprava levemente, acariciando as árvores, cujas folhas amarelas iam caindo, vagarosamente, atapetando o chão.

O velho ipê vestia-se com suas folhas de ouro. As acácias espiavam pela janela do quarto de Taciana. Do alto, onde estava a velha casa colonial, avistava-se um panorama deslumbrante.

Taciana tomou o automóvel e saiu, espantando os animais.

Da varanda, o velho fazendeiro acompanhava, com seus olhos azuis e pequenos a neta que ia conduzindo displicentemente o carro.

O velho acendeu o cachimbo de espuma e começou a pensar na vida.

Depois que seus dois filhos morreram a fazenda perdera completamente o encanto. A mãe de Taciana tinha um temperamento bem diferente do da filha. Era alegre, muito expansiva. Trazia a fazenda em reboliço. Enchia a casa de hóspedes e dava sempre festas campestres. Nas noites de Santo Antonio, São João e São Pedro a fazenda parecia uma feira. Vinha gente de toda a redondeza. Maria encomendava, fogos, balões, mandava fazer fogueiras enormes no terreiro e assava batatas, canas, etc. Cada balão enorme! Dançava-se no terreiro e cantava-se ao som das violas, dos pandeiros, das harmônicas. Os violeiros constituíam o encanto da festa. Maria era a alma da fazenda. Quanta saudade lhe despertava a sua filha querida! Era ela quem dirigia os negócios da fazenda. Seu marido, um ótimo rapaz, político de prestígio, fora assassinado numa emboscada, por questões partidárias, deixando dois filhos: Tasso com 8 anos e Taciana com 10, apenas.

Na fumaça azulada do cachimbo iam desfilando as imagens saudosas do velho fazendeiro. A maior saudade era sua filha. Depois da morte do marido, Maria ficou tuberculosa e partiu para a Suíça em busca de melhoras, levando Taciana. Um ano depois, morria no Sanatório. Taciana ficou internada num colégio em Berna, onde passou oito anos. Estudou muito. Inteligente e aplicada, conseguiu fazer um curso brilhante, dedicando-se aos idiomas e à música. Era eximia pianista e tocava também violão com maestria. Quando voltou à fazenda já havia completado dezenove anos. Veio circunspecta, sem a vivacidade de criança. Não parecia aquela menina travessa que andava correndo atrás dos animais e trepando nas árvores para apanhar frutas e ninhos.

★ ★ ★

Depois de fazer longo percurso, um dos pneumáticos do automóvel estourou. Não trazia outro de sobressalência. Que fazer? O remédio era ficar ali até que passasse um dos rapazes da fazenda, de volta da cidade, para mandar o mecânico trazer outro pneumático.

Taciana consultou o relógio-pulseira. Duas horas e vinte minutos. Era cedo e ela não tinha pressa. Esse passeio quase diário prolongava-se até à Ave-Maria. Muitas vezes, quando vinha a cavalo, ela subia a montanha e ficava admirando o pôr do sol atrás das serras distantes, espalhando as manchas coloridas pelo poente entristecido.

Os quadros da natureza deslumbravam o seu espirito artístico. Uma sensação de arte invadia-lhe a alma.

Os tropeiros e os habitantes daquelas cercanias já se tinham habituado a ver a figura austera e formosa de Taciana, de cabelos louros ao vento, montada em sua égua tordilha ou guiando o seu automóvel, passeando sozinha pelos montes e vales.

Todos a admiravam e estimavam muito. Ela era gentil e esmoler. Precisava empregar seu tempo em alguma coisa útil e por isso cosia para as crianças e ensinava a ler aos filhos do pessoal da fazenda. Vivia entediada. Seu temperamento estranho sentia necessidade de vibrar, de viver num ambiente de agitação. Não mais podia viver naquele ambiente calmoso, longe da civilização, entre árvores e morros, vendo eternamente a mesma paisagem. Precisava sentir a palpitação da vida agitada, tinha necessidade de estar em contato com a multidão. Seus olhos se entediavam de tanta melancolia. Precisava de amar e ser amada.

O vento soprava as folhas que caiam sobre Taciana. Os flocos de paina vinham voando, de longe, como borboletas tontas.

Na curva do caminho despontava um cavaleiro a galope. Devia ser um dos rapazes da fazenda. Estava resolvido o problema do automóvel. O viajante aproximava-se. Um jovem simpático, elegante e bem-vestido, surgiu aos olhos de Taciana. Era um estranho.

— Boa tarde! Disse o cavaleiro parando ao pé do automóvel em que estava a moça.

E antes que ela correspondesse, o jovem perguntou se aquele caminho conduzia á fazenda do coronel Hilpert. Ele bem o sabia, pois reconhecera a pessoa que estava procurando. Era ela mesma: a mulher que perturbava os seus sentidos; era a jovem do corpo mais perfeito que já vira.

O cavaleiro despiu, com o olhar, a moça que o estava observando. Por mais vestida que estivesse, ele reconheceria aquele lindo corpo que vira antes, banhando-se na cascata. Era ela; a garça humana.

Foi fácil um começo de conversa. Disse que vinha recomendado por um amigo do coronel Hilpert. Desejava pintar algumas paisagens da bela fazenda e estava maravilhado com os aspetos naturais daquelas paragens plácidas.

— Daqui, por exemplo, vemos um quadro maravilhoso. Aquelas serras, aquelas lindas árvores banhadas de uma luz viva sobre um fundo colorido, apresentam aspetos bizarros e originais. Aquela arvore amarela que ali está (apontava para um formoso ipê) parece uma mulher loura pedindo para os seus lindos olhos todo o ouro e toda a luz do sol...

Taciana compreendeu a alusão e desabrochou o seu sorriso amargo — um sorriso de piedade.

A conversa prolongava-se. A moça falava pouco e observava muito. O moço se apresentou.

Chamava-se Venâncio Jardim e era pintor. Chegara recentemente da Europa onde fora em viagem de estudos. Falou da Itália, das artes, de seus planos artísticos. Loquaz e insinuante dizia coisas espirituosas, agradáveis. Taciana ouvia displicentemente, sentada no automóvel, com a palma da mão apoiando o queixo, os dedos tamborilando nos dentes muito claros, muito certos e brilhantes. Venâncio devorava com os olhos indiscretos aquela beleza fria qual uma flor de neve. Olhos mortos, sem uma contração no rosto, dava a impressão de anestesiada. Falava pouco.

O pintor julgava-se importuno e no entanto era ouvido com prazer; mudando de conversa passou a falar do Rio Grande do Sul. Elogiou o povo gaúcho e as belezas dessa terra encantadora. Fingiu-se admirado quando Taciana lhe disse que era neta do Coronel Hilpert. A moça já estava arrependida do seu laconismo. Não devia proceder daquele modo com um rapaz tão distinto, amável e inteligente. Resolveu conversar um pouco e explicou então porque estava ali parada.

Venâncio ofereceu-se para ir buscar o mecânico. Taciana agradeceu e sugeriu seguir no cavalo do artista; mandaria, sem demora, o mecânico concertar o automóvel e então Venâncio iria para a casa dela. Concordaram. Mas não havia pressa; era cedo; poderiam ficar ainda conversando ali sugeriu ela.

E começou a contar, com mais desembaraço, a sua vida na fazenda. Relatou os seus passeios diários, o desejo de sair do Rio Grande do Sul. A sua paixão pelo mar, que era enorme.

E a conversa foi se generalizando, com mais intensidade. Ela falava com desembaraço; sua voz era encantadora. Venâncio sentia-se dominado pela jovem, cuja beleza o fascinava cada vez mais.

Enquanto ela falava, ele pensava na cena do banho que assistira na véspera. Seu maior desejo era vê-la nua, posando para ele. Seria a sua obra-prima. Taciana abaixou-se para apanhar as luvas do artista, que caíram a seus pés, dentro do automóvel. A cabeleira perfumada roçou o rosto de Venâncio, que observava discretamente os seios que apareceram sob o decote do vestido, quando ela se abaixou; esses seios lindos e rígidos que ele já vira erguidos numa oferenda voluptuosa às águas que os beijavam...

Venâncio estava visivelmente perturbado e observava, de mais perto, a mulher que deslumbrava sua alma de artista. Boca sensual, lábios grossos, narinas dilatadas aspirando sempre o perfume do próprio corpo. Testa larga, olhos mortos, bêbedos de volúpia... Mulher sensual, gestos elegantes e fidalgos.

Embora notando a perturbação do artista, cujos olhos a devoravam, Taciana não perdia a calma, pois estava acostumada àquelas atitudes fisionômicas. Quando falava com algum rapaz tinha a impressão de que ia ser beijada à força.

O vento soprava mais forte arrastando as folhas secas das árvores e do chão.

Taciana resolveu voltar para a casa. Conforme a combinação feita tomou o cavalo e saiu em disparada, depois de prometer que o mecânico não demoraria.

O pintor seguiu, com os olhos tontos de luz, a moça, que fustigava o cavalo para correr.

Ficou pensando naquela mulher singular que o entontecia e o perturbava como um perfume oriental.

Moço, com 32 anos de idade, artista de nomeada, inteligente, culto, Venâncio sempre vivera confortavelmente, mercê dos seus rendimentos de herança. Frequentava ambientes de luxo, rodas alegres, ‘‘cabarets’’, com mulheres de toda a especie social, sem nunca se ter preocupado seriamente, sem ter tido uma afeição forte por uma delas. Em seu atelier tivera muitas mulheres que iam posar para seus quadros.

Em toda sua vida amorosa nunca encontrara um caso que o fizesse renunciar a todos os prazeres mundanos, que o distraísse dos trabalhos de arte.

Passava em revista mental seus casos de amor. Em sua imaginação desfilavam como num friso de mármore, as mulheres que tivera em seus braços. E recordava-se que nenhuma o prendera seriamente como Taciana. Apenas uma o preocupara um pouco naquele tempo romântico e algo infantil, havia já uns dez anos.

★ ★ ★

Era uma moça de 17 anos, mas parecia uma menina de 12. Numa noite de junho, muito fria e triste, ele caminhava pela Praça da Bandeira, despreocupado, em direção à casa de um amigo. O céu estava repleto de baloes. Era dia de S. João. Os foguetes explodiam no ar. As crianças brincavam à porta das casas rindo, pulando, gritando, soltando fogos e balões. Uma menina aproximou-se dele pedindo esmola. Esfarrapada e faminta pedia para comer; seus olhos grandes e fundos demonstravam miséria. Quase chorando, sentia-se envergonhada. Venâncio percebeu na fisionomia cansada da menina a revolta de uma alma sofredora. Fixou o olhar nos olhos piedosos da desgraçada. Observou-a da cabeça aos pés. Meias rotas, sapatos rotos. Na máscara da angústia notou traços de beleza. Seus modos eram de menina educada.

— Você está mesmo com fome? Perguntou Venâncio.

— O senhor não acredita? Pois estou até agora com o café e o pão da manhã. Não almocei; não jantei ainda.

— Onde mora?

— Em Turiaçu. Sabe onde é?

— Mas o que faz aqui, tão longe, a estas horas?

— Fugi de casa. Minha madrasta me bate muito. Ainda hoje ela me deu uma grande surra. Resolvi abandonar a casa. Não posso mais suportar esse martírio.

— Você tem pai?

— Já morreu. Se ele estivesse vivo eu não seria tão desgraçada como sou.

— Como se chama?

— Elza Salgado.

— E quantos anos tem?

— Dezessete.

— Mas afinal o que vai fazer? Para onde vai?

— Não sei não, senhor. Não sei de nada. Vou procurar um emprego, amanhã.

— Mas onde vai dormir hoje?

— Não sei. Por aí...

Elza começou a chorar. As lágrimas rolavam pela face livida.

— Andei hoje o dia todo, sem destino, envergonhada, com vontade de me matar. Esta vida é muito cruel.

Venâncio ficou olhando aquela pobre criança, sem falar, sem saber que fazer. Foram andando para o lado da Leopoldina. Venâncio ia pesando a ideia que tivera. Passava por sua mente uma infinidade de coisas. Afinal resolveu. Não era possível deixar aquela criança ali na rua.

Chamou um táxi e seguiu com Elza para a sua casa. O auto ia rodando, enquanto os dois conversavam. Venâncio fazia uma série de perguntas para experimentar o caráter da pequena. Na praia de Botafogo a neblina quase impedia o trânsito dos automóveis. O carro parou. Rua Bambina. Era o atelier do artista. Pavimento térreo. Em cima morava um casal de velhos ingleses. Venâncio morava só. O artista acendeu toda a luz da casa. Acendeu o fogão a gaz para aquecer água. Pôs à mesa biscoitos e doces. Deu a Elza um cálice de vinho. Fez chá.

A moça saiu cheirosa do banheiro, vestindo um quimono de seda amarela com ramagens pretas. Vestia a roupa que o artista tinha em casa para os seus modelos. Elza estava bonita. Sorria mostrando os dentes grandes e bonitos.

Venâncio resolveu respeitar-lhe a inocência. Estava praticando um ato de humanidade, uma boa ação, e não queria ser um canalha. Havia de respeitar a inocência dessa menina.

Passaram-se os dias. Elza, que ficou morando no atelier, dormia nas almofadas de seda sobre grande divã de madeira. Dava uma alegria nova àquele atelier solitário, cheio de máscaras, de telas, de tintas e de livros. Remexia tudo. Queria arrumar os objetos de arte. Estava satisfeita com a sua nova vida, embora fosse uma prisioneira. Venâncio a trancava no quarto quando recebia visitas. Guardava o seu segredo: a sua descoberta. Elza era o seu novo modelo. Fizera um belo quadro reconstituindo na tela a cena do encontro: uma menina com ar faminto estendendo a mão. Elza começou a provocá-lo. Beijava-o. Queria posar nua como as outras, cujos retratos estavam pelos cantos. E os dois se tornaram amantes. Inevitável...

Venâncio não a amava, mas desejava aquele corpo fresco e encantava-se com os ares de inocência de Elza. Viveram cinco meses nessa doce aventura. Depois Elza começou a tomar atitudes; já impunha: brigava: tinha ciúmes. Queria sair com Venâncio e ameaçava-o de escândalo. E o encanto passou. Afinal Elza abandonou o artista.

Tinha sido como uma lagarta que vivia dentro do casulo. Virou borboleta. Criou asas e tonta de luz foi queimar-se no disco bruxuleante de uma lamparina...

E acabou caindo...

★ ★ ★

Venâncio despertou-se dessa reminiscencia. Avistou um cavaleiro. Era o mecânico que trazia a roda do automóvel. Cumprimentos. Conversas. Feito o serviço seguiu a cavalo, enquanto Venâncio dirigia o automóvel para a casa de Taciana.


Inclusão: 30/03/2024