Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão[N1]

Karl Marx

Maio de 1875

Transcrição autorizada
Hiper Link para Editora Avante

Primeira Edição: Escrito em Abril-princípio de Maio de 1875. Publicado (com omissões) na revista Die Neue Zeit, Bd. 1, n.° 18, 1890-1891.Publicado segundo o texto do manuscrito, confrontado com o da revista. Traduzido do alemão.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial"Avante!"
Tradução: José BARATA-MOURA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, março 2009.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


I

1. «O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura e, uma vez que todo o trabalho que traz proveito [nutzbringend] só é possível na sociedade e pela sociedade, o provento do trabalho pertence não reduzidamente [unverkürzt], por igual direito, a todos os membros da sociedade.»

capa

Primeira parte do parágrafo: «O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura.»

O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A Natureza é tanto a fonte dos valores de uso (e é bem nestes que, todavia, consiste a riqueza material [sachlich]!) como o trabalho, que não é ele próprio senão a exteriorização de uma força da Natureza, a força de trabalho humana. Aquela frase encontra-se em todos os abecedários para crianças e está correcta se se subentender que o trabalho se processa com os objectos e meios pertinentes. Um programa socialista, porém, não pode permitir a semelhantes maneiras de dizer burguesas que silenciem as condições que lhes dão — só elas — um sentido. Só(1*) enquanto o homem, desde o princípio, se comporta para com a Natureza — a primeira fonte de todos os meios de trabalho e objectos de trabalho — como proprietário, a trata como pertencendo-lhe, o seu trabalho se torna fonte de valores de uso, portanto, também de riqueza. Os burgueses têm muito boas razões para atribuírem falsamente ao trabalho uma força criadora sobrenatural; pois, precisamente, do condicionamento do trabalho pela Natureza segue-se que o homem que não possuir nenhuma outra propriedade senão a sua força de trabalho tem que ser, em todos os estados de sociedade e de cultura, escravo dos outros homens que se fizeram proprietários das condições objectivas do trabalho. Ele só pode trabalhar com a autorização deles, portanto, ele só com a autorização deles pode viver.

Deixemos agora a proposição tal como está, ou antes: [tal como] coxeia. Que se esperaria como conclusão? Manifestamente, isto:

«Uma vez que o trabalho é a fonte de toda a riqueza, na sociedade, também ninguém se pode apropriar de riqueza, a não ser como produto do trabalho. Se, portanto, ele próprio não trabalha, vive de trabalho alheio [fremd] e apropria-se também da sua cultura à custa de trabalho alheio.»

Em vez disto, pelo rebite-verbal «e, uma vez» é acrescentada uma segunda proposição, para tirar, a partir dela, e não a partir da primeira, uma conclusão.

Segunda parte do parágrafo: «Trabalho que traz proveito só é possível na sociedade e pela sociedade.»

Segundo a primeira proposição, o trabalho era a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura; portanto, também não [era] possível nenhuma sociedade sem trabalho. Verificamos agora, inversamente, que nenhum trabalho «que traz proveito» é possível sem sociedade.

Poder-se-ia ter dito do mesmo modo que só na sociedade um trabalho sem proveito [nutzlos] e mesmo nocivo à comunidade se pode tornar um ramo de indústria, que só na sociedade se pode viver de ociosidade, etc, etc. — em suma, poder-se-ia transcrever o Rousseau todo.

E que é trabalho «que traz proveito»? Sempre só o trabalho que produz o efeito de proveito [Nutzeffekt] proposto. Um selvagem — e o homem é selvagem depois de ter deixado de ser macaco — que mata um animal com uma pedra, que recolhe frutos, etc, executa trabalho «que traz proveito».

Em terceiro lugar: a conclusão: «E, uma vez que o trabalho que traz proveito só é possível na sociedade e pela sociedade — o provento do trabalho pertence não reduzidamente, por igual direito, a todos os membros da sociedade.»

Bonita conclusão! Se o trabalho que traz proveito só é possível na sociedade e pela sociedade, o provento do trabalho pertence à sociedade — e ao trabalhador individual só cabe, dele, tanto quanto o que não seja preciso para manter a «condição» do trabalho: a sociedade.

De facto, esta proposição também foi feita valer, em todos os tempos, pelos defensores do estado da sociedade na altura. Primeiro, vêm as pretensões do governo, com tudo o que se lhe prende, pois ele é o órgão social para a manutenção da ordem social; depois, vêm as pretensões das diversas espécies de proprietários privados(2*), pois as diversas espécies de propriedade privada são a base da sociedade, etc. Vê-se que se podem voltar e virar semelhantes frases ocas como se quiser.

A primeira e a segunda parte do parágrafo só têm alguma conexão inteligível nesta formulação:

«O trabalho, só como trabalho social, se torna fonte da riqueza e da cultura» ou, o que é o mesmo: «na e pela sociedade».

Esta proposição é incontestavelmente correcta, pois, se o trabalho isolado (pressupostas as suas condições materiais [sachliche]) também pode criar valores de uso, ele não pode criar nem riqueza nem cultura.

Mas tão incontestável é a outra proposição:

«Na medida em que o trabalho se desenvolve socialmente e se torna, assim, fonte de riqueza e cultura, desenvolvem-se a pobreza e a degradação, do lado do trabalhador, a riqueza e a cultura, do lado do não-trabalhador.»

Esta é a lei de toda a história até hoje. Em vez de maneiras de dizer gerais sobre «o trabalho» e «a sociedade», era, portanto, de provar aqui determinadamente como é que, na actual sociedade capitalista, são finalmente criadas as condições materiais [materielle], etc, que habilitam e constrangem os trabalhadores a quebrar aquela maldição histórica(3*).

De facto, porém, o parágrafo todo — estilisticamente e pelo conteúdo: falhado — sólá está para que se inscreva como palavra de ordem no topo da bandeira do Partido a palavra-chave de Lassalle do «provento não reduzido do trabalho». Voltarei mais tarde ao «provento do trabalho», ao «igual direito», etc, uma vez que a mesma coisa regressa de novo sob uma forma algo diferente.

2. «Na sociedade de hoje, os meios de trabalho são monopólio da classe dos capitalistas; a dependência da classe operária, condicionada por isso, é a causa da miséria e da servidão sob todas as formas.»

Esta proposição, tirada do Estatuto internacional(4*), nesta edição «melhorada», é falsa.

Na sociedade de hoje, os meios de trabalho são monopólio dos proprietários fundiários (o monopólio da propriedade fundiária é mesmo a base do monopólio do capital) e dos capitalistas. O Estatuto internacional, no passo respectivo, não nomeia nem uma nem outra classe dos monopolistas. Fala de «monopólio dos meios de trabalho, isto é, das fontes de vida»; o aditamento «fontes de vida» mostra suficientemente que a terra [Grund und Boden] está compreendida nos meios de trabalho.

O melhoramento foi introduzido porque Lassalle, por razões hoje universalmente conhecidas, atacava a classe dos capitalistas, não os proprietários fundiários. Na Inglaterra, o capitalista, a maior parte das vezes, nem sequer é o proprietário da terra em que a sua fábrica está.

3. «A libertação do trabalho requer a elevação dos meios de trabalho a bem comum da sociedade e a regulamentação co-operativa [genossenschaftlich] do trabalho total com repartição justa do provento do trabalho.»

«Elevação dos meios de trabalho a bem comum»! Deve, sem dúvida, querer dizer a sua «transformação em bem comum». Contudo, isto só de passagem.

Que é «provento do trabalho»! O produto do trabalho ou o seu valor? E, no último caso, o valor total do produto ou apenas a parte de valor que o trabalho acrescentou de novo ao valor dos meios de produção consumidos?

«Provento do trabalho» é uma representação vaga que Lassalle pôs no lugar de conceitos económicos determinados.

Que é repartição «justa»?

Não afirmam os burgueses que a repartição actual é «justa»? E, de facto, não é ela a única repartição «justa» na base do modo de produção actual? Regulam-se as relações económicas por conceitos jurídicos ou não nascem, inversamente, as relações jurídicas das económicas? Não têm também os sectários socialistas as representações mais diversas sobre repartição «justa»?

Para saber o que se quer representar, nesta oportunidade, com a frase «repartição justa» temos de confrontar o primeiro parágrafo com este. Este último subentende uma sociedade em que «os meios de trabalho são bem comum e o trabalho total é regulado co-operativamente» e, pelo primeiro parágrafo, vimos que «o provento do trabalho pertence não reduzidamente, por igual direito, a todos os membros da sociedade».

«A todos os membros da sociedade»? Também aos que não trabalham? Que acontece, então, ao «provento não reduzido do trabalho»? [É] só para os membros da sociedade que trabalham? Que acontece, então, «ao igual direito» de todos os membros da sociedade?

Mas «todos os membros da sociedade» e «o igual direito» são manifestamente apenas maneiras de dizer. O cerne consiste em que, nesta sociedade comunista, cada trabalhador tem que receber o seu(5*) lassalliano «provento não reduzido do trabalho».

Se tomarmos, primeiro que tudo, as palavras «provento do trabalho» no sentido do produto do trabalho, então, o provento co-operativo do trabalho é o produto social total.

A isso há, então, que deduzir:

Em primeiro lugar: cobertura para reposição dos meios de produção gastos.

Em segundo lugar: uma parte adicional para expansão da produção.

Em terceiro lugar: um fundo de reserva ou de seguro contra acidentes, perturbações por fenómenos naturais, etc.

Estas deduções ao «provento não reduzido do trabalho» são uma necessidade económica e há que determinar a sua grandeza segundo os meios e as forças disponíveis, em parte por cálculo de probabilidades, mas de modo nenhum elas são calculáveis a partir da justiça.

Fica a outra parte do produto total, destinada a servir de meio de consumo.

Antes de se chegar à repartição individual, retira-se de novo dela:

Em primeiro lugar: os custos de administração gerais, não directamente(6*) pertencentes à produção.

Esta parte será, desde o início, limitada do modo mais significativo, em comparação com a sociedade actual, e diminui na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.

Em segundo lugar: o que está destinado à satisfação comunitária de necessidades, como escolas, serviços sanitários, etc.

Esta parte cresce significativamente, desde o início, em comparação com a sociedade actual e cresce na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.

Em terceiro lugar: fundo para os incapazes de trabalho, etc, para o que hoje pertence à chamada assistência aos pobres oficial.

Só agora chegamos à «repartição» que o programa, sob a influência de Lassalle, tem em vista — [e] apenas de um modo tacanho —, a saber: à parte dos meios de consumo que são repartidos entre os produtores individuais da [sociedade] co-operativa.

O «provento não-reduzido do trabalho» já se transformou por baixo de mão em «reduzido», se bem que aquilo que não vai para o produtor na sua qualidade de indivíduo privado lhe venha a caber, directa ou indirectamente, na sua qualidade de membro da sociedade.

Assim como a frase do «provento não-reduzido do trabalho» se desvaneceu, desvanece-se agora a frase do «provento do trabalho» em geral.

No interior da sociedade co-operativa, fundada no património comum dos bens de produção, os produtores não trocam os seus produtos; tão-pouco aparece aqui o trabalho empregue nos produtos como valor desses produtos, como uma qualidade material [sachlich] possuída por eles, uma vez que agora, em oposição à sociedade capitalista, os trabalhos individuais não existem mais enviesadamente, mas imediatamente, como partes componentes do trabalho total. As palavras «provento do trabalho», rejeitáveis hoje em dia também por causa da sua ambiguidade, perdem, assim, todo o sentido.

Aquilo com que temos aqui a ver é com uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, inversamente, tal como precisamente ela sai da sociedade capitalista; [uma sociedade comunista], portanto, que, sob todos os aspectos — económicos, de costumes, espirituais —, ainda está carregada das marcas da velha sociedade, de cujo seio proveio. Em conformidade, o produtor individual recebe de volta — depois das deduções — aquilo que ele lhe deu. Aquilo que ele lhe deu é o seu quantum individual de trabalho. Por exemplo, o dia social de trabalho consiste na soma das horas de trabalho individuais. O tempo de trabalho individual do produtor individual é a parte do dia social de trabalho por ele prestada, a sua participação nele. Ele recebe da sociedade um certificado em como, desta e daquela maneira, prestou tanto trabalho (após dedução do seu trabalho para o fundo comunitário) e, com esse certificado, extrai do depósito social de meios de consumo tanto quanto o mesmo montante de trabalho custa. O mesmo quantum de trabalho que ele deu à sociedade sob uma forma, recebe-o ele de volta sob outra.

Reina aqui manifestamente o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que ela é troca de equivalentes. Conteúdo e forma alteraram-se, porque, nas circunstâncias alteradas, ninguém pode dar algo excepto o seu trabalho e porque, por outro lado, nada pode transitar para a propriedade dos indivíduos a não ser meios de consumo individuais. Porém, no que diz respeito à repartição dos últimos entre os produtores individuais, reina o mesmo princípio do que na troca de mercadorias equivalentes, o mesmo montante de trabalho sob uma forma é trocado pelo mesmo montante de trabalho sob outra.

O direito igual é aqui, portanto, sempre ainda — segundo os princípios — o direito burguês, se bem que princípio e prática já não se andem a puxar os cabelos, enquanto a troca de equivalentes na troca de mercadorias só existe em média e não para o caso individual.

Apesar deste progresso, este igual direito está ainda constantemente carregado com uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao seu fornecimento de trabalho; a igualdade consiste em que ele é medido por uma escala igual: o trabalho. Mas um [indivíduo] é física ou espiritualmente superior a outro; fornece, portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar durante mais tempo; e o trabalho, para servir de medida, tem que ser determinado segundo a extensão ou a intensidade, senão cessaria de ser escala [de medida]. Este igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Não reconhece nenhumas diferenças de classes, porque cada um é apenas tão trabalhador como o outro; mas, reconhece tacitamente o desigual dom individual — e, portanto, [a desigual] capacidade de rendimento dos trabalhadores(7*) — como privilégios naturais. E, portanto, um direito da desigualdade, pelo seu conteúdo, como todo o direito. O direito, pela sua natureza, só pode consistir na aplicação de uma escala igual; mas, os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diversos se não fossem desiguais) só são medíveis por uma escala igual, desde que sejam colocados sob um ponto de vista igual, desde que sejam apreendidos apenas por um lado determinado, por exemplo, no caso presente, desde que sejam considerados como trabalhadores apenas e que se não veja neles nada mais, desde que se abstraia de tudo o resto. Além disso: um trabalhador é casado, o outro não; um tem mais filhos do que o outro, etc, etc. Com um rendimento de trabalho igual — e, portanto, com uma participação igual no fundo social de consumo — um recebe, pois, de facto, mais do que o outro, um é mais rico do que o outro, etc. Para evitar todos estes inconvenientes, o direito, em vez de igual, teria antes(8*) de ser desigual.

Mas, estes inconvenientes são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como precisamente saiu da sociedade capitalista, após longas dores de parto. O direito nunca pode ser superior à configuração económica — e ao desenvolvimento da cultura por ela condicionado — da sociedade.

Numa fase superior da sociedade comunista, depois de ter desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho espiritual e corporal; depois de o trabalho se ter tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital; depois de, com o desenvolvimento omnilateral dos indivíduos, as suas forças produtivas(9*) terem também crescido e todas as fontes manantes da riqueza co-operativa jorrarem com abundância — só então o horizonte estreito do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!

Alarguei-me sobre o «provento não-reduzido do trabalho», por um lado, sobre «o direito igual», «a repartição justa», por outro lado, para mostrar quão criminoso é, por um lado, querer-se impor de novo como dogmas ao nosso Partido representações que num certo tempo tiveram sentido, mas que agora se tornaram uma tralha antiquada de frases, e que, por outro lado, falseiam a concepção realista — que tão penosamente foi inculcada no Partido, mas que lançou raízes nele — novamente através de balelas ideológicas jurídicas e outras, tão correntes entre os democratas e os socialistas franceses.

Abstraindo do até aqui desenvolvido, era em geral erróneo fazer da chamada repartição algo de essencial e pôr nela o principal acento.

Em qualquer altura, a repartição dos meios de consumo é apenas consequência da repartição das próprias condições da produção; esta última repartição, porém, é um carácter do próprio modo de produção. O modo de produção capitalista, por exemplo, repousa em que as condições materiais [sachliche] da produção estão repartidas entre não-trabalhadores, sob a forma de propriedade de capital e propriedade de terra, enquanto a massa é apenas proprietária da condição pessoal de produção: a força de trabalho. Se os elementos da produção se repartem desta maneira, a repartição actual dos meios de consumo segue-se por si própria. Se as condições materiais [sachliche] da produção forem propriedade co-operativa dos próprios trabalhadores, segue-se, do mesmo modo, uma repartição dos meios de consumo diversa da actual. O socialismo vulgar (e, por ele, por seu turno, uma parte da democracia) herdou dos economistas burgueses o considerar e o tratar a distribuição independentemente do modo de produção e o expor, portanto, o socialismo como girando principalmente em torno da distribuição. Depois da relação real estar de há muito posta a claro, porquê voltar a trás?

4. «A libertação do trabalho tem que ser obra da classe operária, em face da qual todas as outras classes são uma só massa reaccionária.»

A primeira estrofe é tirada das palavras introdutórias dos Estatutos internacionais, mas «melhorada». Diz-se lá: «A libertação da classe operária tem que ser o feito dos próprios operários»(10*); aqui, pelo contrário, «a classe operária» tem que libertar — o quê? «O trabalho.» Compreenda quem puder.

Em compensação, a antístrofe é, pelo contrário, uma citação de Lassalle, da mais pura água: «em face da qual (da classe operária) todas as outras classes formam uma só massa reaccionária».

No Manifesto Comunista diz-se:

«De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia, só o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As restantes classes desmoronam-se e soçobram com a grande indústria; o proletariado é dela o produto mais próprio.»(11*)

A burguesia é aqui apreendida como classe revolucionária — como portadora da grande indústria — face aos feudais e estados médios [Mittelstände] que querem manter todas as posições sociais que são obra de modos de produção antiquados. Não formam, portanto, juntamente com a burguesia, uma só massa reaccionária.

Por outro lado, o proletariado é revolucionário face à burguesia, porque, crescido ele próprio do solo da grande indústria, se esforça por despojar a produção do carácter capitalista que a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta: que os «estados médios [Mittelstände]... (se tornam) revolucionários... em vista da sua passagem iminente para o proletariado»(12*).

Deste ponto de vista, é, portanto, de novo um contra-senso que elas «juntamente com a burguesia» e, sobretudo, com os feudais, face à classe operária, «formem uma só massa reaccionária».

Recordou-se, aquando das últimas eleições, aos artesãos, aos pequenos industriais, etc, e aos camponeses: face a nós, formais com burgueses e feudais uma só massa reaccionária?

Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunista, tal como os seus crentes [sabem] os sagrados escritos da autoria dele. Se, portanto, ele o falsificou tão grosseiramente, isso só aconteceu para embelezar a sua aliança com os adversários absolutistas e feudais contra a burguesia.

No parágrafo acima, aliás, o seu sábio versículo é tirado a ferros, sem nenhuma conexão com a citação atamancada dos Estatutos da Internacional. É, portanto, aqui uma simples impertinência e, com efeito, de modo nenhum desagradável ao senhor Bismarck: uma daquelas grosserias baratas em que o Marat de Berlim(13*) negoceia.

5. «A classe operária age pela sua libertação, antes do mais, no quadro do Estado nacional hodierno, consciente de que o resultado necessário do seu esforço, que é comum aos operários de todos os países civilizados [Kulturlãnde], será a fraternidade internacional dos povos.»

Em oposição ao Manifesto Comunista e a todo o socialismo anterior, Lassalle concebia o movimento operário do ponto de vista nacional mais estreito. É seguido nisso — e isto depois da acção da Internacional!

É totalmente evidente que, para em geral poder lutar, a classe operária tem de se organizar, no seu país, como classe e que o interior [Inland] é a cena imediata da sua luta. Nesta medida, não pelo conteúdo, mas, como o Manifesto Comunista diz, «pela forma», a luta de classes é para ela nacional. Mas, o «quadro do Estado nacional hodierno», por exemplo, do Império alemão, está ele próprio, por seu turno, economicamente «no quadro do mercado mundial», politicamente «no quadro do sistema dos Estados». Qualquer negociante sabe que o comércio alemão é, ao mesmo tempo, comércio externo e que a grandeza do senhor Bismarck consiste, precisamente, na sua(14*) espécie de política internacional.

E a que reduz o Partido Operário Alemão o seu internacionalismo? A consciência de que o resultado do seu esforço «será a fraternidade internacional dos povos» — uma frase tomada da Liga burguesa da Paz e da Liberdade[N10] que deveria passar por equivalente da fraternidade internacional das classes operárias na luta comum contra as classes dominantes e os seus governos. Acerca das funções internacionais da classe operária alemã, portanto, nem uma palavra! E, assim, ela deve dobrar a parada à sua própria burguesia, irmanada já contra ela com a burguesia de todos os outros países, e á política de conspiração internacional do senhor Bismarck!

De facto, a profissão de fé internacional do Programa fica ainda infinita [e] profundamente abaixo da do Partido do Comércio Livre. Também ele pretende que o resultado do seu esforço é «a fraternidade internacional dos povos». Porém, ele também faz alguma coisa para tornar internacional o comércio e de modo nenhum se contenta com a consciência — de que todos os povos, nos seus países, fazem comércio.

A actjvidade internacional das classes operárias não depende de maneira alguma da existência da «Associação Internacional dos Trabalhadores». Esta foi apenas a primeira tentativa de criar um órgão central para aquela actividade; uma tentativa que, pelo impulso que deu, teve consequências duradouras, mas que, na sua primeira forma histórica, não era prolongável mais tempo após a queda da Comuna de Paris.

A Norddeutsche de Bismarck estava completamente na razão quando, para satisfação do seu amo, anunciava que o Partido Operário Alemão, no seu novo programa, tinha abjurado do internacionalismo[N11].

II

«Partindo destes princípios, o Partido Operário Alemão aspira, por todos os meios legais, ao Estado livre e — à sociedade socialista; à supressão do sistema assalariado [juntamente] com a lei de bronze do salário — e — da exploração sob qualquer figura; à eliminação de toda a desigualdade social e política.»

Mais adiante voltarei ao Estado «livre».

Portanto, no futuro, o Partido Operário Alemão tem de acreditar na «lei de bronze do salário» de Lassalle! Para que ela não se perca, comete-se o contra-senso de falar de «supressão do sistema assalariado» (devia querer-se dizer: sistema do trabalho assalariado) «[juntamente] com a lei de bronze do salário». Se suprimo o trabalho assalariado, suprimo naturalmente também as suas leis, sejam elas «de bronze» ou de esponja. Mas, a luta de Lassalle contra o trabalho assalariado gira quase só em torno desta chamada lei. Para provar, portanto, que a seita de Lassalle venceu, o «sistema assalariado» tem que ser suprimido «[juntamente] com a lei de bronze do salário» e não sem ela.

Como é sabido, da «lei de bronze do salário» não pertence a Lassalle senão as palavras «de bronze», tomadas das «grandes leis eternas, de bronze» de Goethe(15*). As palavras de bronze são o sinal pelo qual se reconhecem os ortodoxos. Se, porém, tomo a lei com o cunho de Lassalle — e, portanto, no sentido dele —, tenho também de a tomar com a sua fundamentação. E qual é ela? Como Lange(16*) mostrou já, pouco tempo depois da morte de Lassalle: [é] a teoria da população de Malthus (pregada pelo próprio Lange). Mas se esta é correcta, de novo, eu não posso abolir a lei, mesmo que abolisse cem vezes o trabalho assalariado, porque a lei domina, então, não só o sistema do trabalho assalariado, mas qualquer sistema social. Estribando-se precisamente nisto, os economistas provaram, desde há cinquenta anos e mais, que o socialismo não pode suprimir a miséria, fundada na Natureza, mas apenas universalizá-la, [apenas a pode] repartir, simultaneamente, por toda a superfície da sociedade!

Mas tudo isto não é o principal. Abstraindo totalmente da falsa versão de Lassalle da lei, o passo atrás verdadeiramente revoltante consiste nisto:

Desde a morte de Lassalle, abriu caminho no nosso Partido a perspectiva científica de que o salário do trabalho não é aquilo que parece ser, a saber: o valor ou preço do trabalho, mas apenas uma forma mascarada do valor ou preço da força de trabalho. Com isso, toda a concepção burguesa até hoje do salário do trabalho, assim como toda a crítica até hoje dirigida contra ela, foram deitadas pela borda fora e foi tornado claro que o operário assalariado só tem autorização para trabalhar para a sua própria vida, quer dizer: para viver, desde que trabalhe de graça um certo tempo para o capitalista (por isso também para aqueles que, com este, se alimentam de mais-valia); que todo o sistema de produção capitalista gira em torno do prolongar esse trabalho grátis, pela extensão do dia de trabalho ou pelo desenvolvimento da produtividade,(17*) maior tensão da força de trabalho, etc; que, portanto, o sistema do trabalho assalariado é um sistema de escravatura e mesmo de uma escravatura que se tornou mais dura na mesma medida em que se desenvolvem as forças produtivas sociais do trabalho, quer o operário receba um pagamento melhor ou pior. E, depois desta perspectiva ter aberto cada vez mais caminho dentro do nosso Partido, regressa-se aos dogmas de Lassalle, apesar de que agora se tivesse de saber que Lassalle não sabia o que o salário do trabalho era, mas, no seguimento dos economistas burgueses, tomava a aparência [Schein] pela essência das coisas.

É como se, entre escravos que finalmente tjvessem penetrado no segredo da escravatura e tivessem irrompido em rebelião, um escravo prisioneiro de representações antiquadas escrevesse no programa da rebelião: a escravatura tem de ser abolida porque, no sistema da escravatura, o sustento dos escravos não pode exceder um certo máximo baixo!

O simples facto de que os representantes do nosso Partido tenham sido capazes de cometer um atentado tão monstruoso contra a perspectiva espalhada entre a massa do Partido — não prova senão com que ligeireza <criminosa>(18*), <com que falta de consciência>, eles se puseram ao trabalho na redacção do programa de compromisso!

Em vez da frase indeterminada de conclusão do programa, «a eliminação de toda a desigualdade social e política», havia que dizer que, com a abolição das diferenças de classes, se desvanece por si toda a desigualdade social e política que delas surge.

III

«O Partido Operário Alemão reclama, para preparar a via para a solução da questão social, o estabelecimento de cooperativas produtivas com ajuda do Estado, sob o controlo democrático do povo trabalhador. Há que chamar à vida as cooperativas produtivas, para a indústria e a agricultura, num volume tal que surja delas a organização socialista do trabalho total.»

Depois da «lei de bronze do salário» de Lassalle, o remédio santo do profeta! É «preparada a via» de uma maneira digna! Para o lugar da luta de classes existente entra a frase de escriba de jornal — «a questão social», para cuja «solução» se «prepara a via». Em vez de «surgir» do processo de transformação revolucionário da sociedade, a «organização socialista do trabalho total» [surge] da «ajuda do Estado», que o Estado dá às cooperativas produtivas, que ele, [e] não os operários, «chama à vida». Que se pode construir com apoio do Estado uma sociedade nova do mesmo modo que um caminho-de-ferro novo, é [bem] digno da imaginação de Lassalle!

Por <um resto de> vergonha, coloca-se «a ajuda do Estado» — «sob o controlo democrático do povo trabalhador».

Em primeiro lugar, «o povo trabalhador», na Alemanha, consiste, na sua maioria, em camponeses e não em proletários.

Em segundo lugar, «democrático» em alemão significa «de dominação pelo povo» [volksherrschaftlich]. Que significa, porém, «o controlo de dominação pelo povo do povo trabalhador»? E, precisamente, para um povo trabalhador que, por esta reivindicação que apresenta ao Estado, expressa a sua completa consciência de que nem está na dominação [Herrschaft] nem está maduro para a dominação!

É supérfluo entrar aqui na crítica da receita prescrita por Buchez, sob Louis-Philippe, em oposição aos socialistas franceses e adoptada pelos operários reaccionários do Atelier[N12]. O escândalo principal também não reside em que se tenha escrito essa cura milagrosa específica no programa, mas em que, em geral, se tenha regredido do ponto de vista do movimento de classes para o do movimento de seitas.

Que os operários querem estabelecer as condições da produção co-operativa à escala social e, de início, entre eles, portanto, à escala nacional, significa apenas que eles trabalham no revolucionamento das condições actuais da produção, e não tem nada de comum com a fundação de sociedades cooperativas com ajuda do Estado! No que, porém, diz respeito às actuais sociedades cooperativas, elas têm valor na medida em que são criações dos operários, independentes, nem protegidas pelos governos, nem pelo burguês.

[IV]

Chego agora à secção democrática.

A. «Base livre do Estado.»

Antes do mais, segundo II, o Partido Operário Alemão aspira «ao Estado livre».

Estado livre — que é isso?

Não é de modo nenhum objectivo dos operários que se livraram do entendimento limitado dos submetidos tornar o Estado «livre». No Império alemão, o «Estado» é quase tão «livre» como na Rússia. A liberdade consiste em transformar o Estado de órgão sobreordinado [übergeordnet] à sociedade em [órgão] a ela inteiramente subordinado [untergeordnet] e hoje em dia também as formas de Estado são mais livres ou menos livres na medida em que elas limitam a «liberdade do Estado».

O Partido Operário Alemão — pelo menos, se fizer seu o programa — mostra como nele as ideias socialistas nem sequer estão à flor da pele, uma vez que, em vez de tratar a sociedade existente (e isto vale para toda a [sociedade] futura) como base [Grundlage] do Estado existente (ou futuro, para a sociedade futura), trata antes o Estado como um ser autónomo, que possui as suas próprias «bases espirituais de costumes e liberais».

E já agora, que desbragado mau uso o programa não dá às palavras «Estado hodierno», «sociedade hodierna» e que mau entendimento ainda mais desbragado não produz ele acerca do Estado a quem dirige as suas reivindicações!

A «sociedade hodierna» é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de acrescentos medievais, mais ou menos modificada pelo desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos desenvolvida. O «Estado hodierno», pelo contrário, muda com as fronteiras do país. No Império prusso-alemão é diferente de na Suíça, na Inglaterra é diferente de nos Estados Unidos. «O Estado hodierno» é, portanto, uma ficção.

No entanto, os diversos Estados dos diversos países civilizados, apesar da sua variada diversidade de formas, têm tudo isto em comum: erguem-se sobre o solo da sociedade burguesa moderna, só que umas mais ou menos desenvolvidas de modo capitalista. Também têm, portanto, em comum certos caracteres essenciais. Neste sentido, pode falar-se de «sistema de Estado [StaatswesenJ hodierno», em oposição ao futuro, em que a sua raiz actual, a sociedade burguesa, se terá extinguido.

Pergunta-se, então: por que transformação passará(19*) o sistema de Estado numa sociedade comunista? Por outras palavras, que funções sociais permanecem aí, que sejam análogas às funções actuais do Estado? Há que responder a esta pergunta apenas cientificamente, e também não se fica de um salto de pulga mais perto do problema pela combinação, em mil maneiras, da palavra povo com a palavra Estado.

Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.(retornar à nota N1)

Ora, o programa nem se ocupa do último nem do futuro sistema de Estado da sociedade comunista.

As suas reivindicações políticas não contêm senão a velha litania democrática, conhecida de toda a gente: sufrágio universal, legislação directa, direito do povo, exército do povo, etc. São um simples eco do Partido Popular burguês[N8], da Liga da Paz e da Liberdade. São reivindicações altissonantes que, uma vez que não sejam exageradas em representação fantástica, estão já realizadas. Só que o Estado ao qual elas pertencem não está dentro das fronteiras do Império alemão, mas na Suíça, nos Estados Unidos, etc. Esta espécie de «Estado do futuro» é Estado hodierno, se bem que existindo fora «do quadro» do Império alemão.

Mas, esquece-se uma coisa. Uma vez que o Partido Operário Alemão declara expressamente mover-se dentro «do Estado nacional hodierno», portanto, [dentro] do seu Estado, do Império prusso-alemão — as suas reivindicações também seriam, aliás, em grande parte desprovidas de sentido, uma vez que só se reivindica aquilo que ainda(20*) se não tem —, ele não devia esquecer o principal, a saber: que todas essas lindas coisinhas repousam no reconhecimento da chamada soberania do povo, que, portanto, só estão no seu lugar numa república democrática.

Uma vez que se não tem a coragem(21*) — e sabiamente, pois as condições pedem precaução — de reclamar a república democrática, como os programas operários franceses fizeram, sob Louis-Philippe e sob Louis-Napoléon — também não havia que ter-se refugiado nas fintas <nem «honradas(22*)», nem dignas> de reclamar coisas que só têm sentido numa república democrática de um Estado que não é senão um despotismo militar, burocraticamente entivado, policialmente guardado, recamado com formas parlamentares, misturado com acrescentos feudais e, ao mesmo tempo(23*), influenciado já pela burguesia, <e, ainda por cima, de assegurar a esse Estado que se imagina poder impor-lhe semelhantes coisas «por meios legais»!>.

Mesmo a democracia vulgar, que vê na república democrática o Império Milenário e não tem nenhuma suspeita de que é nesta última forma de Estado da sociedade burguesa que há que resolver definitivamente pelas armas [ausfechten] a luta das classes — mesmo ela está montanhas acima de um democratismo [Demokratentum] deste tipo, dentro dos limites do policialmente autorizado e logicamente não autorizado.

Que, de facto, por «Estado» se entende a máquina do governo ou o Estado na medida em que ele forma um organismo separado da sociedade, por divisão do trabalho, mostram-no já estas palavras: «O Partido Operário Alemão reclama como base económica do Estado: um imposto único e progressivo sobre o rendimento, etc.» Os impostos são a base económica da máquina do governo e de nada mais. No Estado do futuro que existe na Suíça esta reivindicação está consideravelmente satisfeita. O imposto sobre o rendimento pressupõe as diversas fontes de rendimento das diversas classes sociais, portanto: a sociedade capitalista. Não é, pois, nada de extravagante que os financial reformers(24*) de Liverpool — burgueses com o irmão de Gladstone à cabeça — apresentem a mesma reivindicação que o programa.

B. «O Partido Operário Alemão reclama como base espiritual e ética [sittlich] do Estado:
«1. Educação popular geral e igual pelo Estado. Escolaridade obrigatória geral. Instrução gratuita.»

Educação popular igual? O que é que se imagina por detrás destas palavras? Acredita-se que na sociedade hodierna (e é só com ela que se tem que ver) a educação pode ser igual para todas as classes? Ou reclama-se que as classes superiores também devem ser reduzidas compulsivamente ao módico da educação — da escola primária [Volksschule] — o único compatível com as condições económicas, não só dos operários assalariados, mas também dos camponeses?

«Escolaridade obrigatória geral. Instrução gratuita.» A primeira existe mesmo na Alemanha, a segunda na Suíça [e] nos Estados Unidos para as escolas primárias. Se, em alguns Estados deste último [país], também há estabelecimentos de ensino «superior» que também são «gratuitos», isso só significa de facto pagar às classes superiores os seus custos de educação a partir da caixa geral de impostos. Incidentalmente, o mesmo vale também para a «administração gratuita da justiça» reclamada em A.5. Em toda a parte, há que ter a justiça criminal gratuitamente; a justiça civil gira quase só em torno de conflitos de propriedade e toca quase só às classes possidentes. Devem elas conduzir os seus processos à custa da caixa do povo?

O parágrafo sobre as escolas deveria, pelo menos, ter reclamado escolas técnicas (teóricas e práticas) em ligação com a escola primária.

Uma «educação popular pelo Estado» é totalmente rejeitável. Determinar por uma lei geral os meios das escolas primárias, a qualificação do pessoal docente, os ramos de ensino, etc, e, como acontece nos Estados Unidos, supervisionar por inspectores do Estado o cumprimento destas prescrições legais, é algo totalmente diferente de nomear o Estado educador do povo! Mais ainda, é de excluir igualmente o governo e a Igreja de toda a influência sobre a escola. Ora, no Império prusso-alemão (e que não se recorra ao subterfúgio duvidoso de que se está a falar de um «Estado do futuro»: já vimos o que ele é), inversamente, é o Estado que precisa de uma muito rude educação pelo povo.

O programa todo, aliás, apesar de todo o tinido democrático, está de uma ponta à outra empestado da crença servil da seita de Lassalle no Estado ou, o que não é melhor, da crença democrática em milagres, ou, antes, ele é um compromisso entre estas duas espécies de crenças em milagres, igualmente distantes do socialismo.[1M]

«Liberdade da ciência» proclama um parágrafo da Constituição prussiana. Portanto, porquê aqui?

«Liberdade de consciência»! Se se quisesse trazer à mente do liberalismo, neste tempo de Kulturkampf[N13], as suas velhas palavras-chave, isso só podia, porém, acontecer sob esta forma: Cada um tem que poder fazer as suas necessidades religiosas e corporais, sem que a polícia aí meta o nariz. Mas, o Partido operário tinha, contudo, nesta oportunidade, de expressar a sua consciência [Bewusstsein] de que a «liberdade de consciência [Gewissensfreiheit]» burguesa não é mais do que a tolerância de todas as espécies possíveis de liberdade de consciência religiosa e que ele se esforça, antes, por libertar a consciência do fantasma religioso. Mas, acha-se por bem não ultrapassar o nível «burguês».

Cheguei agora ao fim, pois o apêndice que ora se segue no programa não forma qualquer parte componente característica do mesmo. Portanto, posso ser aqui muito breve.

«2. Dia normal de trabalho.»

Partido operário de nenhum outro país se limitou a semelhante reivindicação indeterminada, mas sempre fixa a duração do dia de trabalho que, nas circunstâncias dadas, considera como normal.

«3. Limitação do trabalho das mulheres e proibição do trabalho das crianças.»

A regulamentação do dia de trabalho tem de incluir já a limitação do trabalho das mulheres, na medida em que se refere à duração, pausas, etc, do dia de trabalho; quanto ao resto, só pode significar exclusão do trabalho das mulheres de ramos de trabalho que são especialmente prejudiciais à saúde do corpo feminino ou contrários à moral(25*) do sexo feminino. Se se queria dizer isto, isso tinha que ser dito.

«Proibição do trabalho das crianças »! Aqui era absolutamente necessário indicar o limite de idade.

Uma proibição geral do trabalho das crianças é incompatível com a existência da grande indústria e é portanto, um desejo pio vazio.

A aplicação dessa [proibição] — se possível — seria reaccionária, uma vez que, com uma regulamentação rigorosa do tempo de trabalho segundo os diversos níveis de idade e outras medidas de precaução para protecção das crianças, a ligação precoce do trabalho produtivo com a instrução é um dos mais poderosos meios de transformação da sociedade hodierna.

«4. Supervisão estatal da indústria fabril, oficinal e doméstica.»

Face ao Estado prusso-alemão, havia que reclamar determinadamente que os inspectores só sejam amovíveis judicialmente; que todo o operário os possa denunciar à justiça por infracção ao dever; que eles tenham de pertencer à classe [Stand] médica.

«5. Regulamentação do trabalho em reclusão.»

Reivindicação mesquinha num programa operário geral. Em todo o caso, tinha que se expressar claramente que não se entende tratar, por medo da concorrência, os criminosos comuns como gado e que não se lhes quer cortar, nomeadamente, o único meio de correcção: o trabalho produtivo. Isto era, contudo, o mínimo que se poderia esperar de socialistas.

«6. Uma lei eficaz de responsabilidade [civil].»

Havia que dizer o que é que se entende por lei «eficaz» de responsabilidade.

Note-se, de passagem, que, aquando do dia de trabalho normal, se saltou por cima da parte da legislação fabril que diz respeito às medidas sanitárias e aos meios de protecção contra os perigos, etc. A lei de responsabilidade só entra em acção quando estas prescrições são infringidas.

<Em suma, também este apêndice se distingue por uma redacção vacilante.>

Dixi et salvavi animam meam(26*).


Notas de rodapé:

(1*) Na edição de 1891: «E». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Na edição de 1891: «de propriedade privada». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(3*) Na edição de 1891: «social». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(4*) Trata-se dos Estatutos da Internacional. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Na edição de 1891: «um». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(6*) «Directamente» não figura na edição de 1891. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) «Dos trabalhadores» não figura na edição de 1891. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) «Antes» não figura na edição de 1891. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Na edição de 1891: «as forças de produção». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(10*) Cf. a presente edição, t. II, 1983, p. 14. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(11*) Cf. a presente edição, t. I, 1982, p. 116. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(12*) Cf. a presente edição, t. I, 1982, p. 116. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(13*) Trata-se notoriamente de Hasselmann, chefe de redacção do Neuer Social-Oemokrat. (retornar ao texto)

(14*) Na edição de 1891: «numa». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(15*) Citação tirada de Goethe, Das Göttliche [O Divino]. (retornar ao texto)

(16*) Cf. Friedrich Albert Lange, Die Arbeiterfrage in ihrer Bedeutung für Gegenwart und Zukunft [A Questão Operária no Seu Significado para o Presente e o Futuro], Duisburg 1865. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(17*) Na edição de 1891, acrescenta-se: «ou». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(18*) No presente tomo as passagens omitidas e substituídas por pontos na edição de 1891 figuram entre < > e as principais diferenças entre o manuscrito e a edição de 1891 são assinaladas em nota de pé de página. (Nota da edição portuguesa) (retornar ao texto)

(19*) Na edição de 1891: «que transformação sofrerá». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(20*) «Ainda» não figura na edição de 1891. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(21*) Na edição de 1891: «uma vez que se não está na situação». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(22*) «Honrados» era também um nome dado aos eisenachianos, pelo que Marx se aproveita aqui do jogo de palavras. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(23*) «E, ao mesmo tempo» não figura na edição de 1891. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(24*) Em inglês no texto: reformadores financeiros. (Nota da edição portuguesa. ) (retornar ao texto)

(25*) No texto: sittenwidrig, literalmente: contrário aos costumes. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(26*) Em latim no texto: Disse e salvei a minha alma. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N1] O trabalho de Marx Kritik des Gothaer Programms (Critica do Programa de Gotha), escrito em 1875, é composto por um conjunto de observações críticas ao projecto de programa do futuro partido operário alemão unificado. Este projecto enfermava de sérios erros e de concessões de princípio ao lassallianismo. Marx e Engels aprovavam a ideia de se fundar um partido socialista único da Alemanha, mas denunciavam o compromisso ideológico com os lassallianos e submetiam-no a uma aguda crítica. Nesta obra Marx formulou simultaneamente toda uma série de ideias sobre as questões fundamentais da teoria do comunismo científico, tais como a revolução socialista, a ditadura do proletariado, o período de transição do capitalismo para o comunismo, as duas fases da sociedade comunista, a produção e a distribuição do produto social no socialismo e os traços fundamentais do comunismo, o internacionalismo proletário e o partido da classe operária.
Esta obra constitui um novo passo no desenvolvimento da doutrina do marxismo sobre o Estado e a ditadura do proletariado. Marx define a importantíssima tese da inevitabilidade histórica de um estádio especial de transição do capitalismo para o comunismo, com a forma de Estado correspondente — a «ditadura revolucionária do proletariado». (retornar ao texto)

[N8] O Deutsche Volkspartei {Partido Popular Alemão), fundado em 1865, era constituído por elementos democráticos da pequena burguesia e por parte da burguesia, sobretudo dos Estados do Sul da Alemanha. O Partido opunha-se ao estabelecimento da hegemonia da Prússia na Alemanha e defendia o plano da chamada «Grande Alemanha», na qual deviam entrar a Prússia e a Áustria. Propagandeando a ideia de um Estado alemão federativo, o Partido pronunciava-se contra a unificação da Alemanha sob a forma de uma república democrática centralizada única. (retornar ao texto)

[N10] A Liga da Paz e da Liberdade era uma organização pacifista burguesa, fundada por liberais e republicanos pequeno-burgueses na Suíça, em 1867. Afirmando que era possível evitar as guerras criando os «Estados Unidos da Europa», a Liga da Paz e da Liberdade semeava ideias falsas entre as massas e desviava o proletariado da luta de classe. (retornar ao texto)

[N11] Norddeutsche Allgemeine Zeitung (Gazeta Geral Norte-Alemã): diário reaccionário publicado em Berlim em 1861 a 1918. Nos anos 60-80 foi o órgão oficial do governo de Bismarck. Marx refere-se a um artigo publicado no jornal em 20 de Março de 1875. (retornar ao texto)

[N12] L'Atelier (A Oficina): revista mensal francesa, publicada em Paris de 1840 a 1850. Era o órgão dos artesãos e operários influenciados pelo socialismo cristão. (retornar ao texto)

[N13] Kulturkampf (Luta pela Cultura): designação dada pelos liberais burgueses a um sistema de medidas legislativas adoptado nos anos 70 do século XIX pelo governo de Bismarck, sob a bandeira de uma campanha pela cultura laica. Nos anos 80, contudo, a fim de consolidar as forças reaccionárias, Bismarck revogou a maior parte dessas medidas. (retornar ao texto)

Nota MIA:

[1 MIA] Atendendo à solicitação de leitor, apresentamos abaixo uma comparação entre deste parágrafo no original em alemão com as traduções para inglês, espanhol e italiano existentes no MIA, com a presente tradução para o português, bem como uma tradução alternativa à da Editora Avante!:

Alemão: "Doch das ganze Programm, trotz alles demokratischen Geklingels, ist durch und durch vom Untertanenglauben der Lassalleschen Sekte an den Staat verpestet oder, was nicht besser, vom demokratischen Wunderglauben, oder vielmehr ist es ein Kompromiß zwischen diesen zwei Sorten, dem Sozialismus gleich fernen, Wunderglauben."

Espanhol: "Pese a todo su cascabeleo democrático, el programa está todo él infestado hasta el tuétano de la fe servil de la secta lassalleana en el Estado; o — lo que no es nada mejor — de la superstición democrática; o es más bien un compromiso entre estas dos supersticiones igualmente lejanas del socialismo."

Francês: "D'ailleurs, tout le programme, en dépit de tout son drelindrelin démocratique, est d'un bout à l'autre infecté par la servile croyance de la secte lassallienne à l'Etat ou, ce qui ne vaut pas mieux, par la croyance au miracle démocratique; ou plutôt c'est un compromis entre ces deux sortes de foi au miracle, également éloignées du socialisme."

Inglês: "But the whole program, for all its democratic clang, is tainted through and through by the Lassallean sect's servile belief in the state, or, what is no better, by a democratic belief in miracles; or rather it is a compromise between these two kinds of belief in miracles, both equally remote from socialism."

Italiano: "Ma l'intiero programma, nonostante tutta la fanfara democratica, è continuamente ammorbato dallo spirito di fede servile nello Stato, proprio della sètta lassalliana, o, ciò che non è meglio, dalla fede democratica nei miracoli, o è piuttosto un compromesso tra queste due specie di fede nei miracoli, entrambe ugualmente lontane dal socialismo."

Tradução Avante!: "O programa todo, aliás, apesar de todo o tinido democrático, está de uma ponta à outra empestado da crença servil da seita de Lassalle no Estado ou, o que não é melhor, da crença democrática em milagres, ou, antes, ele é um compromisso entre estas duas espécies de crenças em milagres, igualmente distantes do socialismo."

Tradução alternativa: "O programa todo, aliás, em que pese seu grasnido em relação à democracia, está de uma ponta à outra empestado da crença servil da seita de Lassalle no Estado ou, o que não é melhor, da crendice supersticiosa na democracia, ou, antes, ele é um compromisso entre estas duas crenças, sendo que ambas nada têm a ver com o socialismo." (retornar ao texto)

Inclusão 19/11/2004
Alteração 14/03/2009