Sobre os Compromissos

V. I. Lénine

16 de Setembro de 1917

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Escrito: em 1-3 (14-16) de Setembro de 1917.
Primeira Edição: em 19 de Setembro de 1917 (6 Outubro), no n°3 do Rabótchi Put Assinado: N. Lénine.

Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, t2, pp 155-159, Edições Avante! - Lisboa, Edições Progresso - Moscovo.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t. 34, pp. 133-139.
Transcrição: Partido Comunista Português
HTML: Fernando A. S. Araújo, março 2009.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1977.


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Chama-se compromisso em política ao abandono de certas exigências, à renúncia a uma parte das reivindicações próprias, em virtude de um acordo com outro partido.

A ideia habitual das pessoas comuns sobre os bolcheviques, sustentada pela imprensa que calunia os bolcheviques, consiste em que os bolcheviques nunca aceitam quaisquer compromissos com ninguém.

Tal ideia é lisonjeira para nós, como partido do proletariado revolucionário, pois prova que até os próprios inimigos são obrigados a reconhecer a nossa fidelidade aos princípios fundamentais do socialismo e da revolução. Mas, no entanto, é preciso dizer a verdade: tal ideia não corresponde à realidade.

Engels tinha razão quando, na sua crítica ao manifesto dos blanquistas-comunistas (1873), ridicularizava a sua declaração: «Nenhuns compromissos!»[N122]. Isto é uma frase, dizia ele, pois é frequente que as circunstâncias imponham inevitavelmente compromissos a um partido em luta, e é absurdo renunciar de uma vez para sempre a «receber o pagamento da dívida por partes»[N123]. A tarefa de um partido verdadeiramente revolucionário não consiste em proclamar impossível a renúncia a quaisquer compromissos, mas em saber permanecer fiel, através de todos os compromissos, na medida em que eles são inevitáveis, aos seus princípios, à sua classe, à sua missão revolucionária, à sua tarefa de preparação da revolução e de educação das massas do povo para a vitória da revolução.

Um exemplo. Participar na III e IV Dumas foi um compromisso, uma renúncia temporária às reivindicações revolucionárias. Mas isto foi um compromisso absolutamente forçoso, pois a correlação de forcas excluía para nós, por um certo tempo, a luta revolucionária de massas, e para a sua prolongada preparação era necessário saber trabalhar também de dentro de semelhante «pocilga». A história demonstrou que os bolcheviques tinham inteiramente razão, como partido, em tal colocação da questão.

Agora a questão é não a de um compromisso forçoso, mas voluntário.

O nosso partido, como qualquer outro partido político, aspira ao domínio político para si. O nosso objectivo é a ditadura do proletariado revolucionário. Meio ano de revolução confirma, com extraordinária clareza, força e eloquência, a justeza e a inevitabilidade dessa exigência, precisamente no interesse da revolução actual, pois de outro modo o povo não obterá nem uma paz democrática, nem a terra para os camponeses, nem a completa liberdade (uma república inteiramente democrática). O curso dos acontecimentos em meio ano da nossa revolução, a luta das classes e dos partidos, o desenvolvimento das crises de 20-21 de Abril, de 9-10 e 18-19 de Junho, de 3-5 de Julho e de 27-31 de Agosto mostraram-no e demonstraram-no.

Agora começou na revolução russa uma viragem tão brusca e tão original que, como partido, podemos propor um compromisso voluntário, não certamente à burguesia, nosso inimigo de classe principal e directo, mas aos nossos adversários mais próximos, os partidos pequeno-burgueses democráticos «dirigentes», os socialistas-revolucionários e os mencheviques.

Só como excepção, só por força de uma situação especial que, evidentemente, se manterá apenas por um período muito curto, podemos propor um compromisso a estes partidos e, em minha opinião, devemos fazê-lo.

Compromisso é, da nossa parte, o nosso regresso à reivindicação de antes de Julho: todo o poder aos Sovietes, governo de socialistas-revolucionários e mencheviques, responsável perante os Sovietes.

Agora e só agora, e talvez durante alguns dias apenas, ou uma-duas semanas, um tal governo poderia criar-se e consolidar-se de modo inteiramente pacífico. Poderia garantir com uma probabilidade gigantesca um movimento pacífico para a frente de toda a revolução russa e possibilidades extremamente grandes de grandes passos em frente do movimento mundial para a paz e a vitória do socialismo.

Só em nome desse desenvolvimento pacífico da revolução — da possibilidade extremamente rara na história e extremamente preciosa, possibilidade excepcionalmente rara —, só em seu nome os bolcheviques, partidários da revolução mundial, partidários dos métodos revolucionários, podem e devem, em minha opinião, aceitar tal compromisso.

O compromisso consistiria em que os bolcheviques, sem pretender uma participação no governo (impossível para um internacionalista sem a realização efectiva das condições da ditadura do proletariado e do campesinato pobre), renunciassem à apresentação imediata da reivindicação da passagem do poder para o proletariado e para os camponeses pobres e aos métodos revolucionários de luta por esta reivindicação. A condição, por si mesmo evidente e não nova para os socialistas-revolucionários e mencheviques, seria a plena liberdade de agitação e a convocação da Assembleia Constituinte sem novos adiamentos, ou mesmo num prazo mais breve.

Os mencheviques e os socialistas-revolucionários, como bloco governamental, concordariam (supondo que o compromisso se realizava) em formar um governo inteira e exclusivamente responsável perante os Sovietes, com a transmissão para as mãos dos Sovietes de todo o poder, incluindo o local. Nisto consistiria a «nova» condição. Penso que os bolcheviques não deveriam apresentar nenhumas outras condições, confiando em que uma efectivamente completa liberdade de agitação e a imediata realização de uma nova democracia na composição dos Sovietes (sua reeleição) e no seu funcionamento, garantiriam por si mesmas um movimento pacífico da revolução para a frente e a superação pacífica das lutas partidárias no seio dos Sovietes.

Talvez isto seja já impossível? Talvez. Mas se existe uma só possibilidade em cem, valeria a pena a experiência da realização de tal possibilidade.

Que ganhariam com esse «compromisso» ambas as partes «contratantes», ou seja, os bolcheviques por um lado e o bloco dos socialistas-revolucionários e mencheviques por outro? Se ambas as partes nada ganham é necessário considerar o compromisso impossível e então não falar dele a ninguém. Por mais difícil que seja agora (depois de Julho e Agosto, dois meses que equivalem a duas décadas de tempos sonolentos, «pacíficos») esse compromisso, parece-me que existe uma pequena possibilidade para a sua realização, e essa possibilidade é criada pela decisão dos socialistas-revolucionários e mencheviques de não entrar num governo juntamente com os democratas-constitucionalistas.

Os bolcheviques ganhariam na medida em que obteriam a possibilidade de fazer agitação com inteira liberdade a favor das suas opiniões e, em condições de uma democracia efectivamente completa, de procurar conseguir influência nos Sovietes. Em palavras, «todos» reconhecem agora essa liberdade aos bolcheviques. Mas na realidade ela é impossível com um Governo burguês ou com um governo em que participe a burguesia, com um governo que não seja soviético. Com um governo soviético, essa liberdade seria possível (não dizemos: infalivelmente garantida, mas em todo o caso possível). Para assegurar essa possibilidade, conviria, num momento tão difícil, entrar num compromisso com a actual maioria nos Sovietes. Nós nada tememos de uma verdadeira democracia, pois que a vida é a nosso favor e mesmo o curso do desenvolvimento das tendências dentro dos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, nossos adversários, confirma que temos razão.

Os mencheviques e os socialistas-revolucionários ganhariam na medida que obteriam de imediato a inteira possibilidade de realizar o programa do seu bloco, apoiando-se na manifestamente enorme maioria do povo e assegurando a utilização «pacífica» da sua maioria nos Sovietes.

Certamente que de dentro desse bloco, heterogéneo por ser bloco, mas também porque a democracia pequeno-burguesa é sempre menos homogénea do que a burguesia e o proletariado, de dentro desse bloco ouvir-se-iam, inevitavelmente, duas vozes.

Uma voz diria: o nosso caminho não é de modo nenhum o dos bolcheviques, do proletariado revolucionário. Ele, de qualquer modo, exigirá demasiado e arrastará com demagogia o campesinato pobre. Exigirá a paz e a ruptura com os aliados. Isto é impossível. Estamos mais próximos e melhor com a burguesia, não rompemos com ela; apenas altercámos por breve tempo e apenas por causa de um incidente com Kornílov. Altercámos, mas reconciliar-nos-emos. Além disso, os bolcheviques não nos «cedem» absolutamente nada, pois as tentativas de insurreição da sua parte estão absolutamente condenadas à derrota, como a Comuna de 1871.

A outra voz diria: a referência à Comuna é muito superficial e mesmo tola. Pois, primeiro lugar, os bolcheviques aprenderam alguma coisa desde 1871, e eles não deixariam de tomar os bancos nas suas mãos e não se recusariam à ofensiva sobre Versailles; e em tais condições até a Comuna podia vencer. Além disso, a Comuna não podia oferecer imediatamente ao povo aquilo que os bolcheviques podem oferecer-lhe se conseguirem o poder, a saber: a terra aos camponeses, a proposta imediata de paz, um controlo verdadeiro sobre a produção, uma paz honesta com os ucranianos, com os finlandeses, etc. Falando em termos vulgares, os bolcheviques têm nas mãos dez vezes mais «trunfos» do que tinha a Comuna. Em segundo lugar, a Comuna significa de qualquer modo uma penosa guerra civil, uma longa interrupção depois de um desenvolvimento cultural pacífico, o facilitar das operações e das manobras de todos os MacMahon e Kornílov, e tais operações ameaçam toda a nossa sociedade burguesa. Será sensato correr o risco de uma Comuna?

Mas a Comuna é inevitável na Rússia se nós não tomamos o poder, se as coisas continuam na mesma situação difícil em que estiveram desde 6 de Maio até 31 de Agosto. Todos os operários e soldados revolucionários pensarão inevitavelmente na Comuna, confiarão nela, farão inevitavelmente a tentativa de a realizar, raciocinando: o povo perece; a guerra, a fome, a ruína, crescem cada vez mais. Só a Comuna nos pode salvar. Sacrifiquemo-nos, morramos todos, mas realizemos a Comuna! Tais pensamentos são inevitáveis nos operários e não será tão fácil agora derrotar a Comuna como em 1871. A Comuna russa terá em todo o mundo aliados cem vezes mais fortes que em 1871 ... Será sensato corrermos o risco de uma Comuna? Também não se pode concordar com que no fundo os bolcheviques não nos dão nada com o seu compromisso. Pois em todos os países civilizados os ministros civilizados dão muito apreço a qualquer acordo, por pequeno que seja, com o proletariado durante a guerra. Dão um apreço muito, muito grande. Mas é gente activa, verdadeiros ministros. Os bolcheviques fortalecem-se com bastante rapidez, apesar da repressão, apesar da debilidade da sua imprensa ... Será sensato corrermos o risco de uma Comuna?

Temos uma maioria garantida, ainda não está tão próximo o despertar do campesinato pobre; temos tempo suficiente. Não creio que num país camponês a maioria siga os extremistas. E contra uma maioria manifesta, numa república verdadeiramente democrática, a insurreição é impossível. Assim falaria a segunda voz.

Talvez se encontre uma terceira voz, de entre quaisquer partidários de Martov ou de Spiridonova, que diga: indigna-me, «camaradas», que vós ambos, raciocinando sobre a Comuna e a sua possibilidade, vos coloqueis sem vacilações ao lado dos seus adversários. Um de uma forma, outro de outra, mas ambos estais ao lado daqueles que esmagaram a Comuna. Não irei fazer campanha pela Comuna, não posso prometer de antemão combater nas suas fileiras como faz qualquer bolchevique, mas devo no entanto dizer que se a Comuna surge apesar dos meus esforços, antes ajudarei os seus defensores que os seus adversários...

A divergência no «bloco» é grande e inevitável, pois na democracia pequeno-burguesa está representada uma infinidade de matizes, que vão do completamente burguês completamente ministeriável até ao quase mendigo que ainda não é inteiramente capaz de passar para a posição do proletário. E ninguém sabe qual vai ser em cada momento concreto o resultado dessa divergência.

* * *

As linhas precedentes foram escritas na sexta-feira 1 de Setembro, e, devido a circunstâncias fortuitas (a história dirá que, sob Kérenski, nem todos os bolcheviques gozavam da liberdade de escolher o seu domicílio), não chegaram à redacção nesse mesmo dia. Mas depois da leitura dos jornais de sábado e de hoje, domingo, digo-me: talvez seja já demasiado tarde para propor um compromisso. Talvez tenham passado também os poucos dias em que era possível ainda um desenvolvimento pacífico. Sim, tudo indica que já passaram[N124]. Kérenski afastar-se-á, de um modo ou de outro, tanto do partido dos socialistas-revolucionários como dos socialistas-revolucionários, e reforçar-se-á com a ajuda dos burgueses sem os socialistas-revolucionários, graças à sua inacção ... Sim, tudo indica que já lá vão os dias em que se tornara ocasionalmente possível o caminho do desenvolvimento pacífico. Só me resta enviar estas notas à redacção com o pedido de as intitular: «Pensamentos tardios» ... Por vezes talvez tenha interesse conhecer mesmo os pensamentos tardios.


Notas de fim de tomo:

[N122] Ver F. Engels, A literatura dos Emigrados. II, O Programa dos Emigrados Blanquistas da Comuna. (In Karl Marx/Friederich Engels, Werke, Bd. 18, S. 528-535.) (retornar ao texto)

[N123] Ver a carta de F. Engels a F. Turati de 26 de Janeiro 1894. (In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 22, S. 440.) (retornar ao texto)

[N124] Depois de ter sido esmagado o levantamento armado de Kornílov, colocou-se a questão da formação de um novo Governo Provisório no qual, pressupunha-se, ao lado dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários deveriam participar também os democratas-constitucionalistas. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários, temendo perder definitivamente a confiança das massas, declararam recusar-se a entrar num governo com a participação dos democratas-constitucionalistas. Em 1 (14) de Setembro de 1917 o Governo Provisório resolveu criar um directório constituído por 5 pessoas: A.F. Kérenski, A.I. Verkhóvski, D.N. Verderévski, A.M. Nikítine e M.I. Teréchtchenko. Os democratas-constitucionalistas não entraram formalmente no governo, mas este foi formado na base de um acordo com eles. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários, no plenário conjunto do Comité Executivo Central dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados e do Comité Executivo do Soviete de Deputados Camponeses de 2 (15) de Setembro, apresentaram uma resolução expressando confiança no novo governo. Desta maneira, os mencheviques e os socialistas-revolucionários, declarando em palavras o rompimento com os democratas-constitucionalistas, ajudaram uma vez mais os capitalistas e latifundiários a conservarem o poder nas suas mãos.

 

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Inclusão 18/03/2009