Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás

Vladimir Ilitch Lénine


j) Vítimas Inocentes de uma Falsa Acusação de Oportunismo


Antes de passar à subsequente discussão sobre os estatutos é necessário, para explicar a nossa divergência na questão da composição pessoal dos órgãos centrais, tratar de passagem das reuniões privadas da organização do Iskra, que se realizaram durante o congresso. A última e a mais importante dessas quatro reuniões decorreu justamente depois da votação do § um dos estatutos, pelo que a cisão da organização do Iskra, que se verificou nessa reunião, foi cronológica e logicamente uma condição prévia da luta que se desenrolou a seguir.

As reuniões privadas da organização do Iskra(1) começaram pouco depois do incidente do CO, que forneceu um pretexto para o exame da questão das eventuais candidaturas ao CC. Subentende-se que, dado que se suprimiram os mandatos imperativos, tais reuniões tiveram um carácter meramente consultivo, que a ninguém obrigava, mas cuja importância foi no entanto enorme. A eleição do CC apresentava grandes dificuldades para os delegados, que não conheciam nem os nomes clandestinos nem o trabalho interno da organização do Iskra, organização que criou a unidade de facto do partido e exerceu a direcção do movimento prático, o que constituiu um dos motivos do reconhecimento oficial do Iskra. Dissemos já que os iskristas mantendo a sua unidade tinham plenamente assegurada no congresso uma grande maioria, cerca de 3/5, e todos os delegados o compreendiam na perfeição. Todos os iskristas esperavam precisamente que a organização do Iskra interviesse recomendando uma determinada composição pessoal do CC, e nenhum dos membros desta organização disse uma só palavra contra o exame prévio, no seu seio, da composição do CC, ninguém disse uma só palavra sobre a aprovação de toda a composição do CO, ou seja, da sua transformação em CC, nem uma palavra mesmo da realização de uma reunião, com todos os membros do CO, para tratar dos candidatos ao CC. Também esta circunstância é extraordinariamente característica, e importa sobremaneira tê-la em conta, porque agora os partidários de Mártov defendem zelosamente, com data atrasada, o CO, demonstrando assim pela centésima ou milésima vez a sua falta de carácter em política(2). Enquanto a cisão pela composição dos centros não unira Mártov com os Akímov, toda a gente se dava conta no congresso de uma coisa de que qualquer pessoa imparcial poderá facilmente convencer-se pelas suas actas e por toda a história do Iskra, a saber: que o CO era principalmente uma comissão formada para convocar o congresso, e composta intencionalmente por representantes de diferentes matizes, incluindo o Bund; quanto ao verdadeiro trabalho para criar a unidade orgânica do partido, era a organização do Iskra que o tinha suportado inteiramente sobre os seus ombros (é preciso ter também em conta que alguns membros iskristas do CO estiveram ausentes do congresso absolutamente por acaso, quer em consequência de prisões, quer por outras circunstâncias «alheias à sua vontade»). A composição da organização do Iskra presente no congresso já tinha sido dada na brochura do camarada Pavlóvitch (ver a sua Carta sobre o II Congresso, p. 13 )(3).

O resultado definitivo dos acalorados debates na organização do Iskra foram duas votações de que já falei na Carta à Redacção. Primeira votação: «uma das candidaturas apoiadas por Mártov é rejeitada por nove votos contra quatro e três abstenções». Parece que nada pode haver de mais simples nem mais natural do que este facto: com o assentimento geral do total dos dezasseis membros da organização do Iskra presentes no congresso, é debatida a questão das possíveis candidaturas, e é rejeitada por maioria de votos uma das propostas pelo camarada Mártov (precisamente o do camarada Stein, coisa que atirou agora para a frente, não podendo resistir mais, o próprio camarada Mártov, p. 69 do Estado de Sítio). Porque nos tínhamos reunido em congresso do partido justamente para discutir e resolver, entre outras, a questão de saber a quem entregar «a batuta» do maestro, e o nosso dever geral de partido era dedicar a este ponto da ordem do dia a mais séria atenção, resolver esta questão do ponto de vista dos interesses da causa, e não do «sentimentalismo filistino», como justamente disse mais tarde o camarada Rússov. Claro que aquando da discussão no congresso da questão dos candidatos era impossível deixar de falar de certas qualidades pessoais, deixar de exprimir aprovação ou desaprovação(4), sobretudo numa reunião não oficial e restrita. E eu já fiz no congresso da Liga a advertência de que era absurdo considerar a desaprovação duma candidatura uma coisa «difamante» (p. 49 das actas da Liga); que era absurdo fazer uma «cena» e ficar histérico em virtude daquilo que constitui o cumprimento do estrito dever de partido no que se refere a eleger de modo consciente e cuidadoso pessoas para os cargos. Ora, para a nossa minoria, foi a partir daqui que começou a dança: puseram-se a gritar, depois do congresso, que se «destruía uma reputação» (p. 70 das actas da Liga), e a assegurar em letra de forma ao grande público que o camarada Stein era a «principal figura» do antigo CO, e que o tinham acusado sem fundamento de «não se sabe que planos infernais» (p. 69 do Estado de Sítio). Não será histerismo gritar, por uma aprovação ou desaprovação de candidaturas, que se «destrói uma reputação»? Não será uma querela mesquinha, quando, tendo sofrido uma derrota tanto na reunião privada da organização do Iskra como na reunião oficial da instância suprema do partido, no congresso, as pessoas se lamentam em frente de toda a gente e recomendam ao respeitável público os candidatos rejeitados como «principais figuras»? quando em seguida as pessoas tentam impor ao partido os seus candidatos através da cisão e exigindo a cooptação? Entre nós, na atmosfera bafienta do estrangeiro, as noções políticas tornaram-se de tal modo confusas que o camarada Mártov já não sabe distinguir entre o dever de partido e o espírito de círculo e o compadrio! Pelos vistos é burocratismo e formalismo pensar que se deve discutir e resolver a questão das candidaturas unicamente nos congressos, em que os delegados se reúnem para tratar, antes de tudo, de importantes questões de princípios, onde se encontram os representantes do movimento capazes de encarar imparcialmente a questão das pessoas, e que são capazes (e devem) exigir e recolher todas as informações sobre os candidatos antes de uma votação decisiva; onde é natural e necessário que se dedique certo tempo às discussões sobre a batuta do maestro. Em vez deste ponto de vista burocrático e formalista, foram introduzidos agora entre nós outros costumes: depois dos congressos, falaremos a torto e a direito do enterro político de Ivan Ivánovitch, da destruição da reputação de Ivan Nikíforovitch(5). Haverá escritores que recomendarão os candidatos em brochuras, afirmando farisaicamente, batendo no peito: não é um círculo, é o partido... O público leitor que aprecia escândalos irá saborear avidamente esta novidade sensacional: fulano foi a principal figura do CO, segundo garante o próprio Mártov(6). Este público leitor é muito mais capaz de discutir e resolver a questão do que instituições formalistas no género dos congressos, com as suas decisões grosseiramente mecânicas, tomadas por maioria... Sim, os nossos verdadeiros militantes do partido ainda terão de limpar os grande estábulos de Augias de querelas mesquinhas no estrangeiro!


Segunda votação da organização do Iskra: «É adoptada por dez votos contra dois com quatro abstenções uma lista de cinco (para o CC) em que figuram, por proposta minha, um líder dos elementos não iskristas e um líder da minoria iskrista.»(7) Esta votação é extraordinariamente importante, pois mostra clara e irrefutavelmente toda a falsidade das invenções surgidas depois, numa atmosfera de querelas mesquinhas, pretendendo que queríamos expulsar do partido ou afastar os não-iskristas, que o que a maioria fez foi escolher candidatos apenas de uma metade do congresso e elegê-los por essa metade, etc. Tudo isto é completamente falso. A votação de que acabo de falar prova que não afastámos os não-iskristas não só do partido, como nem sequer do CC, e que demos aos nossos opositores uma minoria muito considerável. A verdade é que queriam ter a maioria, e quando este modesto desejo se não realizou, desencadearam um escândalo e renunciaram completamente a fazer parte dos centros. Que foi exactamente isto o que aconteceu, a despeito das afirmações do camarada Mártov na Liga, é o que ressalta da carta seguinte, que nos foi endereçada, a nós, maioria iskrista (e maioria do congresso depois da saída dos sete), pela minoria da organização do Iskra, pouco depois da adopção do §1 dos estatutos no congresso (de notar que a reunião da organização do Iskra de que falei foi a última: depois dela, a organização dissolveu-se de facto, e cada uma das partes procurou convencer os outros delegados no congresso de que tinha razão).

Eis o texto da carta:

«Depois de ter ouvido as explicações dos delegados Sorókine e Sáblina sobre o desejo da maioria da redacção e do grupo “Emancipação do Trabalho” de participar na reunião (em tal data)(8), e depois de ter estabelecido com a ajuda desses delegados que durante a sessão anterior se tinha lido uma lista de candidatos ao CC, lista que pretensamente partia de nós, e que foi utilizada para caracterizar falsamente toda a nossa posição política; considerando que, em primeiro lugar, esta lista nos foi atribuída sem que se tenha feito qualquer tentativa para verificar a sua origem; que, em segundo lugar, esta circunstância está indubitavelmente ligada à acusação de oportunismo abertamente difundida contra a maioria da redacção do Iskra e do grupo “Emancipação do Trabalho”; e que, em terceiro lugar, a ligação desta acusação com um plano perfeitamente determinado para modificar a composição da redacção do “Iskra” nos surge agora com toda a clareza, consideramos insatisfatórias as razões invocadas para não nos admitirem na reunião, e o não terem querido deixar-nos assistir a ela mostra que não querem dar-nos a possibilidade de refutar as falsas acusações acima mencionadas.

« No que se refere a um possível acordo entre nós sobre uma lista comum de candidatos para o CC, declaramos que a única lista que podemos aceitar como base de acordo é esta: Popov, Trótski, Glébov, sublinhando que esta lista tem um carácter de compromisso, porque a inclusão nela do camarada Glébov não significa senão uma concessão aos desejos da maioria, já que, depois de termos esclarecido o papel desempenhado pelo camarada Glébov no congresso, não consideramos que o camarada Glébov corresponda àquilo que se deve exigir de um candidato ao CC.

«Sublinhamos ao mesmo tempo que ao iniciar negociações sobre as candidaturas ao CC fazemo-lo sem que isso tenha alguma relação com a questão da composição da redacção do OC, porque não estamos dispostos a iniciar quaisquer negociações sobre esta questão (composição da redacção).

Pelos camaradas, Mártov e Starover»

Esta carta, que reproduz fielmente as disposições de espírito das partes em disputa assim como o estado da discussão, introduz-nos imediatamente «no coração» da cisão que se iniciava e mostra as suas verdadeiras causas. A minoria da organização do Iskra, recusando o acordo com a maioria e preferindo a livre agitação no congresso (tendo evidentemente pleno direito a isso) tenta todavia obter dos «delegados» da maioria que a admitam numa sua reunião privada! Claro que esta divertida exigência apenas provocou na nossa reunião (é claro, a carta foi lida aí) sorrisos e encolher de ombros; quanto aos gritos próximos da histeria por causa das «falsas acusações de oportunismo», provocaram o riso aberto. Mas analisemos primeiro, ponto por ponto, as amargas queixas de Mártov e de Starover.

Atribui-se-lhes falsamente a lista; caracteriza-se falsamente a sua posição política. No entanto, segundo reconhece o próprio Mártov (p. 64 das actas da Liga), não me passou pela cabeça pôr em dúvida a sua afirmação de que não é o autor da lista. Em geral, a questão de saber quem é o autor dela não tem nada que ver com o caso, e que a lista tenha sido elaborada por um iskrista ou por um representante do «centro», etc., isso não tem qualquer importância. O importante é que esta lista, inteiramente composta por elementos da actual minoria, circulou no congresso, ainda que como simples conjectura ou hipótese. Por fim, o mais importante é que o camarada Mártov viu-se obrigado no congresso a renegar com todas as suas forças uma lista que agora teria de aceitar com entusiasmo. Não seria possível fazer ressaltar mais fortemente a instabilidade na apreciação dos homens e dos matizes do que neste salto efectuado em cerca de dois meses, dos gritos sobre os «boatos difamantes» à vontade de impor ao partido para o centro esses mesmos candidatos da lista que se dizia difamante!(9)

Esta lista, dizia o camarada Mártov no congresso da Liga, «significava, do ponto de vista político, uma coligação entre nós e o Iújni Rabótchi, por um lado, e o Bund, por outro, coligação no sentido de um acordo directo» (p. 64). Isto é falso, porque, primeiro, o Bund não teria aceitado nunca um «acordo» sobre uma lista em que não figurava um único bundista; e segundo, não se tratava, nem podia tratar-se, de qualquer acordo directo (que parecia difamante a Mártov) não só com o Bund, mas até com o grupo Iújni Rabótchi. Justamente, tratava-se não de um acordo, mas de uma coligação; não do facto de o camarada Mártov fazer uma combinação, mas do facto de ele ter que ser inevitavelmente apoiado por esses mesmos elementos anti-iskristas e hesitantes, contra os quais tinha lutado durante a primeira metade do congresso e que se tinham agarrado ao seu erro sobre o §1 dos estatutos. A carta que citei mostra, da forma mais incontestável, que a raiz da «ofensa» reside justamente na acusação de oportunismo aberta e ainda por cima falsa. Estas «acusações», pelas quais começou toda a dança, e que o camarada Mártov tão cuidadosamente agora procura eludir, a despeito de eu as ter recordado na Carta à Redacção, eram de duas espécies: primeiro, durante os debates sobre o §1 dos estatutos, Plekhánov disse claramente que a questão do §1 visava «separar» de nós «toda a espécie de representantes do oportunismo», e que a favor do meu projecto, como garantia contra a invasão do partido por estes, «deviam votar, nem que fosse apenas por este facto, todos os inimigos do oportunismo» (p. 246 das actas do congresso). Estas palavras enérgicas, apesar de eu as ter suavizado um pouco (p. 250)(10), fizeram sensação, o que se expressou nitidamente nos discursos dos camaradas Rússov (p. 247), Trótski (p. 248) e Akímov (p. 253). Nos «corredores» do nosso «parlamento», a tese de Plekhánov foi vivamente comentada e apresentada de mil maneiras em controvérsias intermináveis relativas ao §1. E eis que, em vez de se defenderem quanto ao fundo, os nossos queridos camaradas pretenderam-se ridiculamente ofendidos e chegaram a queixar-se por escrito de uma «falsa acusação de oportunismo»!

Uma psicologia própria de círculos e uma assombrosa falta de maturidade de partido, que não pode suportar a aragem fresca de um debate público diante de todos, evidenciam-se aqui com toda a clareza. É essa psicologia tão conhecida do homem russo, que se exprime por um velho adágio: ou um soco ou um beijo na mão! As pessoas estão de tal modo habituadas à redoma de um estreito e amistoso compadrio, que desmaiam à primeira intervenção, sob sua própria responsabilidade, numa arena livre e aberta. Acusar de oportunismo, mas então quem? O grupo «Emancipação do Trabalho» e ainda por cima a sua maioria - imaginem este horror! Ou a cisão do partido por causa desta ofensa inapagável, ou abafar este «aborrecimento de família» restabelecendo «a continuidade» da redoma - este dilema transparece já com traços bastante determinados na carta que estamos a analisar. A psicologia do individualismo intelectual e do espírito de círculo chocou com a exigência de uma intervenção aberta perante o partido. Imaginem se é possível um absurdo semelhante, uma querela como a queixa contra uma «falsa acusação de oportunismo», no partido alemão! A organização e a disciplina proletárias há muito tempo que aí fizeram esquecer esta falta de firmeza própria de intelectuais. Ninguém sente senão profundo respeito por Liebknecht, por exemplo; mas como teriam rido aí da queixa de que o tinham «acusado abertamente de oportunismo» (juntamente com Bebel) no congresso de 1895(11), quando a propósito da questão agrária se encontrou na má companhia do conhecido oportunista Vollmar e dos seus amigos. O nome de Liebknecht está indissoluvelmente ligado à história do movimento operário alemão, não, claro, porque Liebknecht se tenha desviado para o oportunismo numa questão relativamente secundária e particular, mas apesar disso. Do mesmo modo, apesar de todas as irritações da luta, o nome do camarada Axelrod, por exemplo, inspira e inspirará sempre respeito a todo o social-democrata russo, mas não porque o camarada Axelrod tenha defendido uma ideiazinha oportunista no segundo congresso do nosso partido, nem porque tenha exumado o velho lixo anarquista no segundo congresso da Liga, mas apesar disso. Só o espírito de círculo mais endurecido, com a sua lógica - ou um soco, ou um beijo na mão -, pôde desencadear este histerismo, estas querelas mesquinhas e uma cisão do partido por causa de uma «falsa acusação de oportunismo contra a maioria do grupo “Emancipação do Trabalho”».

O outro elemento desta terrível acusação está estreitamente ligado ao anterior [o camarada Mártov esforçou-se em vão, no congresso da Liga (p. 63), por contornar e dissimular um dos aspectos deste incidente]. Este argumento está relacionado com a coligação dos elementos anti-iskristas e hesitantes com o camarada Mártov, coligação que se esboçou a propósito da questão do § l dos estatutos. Não é preciso dizer que não se tratava, e nem podia tratar-se, de nenhum acordo directo ou indirecto entre o camarada Mártov e os anti-iskristas, e ninguém o suspeitava disso: apenas o medo o fez crer isto. Mas o seu erro revelou-se politicamente no facto de que as pessoas que indubitavelmente tendiam para o oportunismo começaram a constituir à sua volta uma maioria cada vez mais sólida e «compacta» (que agora se tornou minoria devido apenas à saída «acidental» de sete delegados). Chamámos a atenção para esta «coligação», claro está, também abertamente, logo após os debates sobre o §1, tanto no congresso (ver a observação acima transcrita do camarada Pavlóvitch, p. 255 das actas do congresso) como na organização do Iskra (foi sobretudo Plekhánov que assinalou isso, se não me engano). Literalmente, é a mesma indicação e a mesma troça que visavam Bebel e Liebknecht em 1895, quando Zetkin lhes disse: «Es tut mir in der Seele weh, daß ich dich in der Gesellschaft seh» (Lamento ver-te — a Bebel — nessa companhia, ou seja, com Vollmar e )(12). É verdadeiramente estranho que Bebel e Liebknecht não tenham então enviado a Kautsky e a Zetkin uma mensagem histérica sobre uma falsa acusação de oportunismo...

Quanto à lista dos candidatos ao CC, esta carta mostra o erro do camarada Mártov, que afirmou na Liga que a recusa de chegar a um acordo connosco não era ainda definitiva; isso prova, uma vez mais, como é pouco razoável na luta política querer reproduzir de memória conversas, em vez de consultar documentos. Na realidade, a «minoria» foi modesta a ponto de apresentar à «maioria» um ultimato: designar dois representantes da «minoria» e um da «maioria» (a título de compromisso e unicamente, na verdade, como concessão!). É monstruoso, mas é um facto. E este facto mostra claramente até que ponto é uma invenção tudo o que agora se diz de que o que a maioria fez foi escolher candidatos apenas de uma metade do congresso e elegê-los por essa metade. É justamente o contrário: os partidários de Mártov propunham-nos, apenas a título de concessão, um dos três, desejando, por conseguinte, no caso de não aceitarmos esta original «concessão», introduzir todos os seus! Na nossa reunião privada, rimo-nos da modéstia dos martovistas e elaborámos a nossa lista: Glébov - Travínski (mais tarde eleito para o CC) – Popov. Substituímos este último (também numa reunião privada dos 24) pelo camarada Vassíliev (eleito depois para o CC), unicamente porque o camarada Popov se recusou a figurar na nossa lista; recusou-se primeiro numa conversa privada, e depois abertamente no congresso (p. 338).

Foi isto que se passou.

A modesta «minoria» desejava modestamente estar em maioria. Quando este modesto desejo não foi satisfeito, a «minoria» preferiu renunciar completamente e desencadear um escandalozinho. E há agora pessoas que falam com uma majestosa condescendência da «intransigência» da «maioria»!

A «minoria» apresentou divertidos ultimatos à «maioria» fazendo uma campanha pela livre agitação no congresso. Depois de ter sofrido uma derrota, os nossos heróis desataram a chorar e a gritar sobre o estado de sítio. Voilà tout(13).

A terrível acusação segundo a qual nos propúnhamos modificar a composição da redacção, nós (reunião privada dos 24) acolhemo-la igualmente com um sorriso: toda a gente conhecia bem, desde o próprio início do congresso, e mesmo antes dele, que existia um plano de renovar a redacção pela eleição de um grupo de três inicial (falarei disto com mais pormenor quando tratar da eleição da redacção no congresso). Que a «minoria» se tenha assustado com este plano, depois de ter verificado que a coligação da «minoria» com os anti-iskristas era uma excelente confirmação da justeza desse plano - isso não nos espantou, era perfeitamente natural. Não podíamos, é claro, tomar a sério a proposta de nos transformarmos de livre vontade em minoria, antes da luta no congresso; nem podíamos tomar a sério toda a carta, cujos autores tinham atingido um grau de irritação inacreditável, a ponto de falarem de «falsas acusações de oportunismo». Tínhamos firme confiança de que o seu sentido do dever de partido bem depressa triunfaria do desejo natural de «descarregar a raiva».


Notas de rodapé:

(1) Já no congresso da Liga eu procurei expor, com a maior brevidade possível, o que sucedeu nas reuniões privadas, para evitar discussões sem solução. Os factos fundamentais ficam também expostos na minha Carta à Redacção do «Iskra» (p. 4). O camarada Mártov não protestou contra eles na sua Resposta. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(2) Tentai imaginar este «quadro de costumes»: um delegado da organização do Iskra no congresso reúne-se sozinho com ela e não diz uma única palavra a propósito da reunião com o CO. Mas depois da sua derrota tanto nesta organização, como no congresso, põe-se a lamentar que não tenha sido confirmado o CO, a contar-lhe loas com data atrasada e a ignorar altivamente a organização que lhe tinha outorgado o mandato! Podemos garantir que não há facto análogo na história de nenhum partido verdadeiramente social-democrata e verdadeiramente operário. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(3) Os membros da organização do Iskra no II Congresso do POSDR eram 16, dos quais 9 eram partidários da maioria, com Lénine à frente. (retornar ao texto)

(4) O camarada Mártov queixou-se amargamente na Liga da dureza da minha desaprovação, sem notar que das suas queixas se extraía um argumento contra si próprio. Lénine comportou-se - para nos servirmos da sua expressão - freneticamente (p. 63 das actas da Liga). Exacto. Bateu com a porta. É verdade. Com a sua conduta indignou (na segunda ou terceira reunião da organização do Iskra) os membros que ficaram na reunião. Correcto. - Mas que se conclui daí? Unicamente que os meus argumentos sobre o fundo das questões em disputa eram convincentes e foram confirmados pelo desenrolar do congresso. Porque o certo é que se nove dos dezasseis membros da organização do Iskra, no fim de contas, se aliaram a mim, é claro que isso aconteceu apesar destas asperezas malignas, a despeito delas. Portanto, se não tivesse havido «asperezas», talvez mais de nove membros tivessem estado do meu lado. Portanto, tanto mais convincentes eram os argumentos e os factos se tão grande foi a «indignação» que tiveram de contrabalançar. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(5) Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch: personagens da obra de N. V. Gógol História de como brigaram Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch. (retornar ao texto)

(6) Também propus na organização do Iskra e, como Mártov, não consegui fazê-lo triunfar, um candidato para o CC, de cuja magnífica reputação, demonstrável por factos excepcionais, teria eu podido falar antes do congresso e no início do mesmo. Mas não está na minha ideia fazê-lo. Este camarada tem dignidade suficiente para não permitir a ninguém, depois do congresso, propor em letra de forma a sua candidatura ou queixar-se de enterros políticos, de destruição de reputação, etc. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(7) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 8, p. 100. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(8) Segundo meus cálculos [Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 8, p. 481. (N. Ed.)], a data mencionada na carta corresponde a uma terça-feira. A reunião efectuou-se numa terça-feira à noite, ou seja, depois da 28ª sessão do congresso. Este dado cronológico é muito importante. Ele refuta documentalmente a opinião do camarada Mártov segundo a qual nós nos teríamos separado a propósito da questão da organização dos centros, e não da questão da sua composição pessoal. Ele mostra documentalmente a justeza da minha exposição no congresso da Liga e na Carta à Redacção. Depois da 28ª sessão do congresso os camaradas Mártov e Starover falam largamente de uma falsa acusação de oportunismo, e não dizem uma palavra do desacordo que se verificou sobre a composição do Conselho ou sobre a cooptação para os centros (o que discutimos nas 25ª, 26ª e 27ª sessões). (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(9) As linhas precedentes estavam já compostas quando recebemos notícias do incidente do camarada Gússev e do camarada Deutsch. Analisaremos este incidente separadamente, no anexo. (Nota do Autor) (retornar ao texto)

(10) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 7, p. 288. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(11) O congresso da social-democracia alemã de 1895 efectuou-se em Breslau (actualmente Wroclaw, cidade polaca) de 6 a 12 de Outubro. No centro da atenção do congresso estava a discussão do projecto do programa agrário proposto pela comissão agrária que foi criada por decisão do Congresso de Frankfurt de 1894. O projecto de programa agrário continha sérios erros, nomeadamente a tendência que nele se manifestava de transformar o partido proletário num partido «de todo o povo ». Este projecto era defendido, além dos oportunistas, também por A. Bebel e W. Liebknecht, pelo que foram criticados no congresso pelos camaradas do partido. O projecto do programa agrário foi submetido no congresso a uma crítica severa por K. Kautsky, C. Zetkin e por vários outros sociais-democratas. O congresso, por maioria de votos (158 contra 63), rejeitou o projecto de programa agrário apresentado pela comissão. (retornar ao texto)

(12) C. Zetkin citou de memória, na sua intervenção no congresso da social-democracia alemã, as palavras de Margarida, do Fausto de Goethe (Margarida reprova Fausto pela sua amizade por Mefistófeles). (retornar ao texto)

(13) Eis tudo. (N. Ed.) (retornar ao texto)

Inclusão: 27/12/2002
Última modificação: 04/03/2024