Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção I. Grandes Panoramas
A Guerra Civil Americana
(Marx/Engels. Die Presse, número 84 de 26 de março de 1862)
Escrito em março de 1862


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Seja de qual ponto de vista a consideremos, a Guerra Civil Americana oferece um espetáculo sem paralelos nos anais da História das guerras. A extensão incomensurável do território em disputa; o amplo fronte das linhas em operação; a massa numerosa de exércitos hostis, cujo surgimento dificilmente se deixa atribuir a uma base organizatória anterior; os custos fenomenais dos mesmos exércitos, mais o tipo de liderança e princípios gerais, táticos e estratégicos pelos quais a guerra está sendo levada a cabo — tudo isso é novo aos olhos do observador europeu.

A conspiração secessionista, organizada tempos antes de iniciar suas atividades, foi protegida e subsidiada pela administração Buchanan;(1) ela deu ao Sul uma vantagem estratégica por meio da qual pôde nutrir esperanças de atingir seu objetivo. Comprometido por sua população escravizada e por um forte elemento unionista entre os próprios brancos, o Sul conta com dois terços a menos de pessoas livres do que o Norte, embora esteja mais pronto para atacar graças à massa de aventureiros desocupados que abriga. Tudo depende, para o Sul, de uma ofensiva ágil, ousada, quase temerária. Se os sulistas conseguirem capturar St. Louis, Cincinnati, Washington, Baltimore e talvez a Filadélfia, deverão contar com a manutenção de um estado de pânico, para que, entrementes, a diplomacia e o suborno consigam assegurar o reconhecimento da independência de cada um dos estados escravistas. Caso essa primeira ofensiva fracasse, ao menos nos seus aspectos decisivos, então a situação do Sul piorará a cada dia — e, simultaneamente, o desenvolvimento de forças do Norte.

Os homens que organizaram a conspiração secessionista em um espírito verdadeiramente bonapartista tinham plena consciência desse dado. Ademais, iniciaram sua campanha de forma correspondente. Seus bandos de aventureiros invadiram o Missouri e o Tennessee, enquanto as tropas mais regulares tomaram a Virgínia,(2) preparando-se para um ataque surpresa em Washington. Com o fracasso da tal ofensiva, a campanha sulista foi, de um ponto de vista militar, derrotada.

O Norte adentrou o campo de batalha contrariado, sonolento, como era de se esperar em função de seu desenvolvimento industrial e comercial. O maquinário social ali era incomparavelmente mais complicado do que o do Sul, e custou muito mais tempo para dar ao movimento [das tropas] a direção com a qual estavam pouco familiarizadas. O recrutamento trimensal dos voluntários foi um grande (e talvez inevitável) fiasco. A medida política do Norte era a de se manter na defensiva em todos os pontos decisivos, organizar suas forças e, mobilizá-las apenas em operações de pequena escala, sem correr o risco de batalhas decisivas. Finalmente, uma vez que a organização estivesse suficientemente fortalecida, que o elemento traiçoeiro estivesse mais ou menos extirpado do exército, havia-se de fazer uma ofensiva vigorosa e incessante, sobretudo para retomar o Kentucky, o Tennessee, a Virgínia e a Carolina do Norte. A transformação de cidadãos em soldados precisou de mais tempo no Norte do que no Sul. Uma vez realizada, pôde-se contar com a superioridade individual do homem do Norte.

Em geral, depois dos erros decorrentes, mais de agentes políticos do que de militares, o Norte agiu de acordo com esses princípios. A pequena guerra no Missouri e na Virgínia Ocidental, ao passo que protegeu as populações unionistas, acostumou as tropas ao serviço de campo de batalha e à artilharia, sem a comprometer com derrotas decisivas. O grande embaraço de Bull Run foi, de certa maneira, resultado do erro anterior de recrutar voluntários por meros três meses. Foi um absurdo querer manter uma posição forte, ainda mais em um terreno dificultoso, em ofensiva contra um inimigo numericamente inferior, achando que seria possível atacar no front com recrutas imaturos. O pânico que tomou conta do exército da União em um momento decisivo, e cujo motivo ainda não foi esclarecido, não surpreendeu ninguém que estivesse razoavelmente familiarizado com o histórico de batalhas populares. Coisas do tipo aconteceram às tropas francesas com muita frequência de 1792 a 1795, mas não impediram que as mesmas vencessem as batalhas de Jemappes e Fleurus, Montenotte, Castiglione e Rivoli. A imbecilidade das piadas feitas pela imprensa europeia sobre o pânico de Bull Run teve apenas uma desculpa: o fato de elas terem sido feitas anteriormente pela imprensa norte-americana.

Os seis meses de tranquilidade que se seguiram à derrota em Manassas foram de melhor proveito para o Norte do que para o Sul. Não somente as fileiras nortistas se preencheram mais do que as sulistas — também seus oficiais receberam melhores instruções. A disciplina e treino das tropas não encontraram os mesmos obstáculos que aqueles encontrados no Sul. Traidores e penetras ineptos foram progressivamente postos de lado, de forma que o período do pânico de Bull Run já ficou relegado ao passado. Os exércitos de ambos os lados, é evidente, não devem ser medidos de acordo com os padrões de grandes exércitos europeus, ou mesmo do antigo exército regular dos Estados Unidos. Napoleão pôde, é fato, treinar batalhões de recrutas imaturos durante o primeiro mês na caserna, enquanto no segundo os fez marchar e no terceiro, atacar o inimigo. Porém, no nosso caso, cada batalhão recebeu um certo número de oficiais e suboficiais não comissionados; cada companhia recebeu uns tantos soldados velhos e, no dia da batalha, as tropas mais jovens foram postas ao lado das veteranas, sendo, por assim dizer, ‘enquadradas’ pelas últimas.

Todos esses pré-requisitos inexistiam no caso da América. Sem uma quantidade considerável da experiência militar que migrou para lá em função das agitações revolucionárias europeias de 1848 e 1849, o exército da União levou um período de tempo muito mais longo para se organizar do que levou para se estruturar. O número bastante modesto de mortos e feridos (em relação ao número total de tropas comprometidas; geralmente uma em cada vinte pessoas) mostra que a maioria dos embates, até mesmo os mais recentes no Kentucky e no Tennessee, realizaram-se a distâncias razoavelmente longas, e que os ataques ocasionais de baioneta logo terminaram, assim que o inimigo cessou fogo ou afugentou seu oponente antes mesmo que uma briga frontal se iniciasse. Enquanto isso, a nova campanha se iniciou com perspectivas mais favoráveis tão logo Buell e Halleck avançaram adentro do Kentucky e do Tennessee.

Após a retomada do Missouri e da Virgínia Ocidental, a União lançou uma campanha em direção ao Kentucky. Ali, os secessionistas mantinham três posições fortes, com acampamentos entrincheirados: Columbus junto ao rio Mississippi, à esquerda, Bowling Green no centro, Mill Springs juntao ao rio Cumberland, à direita. Suas fileiras estendiam-se por mais de 300 milhas de Oeste a Leste. A expansão dessas fileiras tornou impossível aos três batalhões que se apoiassem mutuamente, dando às tropas da União a oportunidade de investir contra cada um deles com força superior. O grande equívoco na disposição do exército secessionista emanou da tentativa de ocupar tudo ao seu redor. Um único acampamento central, forte e entrincheirado, destinado ao campo de batalha para um encontro decisivo e ocupado pelo contingente principal do exército, teria sido capaz de defender o Kentucky com eficácia incomparavelmente maior. Ou havia-se de atrair as forças principais dos unionistas, ou colocá-las em uma posição perigosa de ter de marchar adiante independentemente da alta concentração de tropas à sua frente.

Nas dadas circunstâncias, os unionistas decidiram atacar esses três campos um após o outro, afastando o inimigo para fora dali e forçando-o a aceitar a batalha a céu aberto. Esse plano, que estava de acordo com todas as regras da arte da guerra, foi executado rápido e energicamente. Em meados de janeiro, um batalhão de cerca de 15.000 unionistas marchou sobre Mill Springs, que estava ocupada por 20.000 secessionistas. Os unionistas se moveram de tal maneira que fizeram o inimigo pensar estar lidando apenas com uma milícia fraca.(3) O general [Felix] Zollicoffer caiu imediatamente na armadilha, saindo do acampamento entrincheirado e atacando os unionistas. Mas logo se convenceu de estar confrontando um poder superior. Uma vez que caiu, suas tropas sofreram uma derrota tão decisiva quanto a que os unionistas sofreram em Bull Run. Desta vez, porém, a vitória foi explorada de uma maneira bastante distinta. O exército derrotado foi rigorosamente perseguido até chegar ao acampamento em Mill Springs quebrantado, desmoralizado, sem artilharia de campo ou bagagem. O acampamento em questão fora construído à margem norte do rio Cumberland, de modo que as tropas não teriam recuo aberto no caso de uma nova derrota, exceto pelo rio, por meio de navios a vapor e botes fluviais. Descobrimos que quase todos os campos secessionistas foram construídos no lado inimigo do rio. Essa posição não é apenas adequada, como também muito prática quando há uma ponte às suas costas. Assim, o campo serve de entrada para uma ponte, dando a seus proprietários a chance de disporem suas forças armadas arbitrariamente nas duas margens do rio e, desse modo, obterem comando total sobre ele. Em contrapartida, um acampamento no lado inimigo do rio, sem uma ponte às suas costas, impede a retirada após um embate malsucedido, forçando as tropas a se renderem ou, ainda, a se exporem a massacres e afogamentos, como ocorreu aos Unionistas em Balls Bluff no lado inimigo do rio Potomac, para onde a traição do general Stone os enviou.(4)

Quando os secessionistas derrotados chegaram a seu acampamento em Mill Springs, logo descobriram que deveriam repelir um ataque inimigo contra suas fortificações. Caso contrário, uma capitulação viria dentro de pouco tempo. Após a experiência daquela manhã, perderam a confiança em sua capacidade de resistir. Quando os unionistas marcharam, no dia seguinte, para atacar o acampamento, descobriram que o inimigo havia aproveitado aquela noite para atravessar o rio, deixando para trás acampamento, bagagem, artilharia e suprimentos. Dessa maneira, o lado mais à direita das fileiras secessionistas recuou para o Tennessee e o leste do Kentucky, onde grande parte da população é hostil ao Partido Escravista. Esse lado foi recapturado, afinal de contas, pela União.

Por volta da mesma época — meados de janeiro — iniciaram-se os preparativos para expulsar os secessionistas de Columbus e Bowling Green. Uma frota numerosa de barcos de morteiros e canhoneiras de ferro blindadas foi mantida a postos, e por toda a parte espalharam-se notícias de que seriam usadas por um grande exército que marchava ao longo do rio Mississippi, de Cairo até Memphis e Nova Orleans. No entanto, todo o desfile no Mississippi não passou de uma mera manobra. No momento decisivo, as canhoneiras foram levadas para Ohio e, de lá, para o Tennessee, de onde partiram para o Forte Henry. Esse sítio, junto do Forte Donelson, no rio Cumberland, formava a segunda linha de defesa dos secessionistas no Tennessee. A posição foi bem escolhida, pois no caso de um recuo por detrás do Cumberland, este rio protegeria o front, o Tennessee protegeria o flanco esquerdo, enquanto a faixa estreita de terra entre os dois rios estaria suficientemente protegida pelos dois fortes acima mencionados. No entanto, a ação rápida dos unionistas rompeu a segunda linha antes que o flanco esquerdo e o centro da primeira pudessem ser atacados.

Na primeira semana de fevereiro, as canhoneiras dos unionistas apareceram na frente do Forte Henry, o qual se rendeu após um breve bombardeio. A tropa aquartelada escapuliu para o Forte Donelson já que as forças terrestres da expedição não eram fortes o suficiente para cercar o local. As canhoneiras partiram novamente adentro do rio Tennessee, até Ohio, e de lá para o Cumberland, até o Forte Donelson. Uma única canhoneira navegou destemida pelo rio Tennessee, atravessando o coração daquele estado, patrulhando pelo Mississippi e pelo Florence (no norte do Alabama), onde vários pântanos e bancos de areia (conhecidos pelo nome de mussleshoals) impedem que se navegue adiante.(5) O fato de uma única canhoneira ter feito essa longa jornada de pelo menos 150 milhas e depois retornado sem sofrer nenhum ataque prova que o ardor da União prevalecerá por aquele rio, e as tropas unionistas perseverarão por mais longe que forem.

A expedição naval pelo Cumberland harmonizava seus avanços com os das forças terrestres sob os generais Halleck e Grant. Os secessionistas de Bowling Green se enganaram acerca dos movimentos dos unionistas. Assim, permaneceram calmos em seu acampamento, enquanto uma semana após a queda do Forte Henry, o Forte Donelson foi cercado por 40.000 unionistas e, à margem do rio, encontrou-se ameaçado por uma numerosa frota de canhoneiras, sem dispor de uma ponte para partir em retirada. Este foi o local mais fortificado que os unionistas atacaram até então. A empreitada foi levada a cabo com todo o cuidado; além disso, o local era grande o bastante para prover abrigo aos 20.000 homens que o mantiveram em custódia. No primeiro dia do ataque, as canhoneiras silenciaram a artilharia que abria fogo em direção à margem do rio, bombardeando o interior das defesas, enquanto as tropas terrestres acossavam os postos avançados dos inimigos e forçavam a maioria dos secessionistas a procurarem abrigo bem debaixo do alcance dos canhões de suas próprias defesas. No segundo dia, as canhoneiras, bastante danificadas do dia anterior, deram aparência de estar pouco alinhadas. As tropas terrestres, por sua vez, tiveram de travar uma longa e por vezes acalorada batalha contra as colunas da guarnição, as quais tentaram romper pelo flanco direito do inimigo a fim de assegurar a linha de retirada rumo a Nashville. Contudo, um ataque enérgico da direita dos unionistas pelo flanco esquerdo dos secessionistas, além de reforços significativos recebidos pela ala esquerda dos unionistas, decidiram a vitória a favor do exército na ofensiva. Diversas construções para fora dali foram invadidas. A tropa aquartelada, espremida até suas linhas de defesa internas, sem chance de recuar e claramente incapacitada de resistir a mais um ataque na manhã seguinte, rendeu-se incondicionalmente um dia depois.

[Continuação]

(Die Presse, número 85 de 27 de março de 1862)

Com o Forte Donelson, a artilharia inimiga, seus pertencentes e sortimentos de guerra caíram nas mãos dos unionistas; 30.000 secessionistas renderam-se no dia da captura; mais 1.000, no dia seguinte, e assim que o posto militar dos vencedores chegou a Clarksville, uma cidade mais acima do rio Cumberland, ela abriu seus portões. Provisões significativas, igualmente, tinham sido guardadas ali para os secessionistas.

A captura do Forte Donelson encerra em si um único enigma: a fuga do general Floyd com 5.000 homens no segundo dia do bombardeio. Trata-se de fugitivos numerosos demais para terem zarpado em barcos a vapor durante a noite. Com algumas precauções por parte dos atacantes, eles não teriam sido capazes de escapar.

Sete dias após a rendição do Forte Donelson, Nashville foi ocupada pelos federalistas. A distância entre os dois pontos é de cerca de 100 milhas inglesas, e uma marcha de 15 milhas diárias por trilhas horríveis durante a pior temporada do ano só aumentaria o crédito das tropas da União. Ao receber notícias do caso do Forte Donelson, os secessionistas evacuaram Bowling Green. Uma semana depois deixaram Columbus e se retiraram para uma ilha do Mississippi, a 45 milhas ao Sul. Assim, o Kentucky foi tomado pela União por completo. O Tennessee, contudo, só poderá ser mantido nas mãos dos secessionistas se iniciarem e vencerem uma grande batalha. De fato, eles dizem ter ajuntado 65.000 homens para esse fim. Ainda assim, nada impede que os unionistas resistam com uma força superior.

A condução da campanha do Kentucky, de Somerset até Nashville, é digna dos maiores elogios. A reconquista de uma terra tão vasta, que avança do Ohio até o rio Cumberland, em um único mês, mostra uma energia, determinação e rapidez raramente demonstradas pelos exércitos europeus regulares. Compare-se, por exemplo, com o avanço vagaroso dos aliados de Magenta até Solferino em 1859 —(6) sem perseguição dos inimigos em retirada, sem tentativa de reter seus retardatários ou mesmo de cercar suas tropas por completo.

Halleck e Grant, em particular, oferecem belos exemplos de liderança bélica. Sem a menor deferência em relação a Columbus ou a Bowling Green, concentraram suas forças em pontos decisivos, o Forte Henry e o Forte Donelson, atacarando rápida e vigorosamente, tornando assim Columbus e Bowling Green postos insustentáveis. Em seguida, marcharam imediatamente para Clarksville e Nashville, sem permitir aos secessionistas em retirada que assumissem novas posições ao norte do Tennessee. Durante essa perseguição frenética, os batalhões secessionistas em Columbus permaneceram completamente isolados do centro e da ala direita de seu exército. Jornais ingleses censuraram esta operação sem razão. Mesmo que o ataque ao Forte Donelson fracassasse, os secessionistas de Bowling Green, sob comando do general Buell, não dariam conta de destacar uma equipe grande o suficiente perseguir os unionistas feridos em campo aberto ou para oferecer perigo em sua retirada. Columbus, por outro lado, estava tão longe que não conseguiu intervir nos movimentos de Grant. De fato, depois que os unionistas limparam o Missouri de secessionistas, Colombus se tornou um posto completamente inútil. As tropas que formavam sua guarnição tiveram de acelerar sua retirada rumo a Memphis ou ao Arkansas para não correrem o risco de uma capitulação vergonhosa.

Como consequência do expurgo do Missouri e da reconquista do Kentucky, o teatro de guerra se estreitou a tal ponto que os diferentes exércitos ao longo de toda a linha de operação puderam agir em conjunto, em certa medida, e trabalhar para alcançar os mesmos resultados. Em outras palavras, só agora a guerra está assumindo um caráter estratégico, e a configuração geográfica do país está ganhando um interesse renovado. Cabe agora aos generais do norte que encontrem o calcanhar de Aquiles dos estados algodoeiros.

Até a captura de Nashville, nenhuma unidade estratégica entre o exército do Kentucky e o exército do Potomac fora possível. Eles estavam em postos muito distantes entre si. Localizavam-se na mesma linha de frente, embora suas linhas de operação fossem muito distintas. Foi somente com o avanço vitorioso no Tennessee que os movimentos do exército do Kentucky se tornaram importantes para o resto do teatro de guerra.

Os jornais americanos influenciados por McClellan estão fazendo muita história com a “teoria do envoltório de anaconda”. Segundo a tal teoria, uma imensa linha de exércitos deve envolver a rebelião, juntando os membros para si aos poucos para então, finalmente, estrangular o inimigo. Isso é pura infantilidade. É um tipo de aquecimento do chamado Sistema de cordão [Kordonsystem] criado pela Áustria em meados de 1770, que foi usado contra os franceses de 1792 a 1797, com imensa obstinação e sempre resultando em fracasso. Para Jemappes, Fleurus e especialmente Montenotte, Millesimo, Dego, Castiglione e Rivoli, esse é um sistema de batalhas defunto. Os franceses cortaram a tal “anaconda” ao meio, atacando no ponto onde concentrava força superior. Em seguida, os pedaços da anaconda foram picados, um atrás do outro.

Em países bem povoados e mais ou menos centralizados, sempre existe um centro onde uma ocupação inimiga eventualmente romperia com a resistência nacional. Paris é um caso exemplar. Os estados escravagistas, porém, não dispõem desse centro. Eles são escassamente povoados, com poucas cidades grandes e com todas localizadas no litoral marítimo. Daí surge a pergunta: será que existe, apesar disso, um ponto gravitacional militar cuja captura quebraria a espinha dorsal da resistência? Ou, como a Rússia em 1812, não seria possível conquistá-lo sem ter que fazer o mesmo com cada vilarejo e cada ponto — em suma, sem ter que conquistar toda a sua periferia?

Dê uma olhada na configuração geográfica da Secéssia,(7) com seu litoral alongado pelo Oceano Atlântico e seu litoral alongado adentro do Golfo do México. Enquanto os confederados tinham o Kentucky e o Tennessee em seu poder, o todo do território formava uma massa enorme e compacta. A perda desses dois estados gerou uma grande lacuna no território, que separa os estados do norte do Oceano Atlântico dos estados do Golfo do México. A via direta da Virgínia e das duas Carolinas rumo ao Texas, Louisiana, Mississippi, além de, parcialmente, até o Alabama, passa pelo Tennessee, que agora foi capturado pelos unionistas. A única via que liga as duas porções de estados escravocratas depois de o Tennessee ter sido conquistado pela União passa pela Geórgia. Isso prova que a Geórgia é a chave para Secéssia. Com a perda da Geórgia, a Confederação seria dividida em duas seções cujos laços entre si se romperiam por completo. Uma reconquista secessionista da Geórgia dificilmente seria possível, já que as forças armadas unionistas estariam concentradas em uma posição central, enquanto seus oponentes, separados em dois campos, dificilmente teriam forças suficientes para atacar em conjunto.

Será que a conquista de toda a Geórgia e do litoral da Flórida ocasionaria uma tal operação? De modo algum. Em uma terra onde a comunicação, especialmente entre pontos apartados, depende muito mais das ferrovias do que das estradas, basta que se removam as ferrovias [para fazer isso acontecer]. A linha ferroviária mais ao Sul, entre os estados do Golfo do México e a Costa Atlântica, passa por Macon e Cordon, perto de Milledgeville.

A ocupação desses dois pontos, portanto, cortaria Secéssia ao meio, permitindo aos unionistas atacar um posto atrás do outro. Pode-se observar, com base no que foi exposto acima, que nenhuma república sulista é viável sem a posse do Tennessee. Sem o Tennessee, o centro vital da Geórgia fica apenas a oito ou dez dias de marcha da fronteira; o Norte agarraria o pescoço do Sul firmemente e, com a menor pressão, este teria ou que ceder, ou então que lutar por sua vida, em circunstâncias em que uma única derrota eliminaria qualquer perspectiva de sucesso.

Da exposição anterior, segue-se:

O Potomac não é o posto mais importante no teatro de guerra. A tomada de Richmond e o avanço do exército do Potomac, mais ao Sul — dificultoso em função das muitas correntes fluviais que cortam a linha de marcha — poderão ter um tremendo efeito contra a moral dos soldados. Do ponto de vista puramente militar, essas medidas não decidiriam nada.

O poder de decidir a campanha está nas mãos do exército do Kentucky, neste momento localizado no Tennessee. Por um lado, esse exército está mais próximo dos pontos decisivos [para a guerra]; por outro, ocupa um território sem o qual a Secessão é incapaz de existir. Portanto, esse exército deveria ser fortalecido às custas de todos os outros e a custo do sacrifício de todas as operações menores. Seus próximos alvos seriam Chattanooga e Dalton, no Alto Tennessee, os principais centros ferroviários do Sul. Após a ocupação desses postos, a conexão entre os estados a leste e oeste de Secéssia estaria limitada às linhas ferroviárias da Geórgia. Seria então questão de cortar mais uma linha ferroviária entre Atlanta e Geórgia para que, finalmente, se destruísse o último elo entre as duas seções com a captura de Macon e Cordon.

Se, por outro lado, o “plano da Anaconda” for levado a cabo, apesar de todos os sucessos individuais, mesmo no Potomac, a guerra poderia se estender indefinidamente, ao passo que dificuldades financeiras e complicações diplomáticas ganhariam uma nova margem.


Notas:

(1) James Buchanan foi o 15º presidente dos EUA (1857-1861). (retornar ao texto)

(2) No original consta Ost-Virgina (Virgínia do Leste), o que de um ponto de vista político-geográfico é um equívoco.(retornar ao texto)

(3) No original, Streifkorps. Termo intraduzível e próprio do Império Austro-húngaro, designava pequenas unidades militares que lutavam atrás das linhas inimigas e visavam, sobretudo, se valer de táticas de guerrilha para atrasar as linhas de comunicação do exército inimigo. (retornar ao texto)

(4) Ver linha do tempo. (retornar ao texto)

(5) Os autores provavelmente escreveram conforme ouviram o nome do local, Muscle Shoals, cidade ao extremo norte do estado do Alabama. (retornar ao texto)

(6) Os autores se referem ao conflito decisivo para a unificação da Itália, a maior batalha europeia daquele século desde o conflito de Napoleão Bonaparte em Leipzig, em 1813. Nela, Napoleão III da França e Victor Emanuel II da Sardenha derrotaram o Império Austro-húngaro de Franz Joseph, levando ao armistício de Villafranca e a criação do reino da Itália no ano seguinte. (retornar ao texto)

(7) O termo Secéssia [algo como “terra da divisão”] foi inventado por Marx e era usado em tom jocoso para se referir à Confederação. (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022