As guerras camponesas na Alemanha

Friedrich Engels


Prefácio do autor


I

capa

A presente obra foi escrita em Londres durante o verão de 1850, sob a impressão direta da contrarrevolução que acabava de ocorrer. Apareceu, naquele mesmo ano, nos números 5 e 6 da Nova Gazeta do Reno, revista econômico-política dirigida por Karl Marx, em Hamburgo. Meus amigos políticos na Alemanha desejam reimprimi-la e eu concordo com esse pedido porque, infelizmente, é ainda hoje, um trabalho de grande atualidade.

Não pretendo fornecer documentação pessoal inédita; ao contrário, todo o material referente aos levantes camponeses e a Tomás Münzer foi tomado de empréstimo a Zimmermann cujo livro, apesar de apresentar algumas lacunas, continua sendo a melhor coleção de fatos sobre a matéria. Acima de tudo, o velho Zimmermann ama seu assunto com ardor. Esse mesmo instinto revolucionário que em tudo aqui se manifesta a favor da classe oprimida, fez dele um dos melhores representantes da extrema esquerda de Frankfurt.

Se é verdade que falta a Zimmermann coesão interna em sua exposição, se é verdade que não chega a apresentar as questões religiosas e políticas debatidas na época como a imagem fiel das lutas de classe contemporâneas, que não vê nessas lutas senão oprimidos e opressores, bons e maus e finalmente o triunfo destes últimos, e que sua concepção dos acontecimentos sociais que de fato determinaram a explosão e o resultado da luta é extremamente defeituosa, todas essas faltas cabem à época em que seu livro apareceu. Pode-se mesmo dizer que, em seu tempo, foi um livro muito realista constituindo louvável exceção entre as obras históricas dos idealistas alemães.

Traçando o curso histórico da luta apenas em suas linhas gerais, minha exposição procura mostrar, como consequências necessárias da vida social das classes, a origem da guerra dos camponeses, as posições tomadas pelos diversos partidos que dela participaram, as teorias políticas e religiosas através das quais esses partidos procuraram explicar sua atitude e, enfim, o resultado da luta. Em outras palavras, empenho-me em provar que o regime político da Alemanha, os levantes contra esse regime, as teorias políticas e religiosas da época não eram causas, mas resultados do grau do desenvolvimento a que tinham chegado, naquele país, a agricultura, a indústria, as vias de comunicação, as finanças e o comércio. Tal concepção, que é a única concepção materialista da história, provém de Marx; não é minha. Vamos encontrá-la em seus trabalhos sobre a revolução francesa de 1848-1849, publicados na referida revista e no 18 Brumário de Luís Bonaparte.

O paralelo entre as revoluções alemãs de 1525 e 1848-1849 era por demais flagrante para que eu não fosse tentado a estabelecê-lo, à época em que escrevi a presente obra. Não obstante, ao lado da semelhança do curso geral dos acontecimentos, notadamente a de que, em ambos os movimentos, tivessem sido os exércitos dos príncipes os repressores de todas as insurreições locais e ao lado da semelhança, às vezes levada ao ridículo, da conduta da burguesia urbana, persistem ainda, nos dois casos, diferenças claras e sensíveis:

“A quem aproveitou a revolução de 1525? Aos príncipes. A quem aproveitou a revolução de 1848? Aos grandes soberanos, o da Áustria e o da Prússia. Por trás dos pequenos príncipes de 1525, estavam, ligados a eles pelo pagamento dos impostos, os pequenos burgueses; por trás dos grandes monarcas de 1850 e dos soberanos da Áustria e da Prússia, estavam os grandes burgueses modernos que os submeteram rapidamente por meio da dívida do Estado. E, finalmente, por trás dos grandes burgueses encontrava-se o proletariado”.

Lamento ter de dizer que nesta frase se faz muita honra à grande burguesia alemã, que bem teve oportunidade, tanto na Áustria como na Prússia “de submeter rapidamente” a monarquia “por meio da dívida de Estado”, mas que, nunca, em parte nenhuma, disso soube aproveitar-se inteligentemente.

Com a guerra de 1866 a Áustria caiu, como um fruto maduro nas mãos da burguesia que, entretanto, não soube se prevalecer, pois é impotente e incapaz do que quer que seja. Só sabe fazer uma coisa: castigar os trabalhadores que protestam. Ainda está no governo porque os húngaros precisam dela.

E na Prússia? É verdade que a dívida cresceu desmedidamente; os deficits orçamentários são constantes; as despesas públicas aumentam de ano para ano; os burgueses têm a maioria da Câmara; sem eles não se pode nem aumentar os impostos nem obter novos empréstimos, — mas onde está então seu poder sobre o Estado? Há apenas alguns meses, quando o orçamento novamente apresentou deficit, sua posição era excelente. Fossem apenas um pouco mais enérgicos e teriam arrancado muitas concessões. Ora, que fizeram então? Consideraram concessão suficiente o fato do governo dignar-se a permitir-lhes depositar a seus pés 9 milhões e isto não apenas este ano, como também todos os anos próximos.

Não desejo queixar-me desses pobres "nacionais-liberais” da Câmara mais do que eles merecem. Digo que foram abandonados pelos que estão por trás deles, pela massa da burguesia; esta não quer reinar: a lembrança de 1848 ainda está muito viva nela.

Mostraremos mais adiante porque a burguesia alemã demonstrou uma covardia tão extraordinária.

Quanto ao resto, a frase citada linhas acima se encontra inteiramente confirmada. Depois de 1850, vemos que os pequenos estados que servem apenas de instrumentos das intrigas prussianas e austríacas, vão decisivamente caindo para um plano cada vez mais secundário; que as lutas pela hegemonia se processam cada vez mais violentamente entre a Áustria e a Prússia, lutas essas que encontram enfim a solução violenta de 1866, em virtude da qual a Áustria conserva suas próprias províncias; que a Prússia submete, direta, ou indiretamente, todo o Norte já que os três Estados do Sudoeste se acham momentaneamente eliminados.

Para a classe operária alemã todos esses grandes acontecimentos de estado apresentam apenas a importância seguinte:

No que se refere aos outros litígios importantes do ano de 1866, e depois discutidos com exasperação entre os “nacionais-liberais” de um lado, e os “populistas”, do outro, a história dos anos seguintes provou que esses dois pontos de vista se combatiam com tanta violência apenas porque são os polos opostos de um mesmo espírito tacanho.

No ano de 1866, em quase nada mudavam as relações sociais na Alemanha. As raras reformas burguesas — sistema uniforme de pesos, liberdade de circular, liberdade profissional, etc., tudo isso restrito a limites burocráticos, — não atingem, mesmo, ao nível conquistado já havia muito tempo pela burguesia de outros países da Europa ocidental, e deixa, além disso intacto, o principal flagelo, isto é, o sistema de autorizações burocráticas. De resto, para o proletariado todas estas leis sobre a liberdade de circular, sobre o direito de cidadania, sobre a supressão dos passaportes, etc., tornaram-se perfeitamente ilusórias pelas práticas policiais correntes.

Muito mais importante do que os acontecimentos de Estado de 1866, é o desenvolvimento, na Alemanha, depois de 1848, da indústria e do comércio, dos caminhos de ferro, dos telégrafos e da navegação transoceânica a vapor. Se bem que tais progressos, no mesmo lapso de tempo fossem ultrapassados pelos da Inglaterra e mesmo da França, são contudo, inéditos para a Alemanha e deram-lhe, no curso desses vinte anos, mais do que lhe deu qualquer século de outro período. Somente nos dias atuais acha-se a Alemanha entrosada de maneira irrevogável e verdadeira, no comércio mundial. Os capitais dos industriais acumularam-se rapidamente, aumentando consequentemente a importância social da burguesia. O sintoma mais certo da prosperidade industrial, a especulação, florescia abundantemente e os condes e duques acorrentavam-se a seu carro triunfal. O capital alemão, — que a terra lhe seja leve, — constrói agora estradas de ferro russas e romenas, enquanto que, há apenas quinze anos, as estradas de ferro alemãs mendigavam o apoio das empresas inglesas. Como é então possível que a burguesia não haja também conquistado o domínio político e se conduza tão covardemente em face do governo?

A burguesia alemã, tem a infelicidade, — o que está bem de acordo com o procedimento favorito dos alemães, — de chegar sempre tarde demais. Sua prosperidade coincide com um período em que a burguesia dos outros países da Europa ocidental está politicamente em declínio. Na Inglaterra a burguesia não pôde fazer seu próprio representante, Bright, entrar no governo senão ao preço de uma extensão do direito eleitoral, fato que, por suas consequências, porá necessariamente termo a todo domínio burguês.

Na França, onde a burguesia como classe governou apenas dois anos, de 1849 a 1850, sob a república não pôde prolongar sua existência social senão colocando sua dominação política e seu exército nas mãos de Luís Bonaparte. E dada a influência recíproca, infinitamente ampliada dos três países europeus mais adiantados não é mais possível hoje que a burguesia possa tranquilamente instaurar seu poder político na Alemanha enquanto que em França e na Inglaterra mal consegue sobreviver. Uma particularidade que distingue a burguesia de todas as classes que governaram antes dela é que, em seu desenvolvimento, há um retrocesso a partir do qual todo acréscimo de seus meios de poder, principalmente, de seus capitais apenas contribui, a torná-la cada vez mais inapta ao domínio político.

Por trás dos grandes burgueses estão os proletários. A burguesia engendra o proletariado à medida que desenvolve sua indústria, seu comércio e seus meios de comunicação. E em certo momento, que não é necessariamente o mesmo em toda parte e não deve, de maneira absoluta atingir o mesmo grau de desenvolvimento, começa a perceber que seu companheiro de viagem, o proletariado, a sobrepuja a passos largos. A partir desse momento perde a força de manter exclusivamente seu domínio político; procura aliados com que dividir seu poder ou a quem ceder completamente, conforme as circunstâncias.

Na Alemanha, esse ponto de retrocesso tinha sido atingido pela burguesia já em 1848 e nesse momento a burguesia alemã amedrontou-se mais com o proletariado francês do que com o proletariado alemão. Os combates de junho de 1848 mostraram-lhe o que a esperava. A agitação do proletariado alemão servia para provar-lhe que lá também a semente fora lançada para a mesma colheita e a partir desse dia o ponto de ação política da burguesia ficou enfraquecido. Procurou aliados; vendeu-se a eles por todo preço, e hoje, não está nem mais um passo à frente.

Esses aliados são todos de caráter reacionário: a realeza com seu exército e sua burocracia, a grande aristocracia feudal, os pequenos proprietários rurais sem importância e mesmo a padraria. A burguesia pactuou e uniu-se com toda essa gente somente para salvar a sua preciosa pele até que não lhe restou mais nada com que traficar. E quanto mais o proletariado se desenvolvia mais começava a sentir seu caráter de classe e a agir com sua consciência de classe, mais os burgueses se tornavam pusilânimes. Quando a prodigiosamente má estratégia dos prussianos, triunfou em Sadowa sobre a estratégia ainda pior dos austríacos, foi muito difícil dizer qual dos dois respirou com mais alívio e alegria: se o burguês prussiano, também batido em Sadowa, se o austríaco.

Nossos grandes burgueses agiram, em 1870, exatamente como os burgueses médios de 1525. Quanto aos pequenos burgueses, artesãos e botiqueiros, permaneceram os mesmos. Esperam elevar-se às fileiras da grande burguesia; temem ser lançados no proletariado. Entre o medo e a esperança, salvarão a pele durante a luta, e depois se juntarão ao vencedor: tal a sua natureza.

A ação política e social do proletariado seguiu o ritmo do impulso industrial depois de 1848. O papel hoje desempenhado pelos trabalhadores alemães em seus sindicatos, cooperativas, organizações e reuniões políticas, nas eleições e no pseudo Reichstag, já mostra que transformação sofreu a Alemanha, imperceptivelmente, nestes últimos vinte anos. A maior honra dos operários alemães foi enviar ao Parlamento, por si sós, operários e representantes operários, enquanto que nem os franceses nem os ingleses ainda o conseguiram.

Mas o proletariado não se encontra mais em nível que permita o paralelo com o ano de 1525. A classe, vivendo do salário exclusivamente e durante toda sua vida, está ainda longe de constituir a maioria do povo alemão, Consequentemente também está obrigada a procurar aliados. E estes não podem ser encontrados senão entre os pequeno-burgueses, entre o Lumpenproletariat das cidades e os pequenos camponeses e assalariados agrícolas.

Já falamos dos pequenos burgueses. São vacilantes, salvo após a vitória e então soltam gritos de triunfo ensurdecedores, nas tabernas. Contudo, há entre eles alguns ótimos elementos que se juntam espontaneamente aos trabalhadores.

O Lumpenproletariat representa elementos corrompidos de todas as classes sociais e tem seu quartel-general nas grandes cidades, sendo, de todos os aliados possíveis, o pior. Esse grupo é absolutamente venal e impudente. Quando os operários franceses inscreveram o dístico, “Morte aos ladrões!”, nas casas, durante as revoluções, chegando mesmo a fuzilar mais de um assaltante, não o fizeram certamente por entusiasmo pela propriedade e sim com a consciência de que era, antes de tudo preciso livrar-se desse bando. Todo chefe operário que emprega esses vagabundos como defensores, ou que se apoia neles prova que não passa de um traidor do movimento.

Os pequenos camponeses, — isso porque os grandes fazem parte da grande burguesia, — são de diversas categorias.

Ou são camponeses feudais que prestam ainda serviços pessoais ao seu nobre senhor. Depois que a burguesia faltou à sua obrigação de libertar essas criaturas da servidão, não será difícil persuadi-los de que só da classe operária podem esperar sua libertação.

Ou são os rendeiros. Nesse caso as condições são as mesmas da Irlanda. A renda é tão elevada que, quando a colheita é média, o camponês e sua família mal podem subsistir, e quando é má ficam quase famintos; o rendeiro não se encontra mais em condições de pagar a renda e cai totalmente sob a dependência do proprietário feudal ficando à sua mercê. Por essas criaturas a burguesia nada faz senão aquilo a que é forçada a fazer. De quem então, senão dos operários, podem elas esperar seu bem-estar?

Restam ainda os camponeses que cultivam seu próprio pequeno pedaço de terra. Esses estão frequentemente tão carregados de hipotecas que ficam dependendo do usurário na mesma extensão que o rendeiro do proprietário da terra. A eles também nada resta além de seu miserável salário, muitas vezes incerto porque depende da boa ou má colheita. Podem menos que todas as outras categorias esperar qualquer coisa da burguesia porque são precisamente os mais premidos pelo burguês e pelo capitalista usurário. Contudo são frequentemente muito apegados à sua propriedade se bem que na realidade ela não lhes pertença, e sim ao usurário. Pode-se, não obstante, persuadi-los de que serão libertos do usurário quando um governo dependente do povo transforme todas as dívidas hipotecárias em uma dívida universal ao Estado e reduzir assim as taxas de juros. Ora, só a classe trabalhadora pode realizar isto.

Em toda parte onde dominam a grande propriedade e a propriedade média os operários agrícolas assalariados constituem a classe mais numerosa do campo. É o caso de toda a Alemanha do Norte e do Este e é que os operários industriais da cidade encontram seu aliado natural mais numeroso.

Entre o grande proprietário de terra ou o grande agricultor e o trabalhador agrícola há as mesmas relações que entre o capitalista industrial e o trabalhador industrial. As mesmas medidas que ajudam um devem também ajudar o outro. Os operários industriais não podem se libertar senão transformando o capital dos burgueses, isto é, as matérias primas, as máquinas e ferramentas, e os víveres necessários à produção, em propriedade social, o que quer dizer em propriedade por eles utilizada em comum. Do mesmo modo os trabalhadores agrícolas não se libertarão de sua terrível miséria sem antes de tudo ser o objeto de seu trabalho, a terra, arrancada da propriedade privada dos grandes camponeses, dos grandes senhores feudais, transformada em propriedade social e cultivada coletivamente pelas cooperativas de trabalhadores agrícolas. Aqui encontramos de novo a célebre decisão do congresso operário internacional de Basileia(1) proclamando que a sociedade tem interesse na transformação da propriedade feudal em propriedade coletiva, nacional. Esta decisão se referia sobretudo aos países onde existe a grande propriedade feudal e a exploração de vastos domínios com um único senhor e muitos assalariados. Ora, tal situação predomina sempre, em geral, na Alemanha e é por isso que a decisão em questão era particularmente oportuna para esse país, depois da Inglaterra. O proletariado dos campos, — os assalariados agrícolas, — constitui a classe onde se recrutam, em sua grande massa, os exércitos dos soberanos. É a classe que, em virtude do sufrágio universal, envia agora ao Parlamento toda esta cambada de senhores feudais e de proprietários rurais; mas é também a classe mais aproximada dos operários industriais urbanos, que participa com eles das mesmas condições de existência, sendo ainda mais miserável. Essa classe é impotente porque se acha esmagada e dispersa, mas o governo e a aristocracia conhecem bem sua força oculta, deixando deliberadamente as escolas no marasmo a fim de que ela permaneça ignorante. A tarefa mais importante do movimento operário alemão é vivificar essa classe e arrastá-la consigo. No dia em que a massa dos trabalhadores agrícolas compreender seus próprios interesses será impossível à Alemanha ter um governo reacionário, feudal, burocrático ou burguês.

II

As linhas precedentes foram escritas há mais de quatro anos, mas conservam ainda hoje toda a sua significação. O que era verdade depois de Sadowa e da partilha da Alemanha confirmou-se depois de Sedan e da fundação do Santo-Império alemão “da nação prussiana”. Quão ínfimas são as transformações que podem imprimir ao curso do movimento histórico os acontecimentos dramáticos, “capazes de abalar o mundo”, da chamada grande política!

O que esses movimentos dramáticos podem, ao contrário é acelerar a rapidez desse movimento, e, a esse respeito, os autores dos “acontecimentos dramáticos” acima narrados tiveram, involuntariamente, sucesso que certamente não desejaram de maneira nenhuma, mas aos quais, por bem ou por mal, são obrigados a se resignar.

A guerra de 1866 já sacudira a velha Prússia em suas bases mais profundas. Custou-lhe muito manter presos à velha disciplina, depois de 1848, os elementos industriais rebeldes, tanto burgueses quanto proletários, das províncias ocidentais; mas o conseguiu, e mais uma vez predominaram no Estado os interesses dos latifundiários das províncias orientais e os do exército.

Em 1866, quase toda a Alemanha do Noroeste tornou-se prussiana. Omitindo-se a falta moral, irreparável, que a corôa prussiana, pela graça de Deus, cometeu engolindo três outras corôas também pela graça de Deus, esse acontecimento foi de extrema importância, pelo deslocamento considerável em direção ao Oeste, do centro de gravidade da monarquia. Os cinco milhões de renanos e de westfalianos foram reforçados, primeiro diretamente, pelos quatro milhões, — e depois indiretamente pelos seis milhões, — de alemães anexados pela aliança da Alemanha do Norte. E em 1870 se lhes juntaram ainda os oito milhões de alemães do Sudoeste, de sorte que desde então, no “novo Império’, aos catorze milhões e meio de velhos prussianos (das seis províncias do Elba oriental nas quais havia dois milhões de poloneses) opunham-se os vinte e cinco milhões que tinham, depois de muito tempo, deixado o estado de feudalismo velho- prussiano dos senhores rurais. Foi assim que as vitórias do exército prussiano abalaram todos os fundamentos do edifício do estado prussiano; a dominação dos senhores rurais tornava-se cada vez mais intolerável, mesmo para o governo. Porém, ao mesmo tempo, o desenvolvimento industrial extremamente rápido tinha substituído a luta entre senhores rurais e burgueses, pela luta entre burgueses e operários, de sorte que em sua estrutura interna, as bases sociais do velho Estado sofreram uma transformação total. A monarquia, que se decompunha lentamente depois de 1840, teve, como condição fundamental de existência, a luta entre a aristocracia e a burguesia, luta na qual mantinha o equilíbrio; a partir do momento em que ela veio proteger, não mais a aristocracia contra a pressão da burguesia, mas, todas as classes proprietárias contra a pressão da classe trabalhadora, a velha monarquia absolutista teve de passar completamente à forma de estado elaborada especialmente nesse momento: a monarquia bonapartista. Analisei antes (A questão da residência, 2.° fasc., p. 26 e seguintes) essa passagem da Prússia ao bonapartismo. O que não cabia fazer ressaltar ali, mas que é essencial aqui, é que essa transição foi o maior passo à frente que a Prússia deu a partir de 1848; até então a Prússia tinha ficado à retaguarda do desenvolvimento moderno. Ainda hoje é um estado semifeudal enquanto que o bonapartismo é, de certo modo uma forma moderna do Estado que implica na supressão do feudalismo. A Prússia deve, portanto, decidir-se a liquidar seus restos feudais e a sacrificar seus proprietários rurais, em suas características principais. Naturalmente isso ocorre sob as formas mais atenuadas e, como diz o provérbio, “Quem vai devagar, vai sem parar”. Isso aconteceu por exemplo com a famosa organização das regiões. Suprimiram-se os privilégios feudais do proprietário rural sobre sua terra apenas para se restabelecerem privilégios da união de todos os grandes proprietários feudais sobre toda região. A coisa subsiste; apenas se traduz do dialeto feudal para o idioma burguês. Transforma-se pela força o velho proprietário rural prussiano em alguma coisa semelhante ao squice inglês e ele não precisa resistir tanto pois cada um é mais tolo do que o outro.

Foi assim então que o estranho destino da Prússia quis que ela atingisse, em fins deste século XIX, sob a forma agradável do bonapartismo, sua revolução burguesa começada em 1808-1813 e que se prolongou um pouco até 1848. E se tudo for bem, se o mundo permanecer sereno e tranquilo, quando todos nós já formos muito velhos, poderemos talvez ver, em 1900, o governo da Prússia suprimir todas as instituições feudais e a própria Prússia atingir enfim o ponto em que se encontrava a França em 1792.

A supressão do feudalismo, se queremos ser positivos, significa a instauração do regime burguês. À medida que caem os privilégios aristocráticos, a legislação se torna burguesa. E aqui nos encontramos no próprio âmago das relações da burguesia com o governo. Vemos que o governo foi constrangido a introduzir essas reformas lentas e medíocres. Mas, à burguesia ele apresentou cada uma dessas pequenas concessões como um sacrifício feito aos burgueses, como uma concessão arrancada à, corôa, e a muito custo, concessão em troca da qual os burgueses deviam, por sua vez, ceder um pouco ao governo.

E os burgueses, mesmo sabendo muito bem quem se encontrava por trás de tudo isso, se deixaram enganar. Daí esse convênio tácito que se encontra à base de todos os debates da Câmara: de um lado o governo, a passos de tartaruga, reforma as leis no sentido do interesse burguês; afasta os obstáculos ao desenvolvimento da indústria criados pelo feudalismo e o particularismo dos pequenos Estados; estabelece a unidade da moeda, dos pesos e medidas; introduz a liberdade profissional e de circulação, pondo à completa e ilimitada disposição do capital a mão de obra da Alemanha; favorece o comércio e a especulação; por outro lado a burguesia abandona ao governo todo o poder político efetivo; vota os impostos e os empréstimos; cede-lhe soldados e ajuda-o a dar às novas reformas tal aparência legal que o velho poder policial mantém toda sua força ante os indivíduos recalcitrantes; a burguesia compra sua emancipação social gradual ao preço de uma renúncia imediata de seu próprio poder político. Naturalmente o motivo principal de semelhante convênio, aceitável por parte da burguesia, não é o medo ao governo, mas ao proletariado.

Por mais lamentáveis que sejam as manifestações da nossa burguesia no domínio político, é inegável que sob a relação industrial e comercial nada faz senão cumprir com seu dever. O desenvolvimento da indústria e do comércio que assinalamos na introdução da segunda edição da presente obra, aumentou depois, com ainda maior ímpeto. O que se produziu nesse sentido depois de 1869, na região industrial renano-westfaliana é verdadeiramente inédito para a Alemanha e faz lembrar o surto dos distritos fabris ingleses ao começo do século. O mesmo acontece no Saxe e na Alta Silésia, em Berlim e Hanôver e nas cidades marítimas. Afinal temos um comércio mundial, uma indústria verdadeiramente grande, uma burguesia verdadeiramente moderna; por outro lado, sofremos igualmente um verdadeiro krach(2) e temos também um proletariado verdadeiro, poderoso.

Para o historiador do futuro, o troar dos canhões de Spichern, Mars-la-Tour e Sedan e tudo o que se seguiu terá muito menos importância na história da Alemanha de 1869-1874 que o desenvolvimento sem pretensões, calmo, mas ininterrupto, do proletariado alemão.

Já em 1870, os operários alemães deveriam sofrer uma rude prova: a provocação guerreira bonapartista e seu efeito natural: o entusiasmo nacional geral da Alemanha. Os operários socialistas alemães não se deixaram iludir um instante. Não manifestaram o menor chauvinismo nacional. Em meio à mais louca torrente de vitórias, permaneceram frios, exigiram uma “paz aceitável com a república francesa e sem anexações”; e o próprio estado de sítio não pôde reduzi-los ao silêncio. Não se deixaram influenciar nem pela glória dos combates, nem pelos hinos à “magnificência do império alemão”; sua única finalidade ficou sendo a libertação de todo o proletariado europeu. Pode-se bem dizer: os operários de nenhum outro país foram jamais, até a presente data, submetidos a uma prova tão pesada e tão brilhantemente suportada.

Ao estado de sítio do tempo de guerra seguiu-se o processo de alta traição, lesa-majestade e ofensa aos funcionários do governo, depois as perseguições policiais incessantes de tempo de paz. O Volkstaat(3) tinha, regra geral, três ou quatro de seus redatores constantemente na prisão; os outros jornais estavam mais ou menos na mesma situação. Todo orador do partido um pouco conhecido tinha de, pelo menos uma vez por ano, comparecer ante os tribunais que, com grande regularidade, o condenavam. Banimentos, confiscos, dissoluções de reuniões caíam como saraiva, mas tudo em vão. Cada militante preso ou expulso era substituído por outro; por cada reunião dissolvida convocavam-se duas outras; triunfou-se sobre a arbitrariedade policial, por meio da exaustão, pelo sangue frio e pela estrita observância das leis. Todas as perseguições produziram efeito contraproducente; longe de debilitar e liquidar o partido operário, trouxeram-lhe sem cessar novos elementos, novos militantes, reforçaram sua organização. Em sua luta contra as autoridades, tanto quanto contra os burgueses individualmente, os operários se mostraram em toda parte, intelectual e moralmente, superiores a eles e provaram, notadamente em seus conflitos com os “empregadores”, que eram os operários, os homens cultos da época, enquanto que os capitalistas eram os ignorantes. E assim conduziam suas lutas com um bom humor que prova quanto estavam certos de sua causa e conscientes de sua superioridade. Uma luta assim conduzida, sobre terreno historicamente preparado, deve dar grandes resultados. Os sucessos obtidos nas eleições de janeiro(*) permanecem únicos no moderno movimento operário até esta data e a estupefação que suscitaram em toda Europa era perfeitamente justificada.

Os operários alemães têm, sobre os do resto da Europa, duas vantagens fundamentais. Primeiro, pertencem ao povo mais teórico da Europa; além disso conservaram o senso teórico que desapareceu de maneira tão completa da Alemanha chamada “culta”. Se não houvesse existido anteriormente a filosofia alemã, particularmente a de Hegel, o socialismo científico alemão, o único socialismo científico que até hoje existiu, não teria sido jamais fundado. Sem o senso teórico dos operários eles não assimilariam jamais o socialismo científico na escala em que o fizeram. E o que prova a vantagem infinita disto é, de um lado, a verificação de que a indiferença em relação a toda teoria é uma das causas principais do pequeno progresso do movimento operário inglês, apesar da excelente organização dos sindicatos e, por outro lado, a desordem e a confusão provocadas pelo proudhonismo em sua forma inicial, entre os franceses e os belgas, e a seguir, na caricatura de Bakunin, entre os espanhóis e os italianos.

A segunda vantagem é o atraso com que os alemães apareceram no movimento operário; foram quase os últimos. Assim como o socialismo teórico alemão não esquecerá jamais que se ergueu sobre os ombros de Saint-Simon, Fourier e Owen, — três homens que, apesar de toda a fantasia e utopia de suas doutrinas, aparecem entre os maiores cérebros de todos os tempos, antecipando-se genialmente a todas as ideias cuja justeza hoje demonstramos cientificamente, — o movimento operário prático alemão também não deve nunca se esquecer de que se desenvolveu sobre os ombros dos movimentos operários inglês e francês, e que pôde aproveitar as experiências tao custosamente obtidas, e evitar no presente seus erros, no passado inevitáveis, em sua minoria. Sem a experiência das trade-unions inglesas e das lutas políticas do proletariado francês, sem o impulso gigantesco dado particularmente pela Comuna de Paris, onde nos encontraríamos hoje?

Deve-se reconhecer que os trabalhadores alemães souberam aproveitar-se das vantagens de sua situação com rara inteligência. Pela primeira vez, depois de se formar o movimento operário, a luta se conduz em suas três direções: teórica, política e econômico-prática (resistência contra os capitalistas), com tanto método e coesão. É nesse ataque concêntrico, por assim dizer, que reside a força invencível do movimento alemão.

De um lado, em virtude de sua posição vantajosa, de outro, por obra das particularidades insulares do movimento inglês e da violenta repressão do movimento francês, os operários alemães, estão no momento, na vanguarda da luta proletária. É impossível predizer-se porquanto tempo se manterão nesse posto de honra. Mas enquanto o ocuparem, cumprirão seu dever convenientemente, é de esperar-se... Para isso devem redobrar seus esforços em todos os domínios da luta e da agitação. Será principalmente dever dos chefes se esclarecerem cada vez mais sobre todas as questões teóricas; libertarem-se cada vez mais da influência das frases tradicionais, pertencentes a concepções antiquadas do mundo e de jamais esquecer que o socialismo, após tornar-se uma ciência, quer ser tratado, isto é, estudado como uma ciência. A tarefa consistirá, em seguida, em difundir com carinho crescente, entre as massas operárias, as concepções sempre mais claras que desse modo adquirir e a consolidar cada vez mais poderosamente a organização do partido e dos sindicatos. Se bem que os votos socialistas manifestados em janeiro representem já um belo exército estão ainda muito longe de constituir a maioria da classe trabalhadora alemã; e quanto mais encorajadores forem os sucessos alcançados com a propaganda entre a população rural, restará ainda muito o que fazer nesse terreno.

Faz-se mister, pois, não relaxar o combate; é preciso arrancar do inimigo, uma cidade, uma circunscrição eleitoral após outra; mas, antes de tudo, trata-se de manter o verdadeiro espírito internacional que não admite nenhum chauvinismo patriótico e que saúda com alegria todo novo progresso do movimento operário, qualquer que seja a nação de onde provenha. Se os operários alemães continuam a agir assim, não digo que marcharão à frente do movimento, — não interessa ao movimento que os operários de uma nação qualquer marchem à sua frente, — mas ocuparão um lugar honroso no campo de luta; estarão armados e prontos quando pesadas e imprevisíveis provas, ou grandes acontecimentos exigirem deles muito mais coragem, decisão e ação.

Londres, 1.° de julho de 1874.
Friedrich ENGELS


Notas de rodapé:

(1) IV Congresso da Associação Operária Internacional (1869). (retornar ao texto)

(2) Palavra alemã significando derrocada, quebra. (retornar ao texto)

(3) Órgão dirigido por W. Liebknecht, do “partido operário social democrata”, fundado em 1869 e, diz Éisenach, precursor do Vorwärts. (N.T. francês.) (retornar ao texto)

(*) Nas eleições para o primeiro Reichstag alemão (1871) os operários socialistas obtiveram 102.000 votos; em 1874, 352.000. (retornar ao texto)

Inclusão: 17/01/2022