Duas Tácticas da Social-Democracia na Revolução Democrática

V. I. Lénine

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4. A Liquidação do Regime Monárquico e a República


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Passemos à parte seguinte da resolução:

«... Tanto num como noutro caso, essa vitória será o princípio de uma nova fase da época revolucionária.

«A tarefa que as condições objectivas do desenvolvimento social colocam espontaneamente para esta nova fase é a liquidação definitiva de todo o regime monárquico e de estados sociais no processo da luta recíproca entre os elementos da sociedade burguesa politicamente emancipada pela realização dos seus interesses sociais e pela posse directa do poder.

«Por isso, o governo provisório que assumisse a realização das tarefas desta revolução, burguesa pelo seu carácter histórico, deveria, ao regular a luta recíproca entre as classes antagónicas da nação que está a emancipar-se, não somente impulsionar o desenvolvimento revolucionário, mas também lutar contra os factores do mesmo que ameacem as bases do regime capitalista.»

Detenhamo-nos nesta parte, que constitui uma parte independente da resolução. A ideia fundamental dos raciocínios que reproduzimos coincide com a exposta no ponto 3 da resolução do congresso. Mas, se compararmos as duas resoluções nesta parte, ressaltará imediatamente aos olhos a seguinte diferença radical entre elas. A resolução do congresso, depois de caracterizar em duas palavras a base económico-social da revolução, dirige toda a sua atenção para a luta de classes nitidamente definida por conquistas determinadas e coloca em primeiro plano as tarefas de combate do proletariado. A resolução da conferência, depois de descrever de modo extenso, nebuloso e confuso a base económico-social da revolução, fala de modo muito pouco claro da luta por conquistas precisas e deixa absolutamente na sombra as tarefas de combate do proletariado. A resolução da conferência fala da liquidação do antigo regime no processo de uma luta recíproca dos elementos da sociedade. A resolução do congresso diz que nós, partido do proletariado, devemos efectuar essa liquidação, que somente a instauração da república democrática constitui a verdadeira liquidação, que devemos conquistar esta república, que lutaremos por ela e pela liberdade completa não só contra a autocracia mas também contra a burguesia, quando esta pretenda (e fá-lo-á por certo) arrebatar as nossas conquistas. A resolução do congresso chama à luta uma classe determinada, por um objectivo imediato, definido de maneira precisa. A resolução da conferência discorre sobre a luta recíproca das diferentes forças. Uma resolução exprime a psicologia da luta activa, outra a da contemplação passiva. Uma está impregnada de apelos à acção viva, outra de raciocínios mortos. Ambas as resoluções declaram que a revolução que está a processar-se representa para nós apenas um primeiro passo, ao qual se seguirá o segundo; mas uma das resoluções tira daí a conclusão de que há que dar com a maior rapidez este primeiro passo, liquidá-lo com a maior rapidez, conquistar a república, esmagar implacavelmente a contra-revolução e preparar o terreno para o segundo passo; em contrapartida, a outra resolução espraia-se, por assim dizer, em descrições prolixas deste primeiro passo e (perdoai a vulgaridade da expressão) mastiga as suas ideias a este respeito. A resolução do congresso toma as velhas e eternamente novas ideias do marxismo (sobre o carácter burguês da revolução democrática) como prólogo ou primeira premissa para tirar conclusões sobre as tarefas avançadas da classe avançada, que luta tanto pela revolução democrática como pela revolução socialista. A resolução da conferência não vai além do prólogo, ruminando-o e filosofando com pretensa subtileza sobre o mesmo.

Esta diferença é exactamente a que há muito tempo divide os marxistas russos em duas alas: a ala arrazoadora e a ala combativa, nos tempos idos do marxismo legal, a ala económica e a ala política, na época do movimento de massas que estava a iniciar-se. Da premissa acertada do marxismo sobre as profundas raízes económicas da luta de classes em geral e da luta política em particular, os «economistas» tiravam a conclusão singular de que deveríamos voltar as costas à luta política e sustar o seu desenvolvimento, reduzir o seu alcance, minimizar as suas tarefas. Os políticos, ao contrário, extraíam das mesmas premissas outra conclusão, a saber: que, quanto mais profundas forem agora as raízes da nossa luta, de modo mais vasto, mais corajoso, mais decidido, com maior iniciativa deveremos travar esta luta. Na actualidade, noutras circunstâncias, com uma forma modificada, encontramo-nos em presença do mesmo debate. Das premissas de que a revolução democrática ainda não é de modo algum socialista, de que não «interessa» só e exclusivamente aos não-possidentes, de que as suas raízes profundíssimas se encontram nas necessidades e nas exigências inelutáveis de toda a sociedade burguesa no seu conjunto, destas premissas nós tiramos a conclusão de que a classe avançada deve estabelecer as suas tarefas democráticas com tanto maior audácia, deve formulá-las com tanto maior precisão até ao fim, apresentar a palavra de ordem directa de república, propagandear a ideia da necessidade do governo provisório revolucionário e de esmagar implacavelmente a contra-revolução. E os nossos contraditores, os neo-iskristas, deduzem destas mesmas premissas a conclusão de que não há que formular até ao fim as conclusões democráticas, de que entre as palavras de ordem práticas se pode prescindir da de república, de que se pode não propagandear a ideia da necessidade do governo provisório revolucionário, de que se pode qualificar de vitória decisiva mesmo a resolução de convocar a assembleia constituinte, de que se pode não defender a palavra de ordem de combate à contra-revolução como nossa tarefa activa, mas afogá-la numa alusão nebulosa (e formulada erradamente, como veremos mais adiante) ao «processo de luta recíproca». Esta não é uma linguagem própria de políticos, mas sim de ratos de arquivo!

E quanto mais atentamente examinardes as diferentes fórmulas da resolução dos neo-iskristas, com tanta maior evidência surgirão ante vós as particularidades fundamentais da mesma já por nós indicadas. Falam-nos, por exemplo, do «processo da luta recíproca entre os elementos da sociedade burguesa politicamente emancipada». Recordando o tema que se tratava na resolução (governo provisório revolucionário), perguntamos perplexos: se se fala de processo de luta recíproca, como se pode guardar silêncio a respeito dos elementos que politicamente escravizam a sociedade burguesa ? Pensam os conferencistas que, pelo facto de terem suposto a vitória da revolução, estes elementos já desapareceram? Esta ideia seria absurda em geral e seria a expressão da maior ingenuidade política, de miopia política em particular. Depois da vitória da revolução sobre a contra-revolução, esta não desaparecerá mas, pelo contrário, iniciará inevitavelmente uma nova luta ainda mais desesperada. Ao consagrar a nossa resolução ao exame das tarefas que nos traria a vitória da revolução, temos o dever de dedicar grande atenção às tarefas que têm como objectivo a ofensiva da contra-revolução (como se faz na resolução do congresso), e não afogar estas tarefas políticas imediatas, essenciais, candentes, de um partido combativo em raciocínios gerais a propósito do que haverá depois da época revolucionária actual, do que haverá quando nos encontrarmos já em presença de uma «sociedade politicamente emancipada». Do mesmo modo que os «economistas» encobriam a sua incompreensão das tarefas políticas candentes com alusões às verdades gerais sobre a subordinação da política à economia, os neo-iskristas, remetendo-se às verdades gerais sobre a luta no interior da sociedade politicamente emancipada, encobrem a sua incompreensão das tarefas revolucionárias candentes da emancipação política desta sociedade.

Tomai a expressão: «liquidação definitiva de todo o regime monárquico e de estados sociais». Em russo, a liquidação definitiva do regime monárquico chama-se instauração da república democrática. Mas ao nosso bom Martínov e seus admiradores esta expressão parece demasiadamente simples e clara. Eles querem absolutamente «aprofundar» e dizer coisas «mais sábias». Assim resultam, por um lado, esforços ridículos para demonstrar profundidade de pensamento. E, por outro lado, em vez de uma palavra de ordem temos uma descrição, em vez de um apelo alentador para ir para a frente temos uma espécie de olhar melancólico para trás. Parece que não se trata de gente viva que queira lutar agora mesmo, sem demora, pela república, mas de uma espécie de múmias petrificadas que sub specie aeternitatis examinam a questão do ponto de vista plusquamperfectum(9*).

Prossigamos: «... o governo provisório... assumisse a realização das tarefas desta revolução burguesa ...». Neste ponto vê-se logo que os nossos conferencistas desprezaram uma questão concreta que surge aos dirigentes políticos do proletariado. A questão concreta do governo provisório revolucionário sobrepôs-se no seu campo visual a questão da futura série de governos que realizarão as tarefas da revolução burguesa em geral. Se desejais examinar a questão «historicamente», o exemplo de qualquer país europeu vos mostrará que precisamente uma série de governos, de modo nenhum «provisórios», realizaram as tarefas históricas da revolução burguesa, que mesmo governos que tinham vencido a revolução se viram, apesar disso, obrigados a realizar as tarefas históricas dessa revolução vencida. Mas o que se chama «governo provisório revolucionário» não é de modo algum esse de que falais: chama-se assim o governo da época revolucionária, que substitui directamente o governo derrubado e se apoia na insurreição popular e não em instituições representativas surgidas do povo. O governo provisório revolucionário é o órgão da luta pela vitória imediata da revolução, para o rechaçar imediato das tentativas contra-revolucionárias, e não de modo algum um órgão de realização das tarefas históricas da revolução burguesa em geral. Deixemos, senhores, aos futuros historiadores da futura Rússkaia Stariná a determinação de que tarefas da revolução burguesa realizámos nós e vós ou tal ou tal governo; mesmo dentro de 30 anos isso poderá fazer-se, mas do que agora necessitamos é de dar palavras de ordem e indicações práticas para a luta pela república e para a participação mais enérgica do proletariado nesta luta.

Pelos motivos indicados, tão-pouco são satisfatórias as últimas teses desta parte da resolução por nós reproduzida. E muito infeliz, ou pelo menos inábil, a expressão de que o governo provisório deveria «regular» a luta das classes antagónicas entre si: os marxistas não deveriam empregar uma fórmula liberal-osvobojdenista como esta, que dá margem a pensar ser possível um governo que sirva, não de órgão da luta de classes, mas de «regulador» da mesma... O governo deveria «não somente impulsionar o desenvolvimento revolucionário, mas também lutar contra os factores do mesmo que ameacem as bases do regime capitalista». Este «factor» é precisamente esse mesmo proletariado em nome do qual fala a resolução! Em vez de indicar precisamente como o proletariado deve, num tal momento, «impulsionar o desenvolvimento revolucionário» (levá-lo mais além do que pretenderia a burguesia constitucionalista), em vez de aconselhar que se prepare de um modo determinado para a luta contra a burguesia quando esta se voltar contra as conquistas da revolução — em vez disso dá-nos uma descrição geral do processo, que nada diz sobre as tarefas concretas da nossa actuação. O processo de exposição das suas idéias pelos neo-iskristas recorda a opinião de Marx (nas suas famosas «teses» sobre Feuerbach) acerca do velho materialismo, alheio à ideia da dialéctica. Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas maneiras - dizia Marx —, mas do que se trata é de transformá-lo [N240]. Do mesmo modo, os neo-iskristas podem descrever e explicar menos mal o processo de luta que se desenrola sob os seus olhos, mas são absolutamente incapazes de dar uma palavra de ordem justa nesta luta. Caminhando cuidadosamente, mas dirigindo mal, rebaixam a interpretação materialista da história porque ignoram o papel activo, dirigente e orientador que podem e devem desempenhar na história os partidos que tenham consciência das condições materiais da revolução e se coloquem à frente das classes avançadas.

5. Como se Deve «Impulsionar a Revolução para a Frente»?

Citemos a passagem seguinte da resolução:

"Em tais condições, a social-democracia deve esforçar-se por conservar, durante todo o curso da revolução, uma posição tal que melhor lhe garanta a possibilidade de impulsionar a revolução para a frente, não lhe ate as mãos na luta contra a política inconsequente e interessada dos partidos burgueses e a proteja contra a sua diluição na democracia burguesa.

"Assim, a social-democracia não deve estabelecer como seu objectivo conquistar ou compartilhar o poder no governo provisório, mas deve continuar a ser o partido da oposição revolucionária extrema.»

O conselho de ocupar uma posição que garanta, do melhor modo, a possibilidade de impulsionar a revolução para a frente agrada-nos sobremaneira. A única coisa que desejaríamos é que, além desse bom conselho, houvesse indicações directas de como precisamente agora, na situação política presente, na época de boatos, suposições, tagarelices e projectos de convocação dos representantes populares, a social-democracia tem de impulsionar a revolução para a frente. Poderá actualmente impulsionar a revolução para a frente quem não compreende o perigo da teoria da Osvobojdénie do «acordo» do povo com o tsar, quem qualifica de vitória a mera «decisão» de convocar a assembleia constituinte, quem não se põe como tarefa propagandear activamente a ideia da necessidade do governo provisório revolucionário, quem deixa na sombra a palavra de ordem de república democrática? Essa gente, na realidade, impulsiona a revolução para trás, porque na política prática se deteve no nível da posição em que se encontram os osvobojdenistas. Que valor pode ter a sua aceitação do programa que exige a substituição da autocracia pela república se, na resolução táctica que define as tarefas actuais e imediatas do partido no momento revolucionário, falta a palavra de ordem de luta pela república? Pois é justamente a posição osvobojdenista, a posição da burguesia constitucionalista, que se caracteriza na actualidade de facto pela decisão de convocar a assembleia constituinte de todo o povo, que é considerada como uma vitória decisiva, enquanto se guarda prudentemente silêncio sobre o governo provisório revolucionário e sobre a república! Para impulsionar a revolução para a frente, isto é, para além do limite até ao qual a conduz a burguesia monárquica, é preciso apresentar activamente, sublinhar e colocar em primeiro plano palavras de ordem que excluam a «inconsequência» da democracia burguesa. Estas palavras de ordem, no momento actual, são só duas: 1) governo provisório revolucionário, e 2) república, porque a palavra de ordem de assembleia constituinte de todo o povo foi aceite pela burguesia monárquica (ver o programa da «União de Libertação»)[N241] e foi aceite precisamente para escamotear a revolução, para não permitir a vitória completa da revolução, para servir os interesses de uma transacção traficante entre a grande burguesia e o tsarismo. E vemos que a conferência, destas duas palavras de ordem, as únicas capazes de impulsionar a revolução para diante, esqueceu completamente a palavra de ordem de república, e a palavra de ordem de governo provisório revolucionário equiparou-a directamente à palavra de ordem osvobojdenista de assembleia constituinte de todo o povo, qualificando de «vitória decisiva da revolução» tanto uma como outra!

Sim, tal é o facto indubitável que, estamos persuadidos disso, servirá de marco para o futuro historiador da social-democracia russa. Uma conferência de sociais-democratas realizada em Maio de 1905 adopta uma resolução que contém belas palavras sobre a necessidade de impulsionar a revolução democrática para a frente e que, de facto, a impulsiona para trás, que, de facto, não vai além das palavras de ordem democráticas da burguesia monárquica.

Os neo-iskristas gostam de nos acusar de ignorar o perigo da diluição do proletariado na democracia burguesa. Mas gostaríamos de ver quem se atreveria a demonstrar esta acusação baseando-se no texto das resoluções aprovadas pelo III congresso do POSDR. Responderemos aos nossos contraditores: a social-democracia, que actua no terreno da sociedade burguesa, não pode participar na política sem marchar, em tal ou tal caso isolado, ao lado da democracia burguesa. A diferença entre nós e vós neste ponto consiste em que nós marchamos ao lado da burguesia revolucionária e republicana sem nos fundirmos com ela, enquanto vós marchais ao lado da burguesia liberal e monárquica sem também vos fundirdes com ela. Eis como se apresentam os factos.

As vossas palavras de ordem tácticas, formuladas em nome da conferencia, coincidem com as palavras de ordem do partido «democrata-constitucionalista», isto é, com as do partido da burguesia monárquica, com a particularidade de que vós não notastes esta coincidência, não vos destes conta dela, colocando-vos assim, de facto, na cauda dos osvobojdenistas.

As nossas palavras de ordem tácticas, formuladas em nome do III congresso do POSDR, coincidem com as da burguesia democrático-revolucionária e republicana. Esta burguesia e a pequena burguesia não formaram ainda um grande partido popular na Rússia(10*). Mas somente pode duvidar da existência dos elementos de tal partido quem não tenha nenhuma ideia sobre o que se passa actualmente na Rússia. Propomo-nos dirigir (no caso de a grande revolução russa se desenvolver com êxito) não somente o proletariado, organizado pelo partido social-democrata, mas também essa pequena burguesia capaz de marchar ao nosso lado.

A conferência, na sua resolução, desce inconscientemente até ao nível da burguesia liberal e monárquica. O congresso do partido, com a sua resolução, eleva conscientemente até ao seu nível os elementos da democracia revolucionária capazes de lutar e não de transacções mercantis.

Estes elementos encontram-se sobretudo entre os camponeses. Sem cometer um grande erro, ao classificar os grandes grupos sociais segundo as suas tendências políticas podemos identificar a democracia revolucionária e republicana com a massa do campesinato, naturalmente no mesmo sentido e com as mesmas reservas e as condições subentendidas com as quais se pode identificar a classe operária com a social-democracia. Podemos, noutros termos, formular as nossas conclusões também do seguinte modo: a conferência, com as suas palavras de ordem políticas de âmbito nacional(11*) , no momento revolucionário, desce inconscientemente até ao nível da massa dos latifundiários. O congresso do partido, com as suas palavras de ordem políticas de âmbito nacional, eleva a massa dos camponeses até ao nível revolucionário. Ao que nos acuse, devido a esta conclusão, de simpatia pelos paradoxos, formulamos o repto de refutar a seguinte tese: se não tivermos forças para levar a revolução até ao fim, se a revolução terminar com uma «vitória decisiva» compreendida à maneira osvobojdenista, isto é, unicamente na forma de uma assembleia representativa convocada pelo tsar, à qual só por troça se poderia chamar constituinte — então isso será uma revolução com o predomínio dos elementos latifundiários e da grande burguesia. Pelo contrário, se estivermos destinados a viver uma revolução efectivamente grande, se, desta vez, a história não permitir um «aborto», se tivermos forças para levar a revolução até ao fim, até à vitória decisiva, não no sentido que dão a essa palavra os osvobojdenistas e os neo-iskristas, então isso será uma revolução na qual predominarão os elementos camponeses e proletários.

Alguns verão talvez no facto de admitir a ideia de tal predomínio uma renúncia à nossa convicção sobre o carácter burguês da revolução próxima. Isto é muito possível se tivermos em conta o abuso que se faz desse conceito no Iskra. Por isso, não será de forma alguma supérfluo determo-nos nesta questão.

6. De que Lado Ameaça o Proletariado o Perigo de se Ver Com as Mãos Atadas na Luta Contra a Burguesia Inconsequente?

Os marxistas estão absolutamente convencidos do carácter burguês da revolução russa. Que significa isto? Isto significa que as transformações democráticas no regime político e as transformações económico-sociais, que se converteram numa necessidade para a Rússia, não só não implicam por si o minar do capitalismo, o minar da dominação da burguesia, mas, pelo contrário, desbravarão pela primeira vez realmente o terreno para um desenvolvimento vasto e rápido, europeu e não asiático, do capitalismo e, pela primeira vez, tornarão possível a dominação da burguesia como classe. Os socialistas-revolucionários não podem compreender esta ideia porque desconhecem o á-bê-cê das leis do desenvolvimento da produção mercantil e capitalista, não vêem que mesmo o êxito completo da insurreição camponesa, a redistribuição de toda a terra em benefício dos camponeses e de acordo com os seus desejos («partilha negra» ou qualquer coisa deste género) não destruiria de forma alguma o capitalismo, antes, pelo contrário, daria um impulso ao seu desenvolvimento e aceleraria a diferenciação de classe entre os próprios camponeses. A incompreensão desta verdade converte os socialistas-revolucionários em ideólogos inconscientes da pequena burguesia. Insistir nesta verdade tem para a social-democracia uma importância imensa não só teórica mas também política prática, pois daqui decorre o carácter obrigatório da completa independência de classe do partido do proletariado no presente movimento «democrático geral».

Mas disto não decorre, de forma alguma, que a revolução democrática (burguesa pelo seu conteúdo económico-social) não seja de enorme interesse para o proletariado. Disto não decorre, de maneira nenhuma, que a revolução democrática não possa processar-se tanto de uma forma vantajosa principalmente para o grande capitalista, para o magnate financeiro, para o latifundiário «esclarecido», como de uma forma vantajosa para o camponês e para o operário.

Os neo-iskristas interpretam de modo radicalmente errado o sentido e a significação da categoria «revolução burguesa». Nos seus raciocínios transparece constantemente a ideia de que a revolução burguesa é uma revolução que só pode dar aquilo que beneficia a burguesia. E, contudo, não há nada mais errado do que esta ideia. A revolução burguesa é uma revolução que não ultrapassa o quadro do regime económico-social burguês, isto é, capitalista. A revolução burguesa exprime as necessidades do desenvolvimento do capitalismo, não só não destruindo as suas bases, mas, pelo contrário, alargando-as e aprofundando-as. Esta revolução exprime, portanto, não apenas os interesses da classe operária, mas também os de toda a burguesia. Uma vez que a dominação da burguesia sobre a classe operária é inevitável sob o capitalismo, pode-se dizer com todo o direito que a revolução burguesa exprime os interesses não tanto do proletariado como da burguesia. Mas é completamente absurda a ideia de que a revolução burguesa não exprime em nenhuma medida os interesses do proletariado. Esta idéia absurda reduz-se ou à velha teoria populista de que a revolução burguesa é contrária aos interesses do proletariado e de que não temos necessidade, por esse motivo, da liberdade política burguesa, ou esta idéia reduz-se ao anarquismo, que nega qualquer participação do proletariado na política burguesa, na revolução burguesa, no parlamentarismo burguês. No plano teórico esta idéia representa em si o esquecimento das teses elementares do marxismo relativas à inevitabilidade do desenvolvimento do capitalismo sobre a base da produção mercantil. O marxismo ensina que uma sociedade fundada sobre a produção mercantil e que tenha relações de intercâmbio com as nações capitalistas civilizadas toma inevitavelmente ela própria, ao chegar a certo grau de desenvolvimento, a via do capitalismo. O marxismo rompeu irremissivelmente com as elucubrações dos populistas e anarquistas, segundo as quais a Rússia, por exemplo, podia evitar o desenvolvimento capitalista, escapar ao capitalismo ou saltar por cima dele por qualquer meio que não o da luta de classes no terreno e dentro dos limites desse mesmo capitalismo.

Todas estas teses do marxismo foram demonstradas e repetidas em todos os pormenores, tanto em geral como particularmente em relação à Rússia. E destas teses deduz-se que é uma idéia reaccionária procurar a salvação da classe operária nalguma coisa que não seja o desenvolvimento do capitalismo. Em países como a Rússia, a classe operária sofre não tanto do capitalismo como da insuficiência do desenvolvimento do capitalismo. Por isso a classe operária está absolutamente interessada no mais amplo, mais livre e mais rápido desenvolvimento do capitalismo. É absolutamente vantajosa para a classe operária a eliminação de todas as reminiscências do passado que entorpecem o desenvolvimento amplo, livre e rápido do capitalismo. A revolução burguesa é precisamente uma revolução que mais decididamente varre os restos do passado, os restos do regime de servidão (a estes restos pertencem não só a autocracia, mas também a monarquia) e garante, do modo mais completo, o desenvolvimento mais amplo, mais livre, mais rápido do capitalismo.

Por isso, a revolução burguesa é vantajosa no mais alto grau para o proletariado. A revolução burguesa é absolutamente necessária para os interesses do proletariado. Quando mais completa e decidida, quanto mais consequente for a revolução burguesa, tanto mais garantida estará a luta do proletariado contra a burguesia pelo socialismo. Esta conclusão só pode parecer nova, estranha ou paradoxal para os que ignorem o á-bê-cê do socialismo científico. E desta conclusão, diga-se de passagem, decorre a tese de que, em certo sentido, a revolução burguesa é mais vantajosa para o proletariado do que para a burguesia. Esta tese é indiscutivelmente correcta no seguinte sentido: é vantajoso para a burguesia apoiar-se nalguns dos restos do passado contra o proletariado, por exemplo, na monarquia, no exército permanente, etc. É vantajoso para a burguesia que a revolução burguesa não varra demasiado resolutamente todos os restos do passado, mas deixe de pé alguns deles, que esta revolução não seja inteiramente consequente, não vá até ao fim, não seja decidida e implacável. Os sociais-democratas exprimem frequentemente esta ideia de modo um pouco diferente, dizendo que a burguesia se trai a si mesma, que a burguesia trai a causa da liberdade, que a burguesia é incapaz de um espírito democrático consequente. Para a burguesia é mais vantajoso que as transformações necessárias num sentido democrático-burguês se produzam mais lentamente, mais gradualmente, mais prudentemente, menos decididamente, pela via de reformas e não pela via da revolução; que estas transformações sejam o mais prudentes possível em relação às «veneráveis» instituições do regime de servidão (tais como a monarquia); que estas transformações desenvolvam o menos possível a actividade independente, a iniciativa e a energia revolucionárias da gente comum, isto é, do campesinato e especialmente dos operários, pois, de outro modo, será mais fácil aos operários «mudar a espingarda de um ombro para o outro», como dizem os franceses, isto é, dirigir contra a própria burguesia a arma que a revolução burguesa lhes fornecer, a liberdade que esta lhes der, as instituições democráticas que surgirem no terreno limpo do regime de servidão.

Em contrapartida, é mais vantajoso para a classe operária que as transformações necessárias no sentido democrático-burguês se produzam precisamente não pela via de reformas, mas por via revolucionária, pois a via de reformas é a via das dilações, dos adiamentos, da agonia dolorosa e lenta das partes apodrecidas do organismo popular. Os que sofrem mais e em primeiro lugar com esta putrefacção são o proletariado e o campesinato. A via revolucionária é a via da operação mais rápida e menos dolorosa para o proletariado, a via da eliminação directa das partes apodrecidas, a via do mínimo de concessões e cautelas em relação à monarquia e às suas correspondentes instituições repelentes, ignominiosas e apodrecidas, que envenenam a atmosfera com a sua decomposição.

Eis porque a nossa imprensa liberal burguesa, não só por razões de censura, não só por medo, deplora a possibilidade de uma via revolucionária, teme a revolução, assusta o tsar com a revolução, procura evitar a revolução, humilha-se e prosterna-se para obter reformas mesquinhas como base da via reformista. Defendem este ponto de vista não só o Rússkie Viédomosti, o Sin Otétchestva, o Nacha Jizn, o Náchi Dni[N242], mas também a ilegal e livre Osvobojdénie. A própria situação da burguesia, como classe na sociedade capitalista, gera inevitavelmente a sua inconsequência na revolução democrática. A própria situação do proletariado, como classe, obriga-o a ser democrata consequente. A burguesia, temendo o progresso democrático que ameaça fortalecer o proletariado, volta os olhos para trás. O proletariado nada tem a perder a não ser as suas cadeias, mas, com a ajuda da democracia, tem todo o mundo a ganhar. Por isso, quanto mais consequente for a revolução burguesa nas suas transformações democráticas tanto menos se limitará ao que é vantajoso exclusivamente para a burguesia. Quanto mais consequente for a revolução burguesa tanto mais garantirá as vantagens do proletariado e do campesinato na revolução democrática.

O marxismo ensina o proletariado não a ficar à margem da revolução burguesa, não a ser indiferente a ela, não a entregar a sua direcção à burguesia, antes pelo contrário, a participar nela do modo mais enérgico, a lutar do modo mais decisivo pela democracia proletária consequente, para levar até ao fim a revolução. Não podemos ultrapassar os limites democrático-burgueses da revolução russa, mas podemos ampliar em proporções colossais estes limites, podemos e devemos dentro destes limites lutar pelos interesses do proletariado, pela satisfação das suas necessidades imediatas e pelas condições que tornarão possível preparar as suas forças para a futura vitória completa. Há democracia burguesa e democracia burguesa. O monárquico dos zemstvos, partidário de uma câmara alta, que «reclama» o sufrágio universal ao mesmo tempo que estabelece secretamente um arranjo com o tsarismo para obter uma constituição mutilada, é um democrata burguês. O camponês que, com as armas na mão, se ergue contra os latifundiários e os funcionários e, com um «republicanismo ingénuo», propõe «correr com o tsar»(12*) é também um democrata burguês. Há regimes democrático-burgueses tal como na Alemanha e tal como na Inglaterra; tal como na Áustria e tal como na América ou na Suíça. Seria um belo marxista quem, na época da revolução democrática, deixasse escapar esta diferença entre os graus da democracia e entre o diferente carácter de uma ou outra das suas formas e se limitasse a «filosofar» a propósito de que, no fim de contas, isto é uma «revolução burguesa», fruto de uma «revolução burguesa».

E os nossos neo-ískristas são precisamente tais filósofos que se vangloriam da sua miopia. Eles limitam-se precisamente a discorrer sobre o carácter burguês da revolução, quando o que é necessário é saber estabelecer uma diferença entre a democracia burguesa republicano-revolucionária e a monárquico-liberal, sem falar já da diferença entre o espírito democrático burguês inconsequente e o proletário consequente. Contentam-se como se se tivessem convertido verdadeiramente em «homens enconchados»[N243] com palavras melancólicas sobre o «processo de luta recíproca entre as classes antagónicas», quando do que se trata é de dar uma direcção democrática à revolução actual, de sublinhar as palavras de ordem democráticas da vanguarda para as diferenciar das palavras de ordem de traição do Sr. Struve e C.a, de indicar de modo claro e preciso as tarefas imediatas da luta verdadeiramente revolucionária do proletariado e do campesinato, bem diferentes do regateio liberal dos latifundiários e fabricantes. Nisto consiste agora, meus senhores, o fundo da questão, que deixásteís escapar: em que a nossa revolução termine numa verdadeira e grandiosa vitória ou num compromisso mesquinho, em que chegue até à ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato ou que «se esvazie das suas forças» através de uma constituição liberal-chipovista!

A primeira vista pode parecer que, ao colocar esta questão, nos afastamos completamente do nosso tema. Mas isso só pode parecer assim à primeira vista. Na realidade, é precisamente nesta questão que se encontra a raiz da divergência de princípio que já se desenhou completamente entre a táctica social-democrata do III congresso do Partido Operário Social-Democrata da Rússia e a táctica estabelecida na conferência dos neo-iskristas. Estes últimos deram já não dois mas três passos atrás, ressuscitando os erros do «economismo» na resolução das questões incomparavelmente mais complexas, mais importantes e mais vitais para o partido operário da sua táctica no momento da revolução. Eis porque temos que nos deter com toda a atenção no exame do problema levantado.

Na parte da resolução dos neo-iskristas por nós reproduzida é apontado o perigo de que a social-democracia se ate as mãos na luta contra a política inconsequente da burguesia, de que se dilua na democracia burguesa. A idéia deste perigo transparece como um fio vermelho em toda a literatura especificamente neo-iskrista, esta ideia é o verdadeiro eixo de toda a posição de princípio na cisão do nosso partido (desde que os elementos de querela mesquinha nesta cisão foram completamente relegados para o último plano perante os elementos de viragem para o «economismo»). E nós reconhecemos também sem circunlóquios de qualquer género que este perigo existe realmente, que precisamente agora, no apogeu da revolução russa, este perigo assumiu um carácter particularmente sério. A todos nós, os teóricos, ou — no que a mim se refere preferiria dizer — os publicistas da social-democracia, incumbe a tarefa inadiável e extraordinariamente responsável de analisar de que lado, na realidade, este perigo ameaça. Porque a origem da nossa divergência encontra-se não no debate a propósito de se existe ou não este perigo, mas no debate sobre se o mesmo é causado pelo chamado seguidismo da «minoria» ou pelo chamado revolucionarismo da «maioria».

Para eliminar falsas interpretações e mal-entendidos assinalamos em primeiro lugar que o perigo a que nos referimos reside não no aspecto subjectivo da questão, mas no objectivo, não na posição formal que a social-democracia venha a ocupar na luta, mas no desenlace material de toda a luta revolucionária presente. A questão não consiste em saber se tais ou tais grupos sociais-democratas quererão diluir-se na democracia burguesa, se se apercebem de que se diluem — não é disso que se trata. Não temos suspeitas de que algum social-democrata manifeste semelhante desejo, e não se trata aqui de modo nenhum de desejos. A questão não consiste também em saber se tais ou tais grupos sociais-democratas conservarão a sua independência, a sua individualidade, a sua autonomia formais em relação à democracia burguesa em todo o decurso da revolução. Eles poderão não só proclamar essa «independência», mas também mantê-la formalmente, mas, contudo, as coisas podem processar-se de tal maneira que se encontrem de mãos atadas na luta contra a inconsequência da burguesia. O resultado político definitivo da revolução pode ser que, apesar da «independência» formal, apesar da social-democracia manter plenamente a sua individualidade como organização, como partido, de facto não seja independente, não seja capaz de imprimir à marcha dos acontecimentos a marca da sua independência proletária, que se mostre tão fraca que, no conjunto e no fim de contas, no balanço definitivo, a sua «diluição» na democracia burguesa seja, apesar de tudo, um facto histórico.

Eis pois em que consiste o perigo real. E vejamos agora de que lado ele ameaça: do do desvio da social-democracia para a direita personificado no novo Iskra, como nós pensamos, ou do do desvio da mesma para a esquerda, personificado pela «maioria», pelo Vperiod, etc, como pensam os neo-iskristas?

A solução deste problema, como já apontámos, será determinada pela combinação objectiva da acção das diferentes forças sociais. O carácter destas forças foi determinado no plano teórico pela análise marxista da realidade russa e no presente é determinado no plano prático pela acção aberta dos grupos e das classes no processo da revolução. Ora, toda a análise teórica efectuada pelos marxistas muito antes da época que atravessamos e todas as observações práticas sobre o desenvolvimento dos acontecimentos revolucionários mostram-nos que são possíveis, do ponto de vista das condições objectivas, dois cursos e dois desenlaces da revolução na Rússia. A transformação do regime económico e político na Rússia no sentido democrático-burguês é inevitável e inelutável. Não há força no mundo capaz de impedir esta transformação. Mas da combinação da acção das forças existentes, criadoras desta transformação, podem surgir dois resultados ou duas formas desta transformação. Das duas uma: 1) ou as coisas terminarão com a «vitória decisiva da revolução sobre o tsarismo», ou 2) não haverá forças suficientes para a vitória decisiva e as coisas terminarão por um acordo entre o tsarismo e os elementos mais «inconsequentes» e «egoístas» da burguesia. Toda a variedade infinita de pormenores e combinações que ninguém pode prever se reduz, no fim de contas, a um ou a outro destes dois resultados.

Vejamos agora estes desenlaces, primeiro do ponto de vista da sua significação social e, em seguida, do ponto de vista da situação da social-democracia (da sua «diluição» ou das suas «mãos atadas») num e noutro caso.

Que é a «vitória decisiva da revolução sobre o tsarismo»? Vimos já que, ao empregar esta expressão, os neo-iskristas não a compreendem nem mesmo no seu sentido político imediato. Parecem compreender menos ainda o conteúdo de classe deste conceito. Porque nós, marxistas, não devemos, em caso algum, deixar-nos seduzir pelas palavras «revolução» ou «grande revolução russa» como agora se deixam seduzir por elas muitos democratas revolucionários (do estilo de Gapone). Devemos conhecer de maneira exacta quais as forças sociais reais que se opõem ao «tsarismo» (este é uma força perfeitamente real e perfeitamente compreensível para todos) e que são capazes de obter a «vitória decisiva» sobre o mesmo. Esta força não pode ser a grande burguesia, os latifundiários, os fabricantes, a «sociedade» que segue os osvobojdenistas. Vemos que eles nem sequer desejam uma vitória decisiva. Sabemos que são incapazes, pela sua situação de classe, de uma luta decisiva contra o tsarismo: para irem à luta decisiva, a propriedade privada, o capital e a terra são um lastro demasiadamente pesado. Têm demasiada necessidade do tsarismo, com as suas forças policiais-burocráticas e militares, contra o proletariado e o campesinato, para poderem aspirar à destruição do tsarismo. Não, a única força capaz de obter a «vitória decisiva sobre o tsarismo» só pode ser o povo, isto é, o proletariado e o campesinato, se se tomar as grandes forças fundamentais e se se distribuir a pequena burguesia rural e urbana (também «povo») entre um e outro. «A vitória decisiva da revolução sobre o tsarismo» é a ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato. Os nossos neo-iskristas não poderão fugir a esta conclusão indicada desde há muito tempo pelo Vperiod. Não há mais ninguém que possa obter a vitória decisiva sobre o tsarismo.

E esta vitória será precisamente uma ditadura, isto é, deverá apoiar-se inevitavelmente na força das armas, nas massas armadas, na insurreição e não em tais ou tais instituições criadas «pela via legal», «pacífica». Só pode ser uma ditadura porque a realização das transformações imediata e absolutamente necessárias para o proletariado e o campesinato provocará uma resistência desesperada tanto por parte dos latifundiários como da grande burguesia e do tsarismo. Sem ditadura será impossível esmagar esta resistência, rechaçar as tentativas contra-revolucionárias. Mas não será, naturalmente, uma ditadura socialista, mas uma ditadura democrática. Esta ditadura não poderá tocar (sem toda uma série de graus intermédios de desenvolvimento revolucionário) os fundamentos do capitalismo. Poderá, no melhor dos casos, efectuar uma redistribuição radical da propriedade da terra a favor dos camponeses, implantar uma democracia consequente e completa indo até à república, extirpar não só da vida do campo mas também da fábrica todos os traços asiáticos, servis, iniciar uma melhoria séria na situação dos operários, elevar o seu nível de vida e, finalmente, last but not least(13*) levar o incêndio revolucionário à Europa. Semelhante vitória não converterá ainda, de forma alguma, a nossa revolução burguesa em socialista; a revolução democrática não ultrapassará directamente os limites das relações económico-sociais burguesas; mas, apesar disso, terá importância gigantesca para o desenvolvimento futuro da Rússia e do mundo inteiro. Nada elevará tanto a energia revolucionária do proletariado mundial, nada encurtará tão consideravelmente o caminho que conduz à sua vitória total como esta vitória decisiva da revolução iniciada na Rússia.

Até que ponto é provável esta vitória, isso já é outra questão. Não somos de modo algum propensos ao optimismo insensato a este respeito, não esquecemos de forma alguma as enormes dificuldades desta tarefa, mas, quando nos lançamos à luta, devemos desejar a vitória e saber indicar o verdadeiro caminho que a ela conduz. As tendências capazes de conduzir a esta vitória existem indiscutivelmente. É verdade que a nossa influência, a dos sociais-democratas, sobre a massa do proletariado é ainda muito e muito insuficiente; a influência revolucionária sobre a massa camponesa é completamente insignificante; a dispersão, o atraso, a ignorância do proletariado e, sobretudo, do campesinato, são ainda terrivelmente grandes. Mas a revolução une rapidamente e educa rapidamente. Cada passo do seu desenvolvimento desperta as massas e atrai-as com força irresistível precisamente para o programa revolucionário, como o único que exprime, de modo consequente e completo, os seus verdadeiros interesses, os seus interesses vitais.

Uma lei da mecânica estabelece que a acção é equivalente à reacção. Na história, a força destruidora da revolução depende também, e não pouco, da força e da duração do esmagamento das aspirações de liberdade, da profundidade das contradições entre a «superstrutura» antediluviana e as forças vivas da época actual. E a situação política internacional vai-se desenhando, em muitos aspectos, do modo mais vantajoso para a revolução russa. A insurreição dos operários e camponeses já começou, encontra-se dispersa, é espontânea, débil, mas demonstra, de modo indiscutível e absoluto, a existência de forças capazes de se empenharem na luta decisiva e que marcham para uma vitória decisiva.

Se estas forças forem insuficientes, o tsarismo poderá então estabelecer um arranjo, que já está a ser preparado dos dois lados pelos Srs. Bulíguine e pelos Srs. Struve. Então as coisas terminarão com uma constituição mutilada ou mesmo — no pior dos casos — uma paródia da mesma. Isto será também uma «revolução burguesa», mas será um aborto, um nado-morto, um bastardo. A social-democracia não alimenta ilusões, conhece a natureza traiçoeira da burguesia, não se desalentará e não abandonará o seu trabalho tenaz, paciente e firme para a educação de classe do proletariado, mesmo nos dias mais sombrios da prosperidade burguesa-constitucional «chipovista». Este desenlace seria mais ou menos parecido com o de quase todas as revoluções democráticas da Europa no decurso do século XIX, e em tal caso o desenvolvimento do nosso partido seguiria uma senda difícil, penosa, longa, mas conhecida e batida.

Pergunta-se agora: em qual destes dois desenlaces possíveis a social-democracia se encontraria de facto com as mãos atadas em face da burguesia inconsequente e egoísta? se encontraria de facto «diluída» ou quase diluída na democracia burguesa?

Basta formular de modo claro esta pergunta para lhe responder imediatamente sem dificuldade.

Se a burguesia conseguir fazer fracassar a revolução russa por meio de um arranjo com o tsarismo, então a social-democracia ver-se-á de facto precisamente de mãos atadas em face da burguesia inconsequente, então a social-democracia ver-se-á «diluída» na democracia burguesa no sentido de que o proletariado não conseguirá imprimir a sua marca clara à revolução, não conseguirá ajustar contas com o tsarismo à maneira proletária ou, como dizia Marx no seu tempo, «à maneira plebeia».

Se se conseguir a vitória decisiva da revolução, então ajustaremos contas com o tsarismo à maneira jacobina ou, se quiserdes, plebeia. «Todo o terrorismo francês — escrevia Marx em 1848 na famosa Nova Gazeta Renana — não foi senão um método plebeu para ajustar contas com os inimigos da burguesia: com o absolutismo, o feudalismo e o filisteísmo». (Ver Marx, Nachlass, editado por Mehring, tomo 3, p. 211[N244].) Terão pensado alguma vez na significação dessas palavras de Marx os que intimidam os operários sociais-democratas russos com o espantalho do «jacobinismo» na época da revolução democrática?

Os girondinos da social-democracia russa actual, os neo-iskristas, não se fundem com os osvobojdenistas, mas, de facto, em consequência do carácter das suas palavras de ordem, marcham na cauda dos mesmos. E os osvobojdenistas, isto é, os representantes da burguesia liberal, pretendem ajustar contas com a autocracia suavemente, à maneira reformista, fazendo concessões, sem ofender a aristocracia, a nobreza, a corte — cautelosamente, sem partir nada, amável e cortesmente, de maneira senhoril, usando luvas brancas (como as que usou, tiradas das mãos de um bachibuzuk, o senhor Petrunkévitch, na recepção dos «representantes do povo» (?) por Nicolau, o Sanguinário[N245]. (Ver Proletári, n.° 5(14*).)

Os jacobinos da social-democracia moderna — os bolcheviques, os vperiodistas, congressistas ou proletaristas[N246] — não sei já como dizer — querem elevar, com as suas palavras de ordem, a pequena burguesia revolucionária e republicana e sobretudo o campesinato até ao nível do espírito democrático consequente do proletariado, que conserva completamente a sua individualidade de classe. Querem que o povo, isto é, o proletariado e o campesinato, ajuste contas com a monarquia e com a aristocracia «à maneira plebeia», aniquilando implacavelmente os inimigos da liberdade, esmagando pela força a sua resistência, sem fazer nenhuma concessão à herança maldita do regime de servidão, do asiatismo, da degradação do homem.

Isto não significa de modo algum que pretendamos imitar obrigatoriamente os jacobinos de 1793, adoptar as suas concepções, o seu programa, as suas palavras de ordem, os seus métodos de acção. Nada disso. Não temos um programa velho, mas novo: o programa mínimo do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. Temos uma palavra de ordem nova: a ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato. Teremos também, se vivermos até à vitória autêntica da revolução, novos métodos de acção, que corresponderão ao carácter e aos fins do partido da classe operária, que aspira à revolução socialista completa. Com esta comparação queremos unicamente esclarecer que os representantes da classe avançada do século XX, do proletariado, isto é, os sociais-democratas, se dividem também nas duas alas (oportunista e revolucionária) em que se dividiam os representantes da classe avançada do século XVIII, a burguesia, isto é, os girondinos e os jacobinos.

Só no caso de vitória completa da revolução democrática o proletariado não se encontrará de mãos atadas na luta contra a burguesia inconsequente, só neste caso não se «diluirá» na democracia burguesa, mas imprimirá a toda a revolução a sua marca proletária ou, mais exactamente, proletário-camponesa.

Numa palavra: para que não se encontre de mãos atadas na luta contra a democracia burguesa inconsequente, o proletariado deve ter suficiente consciência de classe e força para elevar o campesinato até à consciência revolucionária, para dirigir a arremetida deste, para realizar assim, de maneira independente, a democracia proletária consequente.

É assim que se coloca a questão, tão infelizmente resolvida pelos neo-iskristas, do perigo de se encontrar de mãos atadas na luta contra a burguesia inconsequente. A burguesia será sempre inconsequente. Não há nada mais ingénuo e estéril do que as tentativas de traçar as condições ou pontos(15*) com cuja realização se poderia considerar a democracia burguesa como um amigo não hipócrita do povo. Somente o proletariado pode ser um lutador consequente pela democracia. Mas só pode lutar vitoriosamente pela democracia na condição de que a massa do campesinato se una à sua luta revolucionária. Se o proletariado não tiver forças para isso, a burguesia colocar-se-á à frente da revolução democrática e imprimir-lhe-á um carácter inconsequente e egoísta. Não há meio de o impedir senão a ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato.

Assim, pois, chegamos à conclusão indiscutível de que é precisamente a táctica neo-iskrista que, pela sua significação objectiva, faz o jogo da democracia burguesa. O defender a imprecisão orgânica indo até aos plebiscitos, até ao princípio de acordos, até ao afastamento da literatura partidária do partido, o rebaixar as tarefas da insurreição armada, o confundir as palavras de ordem políticas para todo o povo do proletariado revolucionário com as da burguesia monárquica, o adulterar as condições da «vitória decisiva da revolução sobre o tsarismo» — tudo isto, tomado em conjunto, dá como resultado precisamente a política do seguidismo nos momentos revolucionários, que desorienta o proletariado, o desorganiza e leva a confusão à sua consciência, rebaixa a táctica da social-democracia, em vez de indicar o único caminho da vitória e agrupar em torno da palavra de ordem do proletariado todos os elementos revolucionários e republicanos do povo.

Para confirmar esta conclusão, a que chegámos mediante uma análise da resolução, abordemos esta mesma questão de outros ângulos. Vejamos, em primeiro lugar, de que maneira um menchevique ingénuo e sincero ilustra a táctica neo-iskrista no jornal georgiano Sotsial-Demokrat. Em segundo lugar, vejamos quem recorre, de facto, na actual situação política, às palavras de ordem do novo Iskra.


Notas de Rodapé:

(9*) Sub specie aeternitatis: do ponto de vista da eternidade. Plusquamperfectum: mais que perfeito. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(10*) Os «socialistas-revolucionários» são mais um grupo terrorista de intelectuais do que o embrião desse partido, apesar de a significação objectiva da actividade do referido grupo consistir, precisamente, na realização das tarefas da burguesia revolucionária e republicana. (retornar ao texto)

(11*) Não falamos das palavras de ordem especiais para o campesinato, às quais são dedicadas
resoluções particulares. (retornar ao texto)

(12*) Ver Osvobojdénie n.º 71, p. 337, nota 2. (retornar ao texto)

(13*) O último mas não o menos importante. (retornar ao texto)

(14*) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 10, pp. 298-303. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(15*) Como tentou fazê-lo Starover na sua resolução[N247], anulada pelo III congresso, e como tenta a conferência numa resolução não menos infeliz. (retornar ao texto)

Notas de Fim de Tomo:

[N206] Osvobojdénie (Libertação): revista quinzenal, que se publicou no estrangeiro de 18 de Junho (1 de Julho) de 1902 a 5 (18) de Outubro de 1905 sob a direcção de P. B. Struve. A revista era um órgão da burguesia monárquico-liberal russa. Em 1903, em volta da revista formou-se (e em Janeiro de 1904 formalizou-se) a «União de Libertação», que existiu até Outubro de 1905. Os «osvobojdenistas» constituíram mais tarde o núcleo do Partido Democrata-Constitucionalista, que se formou em Outubro de 1905. (retornar ao texto)

[N240] Trata-se da obra de K. Marx Teses sobre Feuerbach (retornar ao texto)

[N241] União de Libertação (Soiuz Osvobojdénie): ver nota 206. (retornar ao texto)

[N242] Sin Otétchestva (Filho da Pátria): diário de orientação liberal que se editou em Petersburgo de 1856 a 1900 e a partir de 18 de Novembro (1 de Dezembro) de 1904. Os seus colaboradores eram adeptos da Osvobojdénie e populistas de diversos matizes. A partir de 15 (28) de Novembro de 1905, foi o órgão do partido socialista-revolucionário. A 2 (15) de Dezembro de 1905, foi suspenso.

Nacha Jizn (Nossa Vida): diário de orientação liberal; publicou-se em Petersburgo, com interrupções, de 6 (19) de Novembro de 1904 a 11 (24) de Julho de 1906.

Nachi Dni (Nossos Dias), diário de orientação liberal. Foi editado em Petersburgo de 18 (31) de Dezembro de 1904 a 5 (18) de Fevereiro de 1905. Em 7(20) de Dezembro de 1905 a edição do jornal foi reiniciada, mas saíram apenas dois números. (retornar ao texto)

[N243] O Homem Enconchado: personagem do conto homónimo de A. P. Tchékhov. É o tipo do pequeno burguês medíocre, que receia tudo o que é novo, que receia a iniciativa. (retornar ao texto)

[N244] V. I. Lénine refere-se ao livro Aus dem literarischen Nachlass von Karl Marx, Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle, Herausgegeben von Franz Mehring, Band III, Stuttgart, 1902, S. 211. (Da herança literária de Karl Marx, Friedrich Engels e Ferdinand Lassalle,sob a redacção de Franz Mehring, t. III, Stuttgart, 1902, p. 211.) (retornar ao texto)

[N245] Alusão à recepção duma delegação dos zemstvos por Nicolau II a 6 (19) de Junho de 1905. A delegação entregou ao tsar uma petição para a convocação dos representantes do povo para estabelecer, de acordo com o tsar, «um regime estatal renovado». A petição não continha nem a reivindicação do sufrágio universal, directo igual e secreto, nem de garantias da liberdade das eleições. (retornar ao texto)

[N246] Vperiodistas, congressistas ou proletaristas: denominações diferentes dos bolcheviques, dadas com base no III Congresso do partido por eles convocado e segundo os títulos dos jornais por eles editados: o Vperiod e o Proletári. (retornar ao texto)

[N247] Trata-se da resolução de A. N. Potréssov (Starover) sobre a atitude para com os liberais aprovada no II Congresso do POSDR. (retornar ao texto)

 

Inclusão 03/01/2007
Última alteração 30/04/2014