Que Fazer?

Vladimir Ilitch Lénine


V. «Plano» de um Jornal Político para Toda a Rússia


«O maior erro do Iskra neste aspecto — escreve B. Kritchévski (R. D., n.° 10, p. 30), imputando-nos a tendência para “converter a teoria em doutrina morta, isolando-a da prática” — é o seu “plano” de uma organização de todo o partido» (isto é, o artigo Por onde Começar?(1)). E Martínov faz coro com ele, declarando que «a tendência do Iskra para minimizar a importância da marcha ascendente da cinzenta luta quotidiana em comparação com a propaganda de ideias brilhantes e acabadas ..., foi coroada pelo plano de organização do partido, plano que nos é oferecido no n° 4, no artigo Por onde Começar?». (Ibid., p. 61.) Finalmente, há pouco juntou-se ao número dos indignados contra este «plano» (as aspas têm a intenção de exprimir a ironia com que o acolhe) L. Nadéjdine, que, num folheto que acabamos de receber, Em Vésperas da Revolução (editado pelo «grupo revolucionário-socialista» Svoboda, que já conhecemos), declara que «falar neste momento de uma organização cujos fios nasçam de um jornal para toda a Rússia é produzir ideias de gabinete e trabalho de gabinete» (p. 126), é dar provas de «literatismo», etc.

Não pode surpreender-nos a coincidência do nosso terrorista com os defensores da «marcha ascendente da cinzenta luta quotidiana», pois já vimos, nos capítulos sobre a política e sobre a organização, as raízes desta afinidade. Mas devemos observar, desde já, que L. Nadéjdine, e só ele, procurou honestamente penetrar na linha do pensamento do artigo que lhe desagradou; procurou dar-lhe uma resposta a fundo, enquanto a Rab. Dielo nada disse em essência e apenas procurou embrulhar a questão, amontoando indignas saídas demagógicas. E, por mais desagradável que seja, é preciso perder tempo a limpar previamente os estábulos de Augias.

a) Quem se ofendeu com o artigo «Por onde começar?»(2)

Vamos fazer um ramalhete com as expressões e exclamações com que a Rab. Dielo se lança contra nós. «Não é um jornal que pode criar a organização do partido, mas precisamente o contrário»... «Um jornal que se encontra acima do partido, fora do seu controlo e que não dependa dele por ter a sua própria rede de agentes»... «Por obra de que milagre esqueceu o Iskra as organizações sociais-democratas, já existentes de facto, do partido a que ele próprio pertence?»... «Pessoas que possuem firmes princípios e um plano correspondente são também os reguladores supremos da luta real do partido, ao qual ditam a execução do seu plano»... «O plano relega as nossas organizações, reais e vitais, para o reino das sombras e quer dar vida a uma fantástica rede de agentes»... «Se o plano do Iskra fosse levado à prática, apagaria completamente as marcas do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, que se vem formando no nosso país»... «Um órgão de propaganda substrai-se ao controlo e converte-se em legislador absoluto de toda a luta revolucionária prática»... «Que atitude deve tomar o nosso partido face à sua submissão total a uma redacção autónoma?», etc., etc.

O conteúdo e o teor destas citações, como vê o leitor, mostram que a Rab. Dielo se sente ofendida. Não é em si própria, porém, que se sente ofendida, mas pelas organizações e comités do nosso partido que o Iskra quer relegar, segundo pretende o dito órgão, para o reino das sombras e até apagar as suas marcas. Que horror, imaginem! Mas há uma coisa estranha. O artigo Por onde Começar? apareceu em Maio de 1901 e os artigos da R. Dielo em Setembro de 1901; agora estamos já em meados de Janeiro de 1902. Durante estes cinco meses (tanto antes como depois de Setembro) nem um só comité, nem uma só organização do partido protestou formalmente contra este monstro que quer relegar os comités e organizações para o reino das sombras! E há que fazer constar que durante este período apareceram, quer no Iskra, quer em numerosas outras publicações, locais e não locais, dezenas e centenas de comunicações de todos os confins da Rússia. Como pôde acontecer que as organizações que se quer relegar para o reino das sombras não se tenham apercebido disso nem se tenham sentido ofendidas, e que, em contrapartida, se tenha ofendido uma terceira pessoa?

Isto sucedeu porque os comités e as restantes organizações estão ocupados por um trabalho autêntico e não a brincar à «democracia». Os comités leram o artigo Por onde Começar?, viram nele uma tentativa «de elaborar certo plano da organização, para que possa iniciar-se a sua estruturação por toda a parte», e, tendo-se apercebido perfeitamente de que nem uma só de «todas essas partes» pensará «iniciar a estruturação» antes de se convencer da sua necessidade e de que o plano arquitectónico é justo, naturalmente não pensaram em «ofender-se» com a terrível ousadia dos que disseram no Iskra: «Dada a urgência da questão decidimos, pelo nosso lado, submeter à atenção dos camaradas um esboço do plano que desenvolveremos em pormenor numa brochura cuja impressão está a ser preparada.»(3) Parece possível que não se compreenda, se é que se adopta uma atitude honesta em relação a este problema, que se os camaradas aceitam o plano proposto à sua atenção não o executarão por «subordinação», mas por estarem convencidos de que é necessário para a nossa obra comum e que, caso não o aceitem, o «esboço» (que palavra tão pretensiosa, não é verdade?) não passará de um simples esboço? Não será demagogia arremeter contra o esboço do plano não só «demolindo-o» e aconselhando os camaradas a rejeitá-lo, mas ainda instigando pessoas pouco experimentadas no trabalho revolucionário contra os autores do esboço, pelo simples facto de estes se atreverem a «legislar», a agir como «reguladores supremos», isto é, porque eles se atrevem a propor um esboço do plano?? Pode o nosso partido desenvolver-se e andar para a frente se a tentativa de elevar os militantes locais, para que tenham ideias, tarefas, planos, etc., mais amplos, tropeça não só com a objecção de que estas ideias são incorrectas, mas também com um sentimento de «ofensa» pelo facto de se «querer» «elevar» esses militantes? Porque também L. Nadéjdine «demoliu» o nosso plano, mas não se rebaixou a semelhante demagogia, que já não pode ser explicada apenas pela candura ou pelo carácter primitivo das concepções políticas; repudiou resolutamente e desde o início a acusação de «fiscalizar o partido». Por esta razão, podemos e devemos responder a fundo à crítica que Nadéjdine faz ao plano, enquanto à Rab. Dielo só se pode responder com o desprezo.

Mas desprezar um autor que se rebaixa ao ponto de gritar sobre «autocracia» e «subordinação» não nos dispensa do dever de desfazer a confusão face à qual esta gente coloca o leitor. E aqui podemos mostrar a todos, com toda a clareza, que valor têm as habituais frases sobre uma «ampla democracia». Acusam-nos de esquecer os comités, de querer ou de tentar relegá-los para o reino das sombras, etc. Como responder a estas acusações quando, por razões de secretismo, não podemos expor ao leitor quase nenhum facto real das nossas relações efectivas com os comités? Os que lançam uma acusação tão ousada, capaz de irritar a multidão, têm sobre nós a vantagem da sua desfaçatez, do seu desdém pelos deveres do revolucionário, que oculta cuidadosamente aos olhos do mundo as relações ou ligações que tem, que estabelece ou procura estabelecer. Naturalmente, renunciamos, de uma vez para sempre, a competir com pessoas deste quilate no campo da «democracia». Quanto ao leitor não iniciado em todos os assuntos do partido, o único meio para cumprir o nosso dever para com ele é expor, não o que existe e o que se encontra im Werden(4), mas uma pequena parte do que se passou, e da qual se pode falar porque pertence ao passado.

O Bund faz alusão à nossa «impostura»(5). A «União» no estrangeiro acusa-nos de tentar apagar as marcas do partido. Um momento, senhores! Ficareis plenamente satisfeitos quando expusermos ao público quatro factos do passado.

Primeiro(6) facto. Os membros de uma das «Uniões de Luta» que tiveram uma participação directa na formação do nosso partido e no envio de um delegado ao congresso que o fundou entram em acordo com um dos membros do grupo do Iskra para fundar uma biblioteca operária especial, com o objectivo de atender às necessidades de todo o movimento. Não se consegue fundar a biblioteca operária, e as brochuras escritas para ela. As Tarefas dos Sociais-Democratas Russos e A Nova Lei das Fábricas(7) vão parar por caminhos indirectos e através de terceiras pessoas ao estrangeiro, onde são publicadas.

Segundo facto. Os membros do Comité Central do Bund dirigem-se a um dos membros do grupo do Iskra com a proposta de organizar em conjunto o que então o Bund chamava «um laboratório de literatura», indicando que se não se conseguisse levar à prática o projecto o nosso movimento podia vir a sofrer um sério retrocesso. O resultado destas conversações foi a brochura A Causa Operária na Rússia(8).

Terceiro facto. O Comité Central do Bund, por intermédio de uma pequena cidade de província, dirige-se a um dos membros do grupo do Iskra propondo-lhe que se encarregue da direcção do Rabótchaia Gazeta, que devia retomar a sua publicação, e obtém imediatamente a sua concordância. Mais tarde, modifica a proposta: trata-se apenas de colaborar, devido a uma nova composição da redacção. Claro que também se concorda com isto. Enviam-se os artigos (que se conseguiu conservar): O Nosso Programa, protestando directamente contra a bernsteiniada, contra a viragem da literatura legal e do Rabótchaia Misl; A Nossa Tarefa Imediata («a organização de um órgão do partido que apareça com regularidade e estreitamente ligado a todos os grupos locais»; os defeitos do «trabalho artesanal» imperante); Um Problema Vital (analisando a objecção de que se deveria, em primeiro lugar, desenvolver a actividade dos grupos locais antes de dar início à organização de um órgão comum; insistindo na importância primordial da «organização revolucionária», na necessidade de «elevar a organização, a disciplina e a técnica da conspiração ao mais alto grau de perfeição»)(9). A proposta para retomar a publicação do Rabótchaia Gazeta não se chega a realizar e os artigos ficam por publicar.

Quarto facto. Um membro do Comité organizador do II congresso ordinário do nosso partido comunica a um dos membros do grupo do Iskra o programa do congresso e apresenta a candidatura desse grupo para a redacção do Rabótchaia Gazeta, que devia retomar a sua publicação. Esta diligência, por assim dizer, preliminar, é depois sancionada tanto pelo comité a que a referida pessoa pertencia como pelo Comité Central do Bund; o grupo do Iskra é informado do local e data do congresso, mas o grupo (não tendo, por determinados motivos, a certeza de poder enviar um delegado a este congresso) redige também um relatório escrito para o mesmo. No referido relatório defende-se a ideia de que apenas com a eleição de um Comité Central, longe de se resolver o problema da unificação num momento de completa fragmentação como o actual, corremos, pelo contrário, o risco de comprometer a grande ideia da criação do partido, no caso de se verificar novamente uma rápida e completa vaga de prisões, coisa mais do que provável quando reina a falta de secretismo; de que, por isso, se devia começar por convidar todos os comités e todas as demais organizações a apoiar o órgão comum quando reiniciasse a sua publicação, órgão que realmente vincularia todos os comités através de uma ligação efectiva e prepararia realmente um grupo de dirigentes de todo o movimento; — e depois os comités e o partido poderiam já facilmente transformar este grupo criado pelos comités num Comité Central, quando esse grupo se tivesse desenvolvido e fortalecido. O congresso, porém, não se pôde reunir devido a uma série de detenções, e, por razões conspirativas, destruiu-se o relatório, que só alguns camaradas, entre eles os delegados de um comité, tiveram ocasião de ler.

Julgue agora o leitor por si mesmo o carácter de métodos como a alusão do Bund a uma impostura ou o argumento da Rab. Dielo, que pretende que queremos relegar os comités para o reino das sombras, «substituir» a organização do partido por uma organização para a difusão das ideias de um só jornal. Sim, precisamente perante os comités, depois de inúmeros convites feitos por eles, apresentámos relatórios sobre a necessidade de se adoptar um determinado plano de trabalho comum. E precisamente para a organização do partido elaborámos esse plano nos nossos artigos enviados ao Rabótchaia Gazeta e no relatório para o congresso do partido e repetimos que o fizemos a convite de pessoas que ocupavam no partido uma posição tão influente que tomavam a iniciativa de o reconstruir (de facto). E só quando fracassaram as duas tentativas que a organização do partido, em conjunto connosco, fez para reiniciar oficialmente a publicação do órgão central do partido julgámos que era nosso dever iniludível apresentar um órgão não oficial, a fim de que, à terceira tentativa, os camaradas vissem já alguns resultados da experiência e não meras conjecturas. Agora todos podem já observar certos resultados dessa experiência, e todos os camaradas podem julgar se compreendemos com acerto qual era o nosso dever e a opinião que merecem as pessoas que, despeitadas por termos mostrado a uns a sua inconsequência em relação à questão «nacional» e a outros a inadmissibilidade das suas vacilações sem princípios, procuram induzir em erro as pessoas que desconhecem o passado mais recente.

b) Pode um jornal ser um organizador colectivo?

A chave do artigo Por onde Começar? é pôr precisamente esta questão e resolvê-la pela afirmativa. A única pessoa que, pelo que conhecemos, tentou analisar a questão quanto ao fundo e provar a necessidade de a resolver de modo negativo foi L. Nadéjdine, cujos argumentos reproduzimos na íntegra:

« ... Muito nos agrada que o Iskra (nº 4) coloque a questão da necessidade de um jornal para toda a Rússia, mas não podemos de maneira alguma estar de acordo que esta maneira de pôr o problema corresponda ao título do artigo Por onde Começar?. É sem dúvida um dos assuntos de extrema importância, mas não é com isso, nem com toda uma série de panfletos populares, nem com uma montanha de proclamações que se podem criar os fundamentos de uma organização de combate para um momento revolucionário. É indispensável começar a formar fortes organizações políticas locais. Não as temos, o nosso trabalho desenvolveu-se sobretudo entre os operários cultos, enquanto as massas travavam quase exclusivamente a luta económica. Se não se educam fortes organizações políticas locais, que valor poderia ter um jornal para toda a Rússia, mesmo que esteja excelentemente organizado? Uma sarça ardente que arde sem se consumir, mas que a ninguém transmite o seu fogo! O Iskra crê que em torno desse jornal, no trabalho para ele, se concentrará o povo, se organizará. Mas como lhe é muito mais fácil concentrar-se e organizar-se em torno de um trabalho mais concreto! Este trabalho pode e deve ser o de organizar jornais locais em vasta escala, o de preparar imediatamente as forças operárias para manifestações, o de levar as organizações locais a trabalhar constantemente entre os desempregados (difundindo persistentemente entre eles folhas volantes e panfletos, convocando-os para reuniões, exortando-os à resistência ao governo, etc.). É preciso dar início a um trabalho político vivo no plano local, e quando surgir a necessidade de unificação nesta base real, a união não será algo de artificial, não ficará no papel. Porque não é com jornais que se conseguirá esta unificação do trabalho local numa obra comum a toda a Rússia! (Em Vésperas da Revolução, p. 54.)

Sublinhámos nesta tirada eloquente as passagens que permitem apreciar com maior relevo tanto a opinião errada do autor sobre o nosso plano, como, em geral, o falso ponto de vista que ele opõe ao Iskra. Se não se educam fortes organizações políticas locais, não terá valor o melhor jornal destinado a toda a Rússia. Completamente justo. Mas trata-se precisamente de que não existe outro meio para educar fortes organizações políticas senão um jornal para toda a Rússia. O autor não notou a declaração mais importante do Iskra, feita antes de passar a expor o seu «plano»: a declaração de que era necessário «apelar para a formação de uma organização revolucionária capaz de unir todas as forças e de dirigir o movimento, não só de uma maneira nominal, mas na realidade, quer dizer, capaz de estar sempre disposta a apoiar todo o protesto e toda a explosão, aproveitando-os para multiplicar e robustecer as forças de combate aptas para a batalha decisiva». Mas agora, depois de Fevereiro e Março, todos estarão em princípio de acordo com isso — continua o Iskra —, e o que nós precisamos não é de resolver o problema em princípio, mas sim na prática; é necessário estabelecer imediatamente um plano determinado para a construção, para que todos possam, agora mesmo e de todos os lados, iniciar a construção. E eis aqui que nos arrastam mais uma vez da solução prática do problema para trás, para uma verdade em princípio justa, inconstestável, grande, mas completamente insuficiente, completamente incompreensível para as grandes massas trabalhadoras: para a «educação de fortes organizações políticas»! Mas não é disso que se trata, respeitável autor, mas de como, precisamente, há que educar, e educar com êxito!

Não é verdade que o «nosso trabalho se desenvolveu sobretudo entre os operários cultos, enquanto as massas travavam quase exclusivamente a luta económica». Sob esta forma, a tese desvia-se para a tendência, habitual no Svoboda e radicalmente errada, de opor os operários cultos à «massa». Pois, nestes últimos anos, também os operários cultos do nosso país travaram «quase exclusivamente a luta económica». Isto, por um lado. Por outro, tão-pouco as massas aprenderão jamais a travar a luta política enquanto nós não ajudarmos a formação dos dirigentes para esta luta, procedentes tanto dos operários cultos como dos intelectuais; e estes dirigentes podem formar-se, exclusivamente, iniciando-se na apreciação sistemática e quotidiana de todos os aspectos da nossa vida política; de todas as tentativas de protesto e de luta das diferentes classes e por diferentes motivos. Por isso, falar de «educar organizações políticas» e, ao mesmo tempo, opor o «trabalho da papelada» de um jornal político ao «trabalho político vivo no plano local» é simplesmente ridículo! Mas se o Iskra adapta precisamente o seu «plano» de um jornal ao «plano» de criar uma «preparação combativa» que possa apoiar tanto um movimento de desempregados, um levantamento de camponeses, como o descontentamento dos zémtsi, «a indignação da população contra os bachibuzuques(10) tsaristas cheios de soberba», etc. Além disso, qualquer pessoa familiarizada com o movimento sabe muito bem que a imensa maioria das organizações locais nem sequer pensa nisto; que muitas das perspectivas aqui esboçadas de «um trabalho político vivo» não foram aplicadas na prática nem uma só vez por nenhuma organização; que, por exemplo, a tentativa para chamar a atenção para o recrudescimento do descontentamento e dos protestos entre os intelectuais dos zemstvos origina um sentimento de confusão e perplexidade tanto em Nadéjdine («Meu Deus! mas será esse órgão para os zémtsiEm Vésperas, p. 129) como nos «economistas» (ver a carta no n° 12 do Iskra), como em muitos militantes práticos. Nestas condições, pode-se unicamente «começar» por incitar as pessoas a pensar em tudo isto, a resumir e sintetizar todos e cada um dos indícios de efervescência e de luta activa. Em momentos destes, em que se rebaixa a importância das tarefas sociais-democratas, o «trabalho político activo» só pode iniciar-se exclusivamente por uma agitação política viva, coisa impossível sem um jornal para toda a Rússia, que apareça frequentemente e se difunda com regularidade.

Aqueles que consideram o «plano» do Iskra como uma manifestação de «literatismo» não compreenderam de modo algum a própria essência do plano, tomando como fim o que se propõe como meio mais adequado para o momento presente. Esta gente não se deu ao trabalho de reflectir sobre duas comparações que ilustram claramente o plano proposto. A organização de um jornal político para toda a Rússia — escrevia-se no Iskra — deve ser o fio fundamental, seguindo o qual podemos invariavelmente desenvolver, aprofundar e alargar esta organização (isto é, a organização revolucionária, sempre disposta a apoiar todo o protesto e toda a explosão). Façam o favor de nos dizer: quando os pedreiros colocam em diferentes pontos as pedras de um edifício enorme e sem precedentes, será um trabalho «de papelada» esticar um fio que os ajuda a encontrar o lugar justo para as pedras, que lhes indica a finalidade da obra comum, que lhes permite colocar não só cada pedra, mas mesmo cada bocado de pedra, que, ao somar-se aos precedentes e aos seguintes, formará a linha acabada e total? E não vivemos nós, por acaso, um momento desta índole na nossa vida de partido, quando temos pedras e pedreiros, mas nos falta precisamente o fio, visível a todos e pelo qual todos se podem guiar? Não importa que gritem que, ao esticarmos o fio, o que queremos é mandar: se assim fosse, senhores, poríamos Rabótcbaia Gazeta n° 3 em vez de Iskra n° l, como nos propuseram alguns camaradas e como teríamos pleno direito de fazer depois dos acontecimentos atrás relatados. Mas não o fizemos; queríamos ter as mãos livres para desenvolver uma luta intransigente contra todo o tipo de pseudo-sociais-democratas; queríamos que o nosso fio, se está justamente esticado, fosse respeitado pela sua justeza, e não por ter sido esticado por um órgão oficial.

«A questão de unificar as actividades locais em órgãos centrais move-se num círculo vicioso — diz-nos sentenciosamente L. Nadéjdine — a unificação requer homogeneidade de elementos, e esta homogeneidade não pode ser criada senão por um aglutinador, mas este aglutinador só pode aparecer como produto de fortes organizações locais, que, neste momento, não se distinguem de maneira alguma pela sua homogeneidade.» Verdade tão respeitável e tão incontestável como a de que é necessário educar fortes organizações políticas. E não menos estéril do que esta. Toda a questão «se move num círculo vicioso», pois toda a vida política é uma cadeia sem fim, composta de uma série infinita de elos. Toda a arte de um político consiste precisamente em encontrar e agarrar-se com força precisamente ao elozito que menos lhe possa ser arrancado das mãos, que seja o mais importante num dado momento e que melhor garanta ao seu possuidor a posse de toda a cadeia(11). Se tivéssemos um destacamento de pedreiros experimentados, que trabalhassem de modo tão harmónico que, mesmo sem o fio, pudessem colocar as pedras precisamente onde é necessário (falando abstractamente isto não é de modo algum impossível), poderíamos talvez agarrarmo-nos também a um outro elo. Mas a infelicidade consiste precisamente em ainda termos necessidade de pedreiros experimentados e que trabalhem de modo tão harmónico, em as pedras serem colocadas frequentemente ao acaso, sem serem alinhadas pelo fio comum, de forma tão desordenada que o inimigo as dispersa com um sopro como se fossem grãos de areia e não pedras.

Outra comparação: «O jornal não é apenas um propagandista colectivo e um agitador colectivo, mas também um organizador colectivo. Neste último sentido, pode ser comparado aos andaimes que se levantam à volta de um edifício em construção, marcando-lhe os contornos, facilitando as comunicações entre os construtores, ajudando-os a repartir entre si o trabalho e a observarem os resultados gerais alcançados pelo trabalho organizado.»(12) Isto faz pensar — não é verdade ? — no literato, no homem de gabinete, exagerando a importância do seu papel. Os andaimes não são imprescindíveis para a própria casa: são feitos com um material de qualidade inferior, são utilizados durante um período relativamente curto e lançados ao fogo uma vez terminado o edifício, ainda que apenas nas suas grandes linhas. No que diz respeito à construção de organizações revolucionárias, a experiência mostra que se podem, por vezes, construir sem andaimes (recordai a década de 70). Mas agora não podemos sequer imaginar a possibilidade de construir sem andaimes o edifício de que temos necessidade.

Nadéjdine não está de acordo com isto e diz: «O Iskra crê que em torno desse jornal, no trabalho para ele, se concentrará o povo, se organizará. Mas como lhe é muito mais fácil concentrar-se e organizar-se em torno de um trabalho mais concreto!» Claro, claro: «mais fácil concentrar-se e organizar-se em torno de um trabalho mais concreto» ... Um provérbio russo diz: Não cuspas no poço, que da sua água terás de beber. Mas há pessoas que não se importam de beber de um poço em cuja água já se cuspiu. Em nome deste carácter mais concreto, quantas infâmias não disseram e escreveram os nossos notáveis «críticos» legais do «marxismo» e os admiradores ilegais do Rabótchaia Misl! Até que ponto está todo o nosso movimento abafado pela nossa estreiteza de vistas, pela nossa falta de iniciativa e pela nossa timidez, justificada com os argumentos tradicionais: «Muito mais fácil... em torno de um trabalho mais concreto!» E Nadéjdine, que se considera dotado de um sentido especial da «vida», que condena com singular severidade os homens de «gabinete», que imputa ao Iskra (com pretensões de sagacidade) a debilidade de ver o «economismo» em toda a parte, que imagina estar muito acima desta divisão em ortodoxos e críticos, não nota que com os seus argumentos favorece a estreiteza de vistas que o indigna e bebe a água do poço em que mais se cuspiu! Sim, não basta a indignação mais sincera contra a estreiteza de vistas, o desejo mais ardente de elevar as pessoas que se curvam perante ela, se o que se indigna anda à deriva, sem velas e sem leme, e se, tão «espontaneamente» como os revolucionários da década de 70, se aferra ao «terror excitante», ao «terror agrário», ao «toque a rebate», etc. Vede em que consiste esse algo «mais concreto» em torno do qual, pensa ele, «será muito mais fácil» concentrar-se e organizar-se: 1) jornais locais; 2) preparação de manifestações; 3) trabalho entre os desempregados. Ao primeiro olhar se vê que todas estas coisas são tomadas completamente ao acaso, unicamente para se dizer alguma coisa, porque, qualquer que seja a forma com que forem consideradas, seria uma total incongruência encontrar nelas o quer que seja de especialmente capaz de «concentrar e organizar». E o próprio Nadéjdine diz algumas páginas mais à frente: «Já é tempo de deixar claramente assente um facto: na base faz-se um trabalho extremamente mesquinho, os comités não fazem um décimo do que poderiam fazer... os centros de unificação que temos actualmente são uma ficção, burocracia revolucionária, promoção recíproca a general, e assim continuarão as coisas enquanto não se desenvolverem fortes organizações locais.» Não há dúvida que estas palavras, ao mesmo tempo que exageros, encerram muitas e amargas verdades; e será que Nadéjdine não vê a ligação que existe entre o trabalho mesquinho na base e o estreito horizonte dos militantes, o reduzido alcance das suas actividades, coisas inevitáveis dada a pouca preparação dos militantes confinados nos limites das organizações locais? Terá Nadéjdine, tal como o autor do artigo sobre organização publicado no Svoboda, esquecido que a passagem a uma ampla imprensa local (desde 1898) foi acompanhada de uma intensificação especial do «economismo» e do «trabalho artesanal»? Além disso, mesmo que fosse possível uma organização mais ou menos satisfatória de «uma abundante imprensa local» (e já demonstrámos mais atrás que, salvo casos muito excepcionais, isto era impossível), mesmo nesse caso, os órgãos locais tão-pouco poderiam «concentrar e organizar» todas as forças dos revolucionários para uma ofensiva geral contra a autocracia, para dirigir a luta única. Não esqueçais que aqui se trata do alcance «concentrador», organizador, do jornal, e poderíamos fazer a Nadéjdine, defensor da fragmentação, a mesma pergunta irónica que ele faz: «Será que herdámos, de qualquer parte, uma força de 200 000 organizadores revolucionários?» Prossigamos. Não se pode contrapor a «preparação de manifestações» ao plano do Iskra, pela simples razão de este plano dizer precisamente que as manifestações mais amplas são um dos seus fins, mas do que se trata é de escolher o meio prático. Aqui mais uma vez Nadéjdine se enredou, não vendo que só um exército já «concentrado e organizado» pode «preparar» manifestações (que até agora, na imensa maioria dos casos, têm sido completamente espontâneas), e que o que precisamente não sabemos é concentrar e organizar. «Trabalho entre os desempregados.» Sempre a mesma confusão, porque isto também representa uma das acções militares de um exército mobilizado e não um plano para mobilizar esse exército. O caso seguinte demonstra até que ponto Nadéjdine subestima, também neste sentido, o prejuízo que nos causa a fragmentação, a falta entre nós de uma «força de 200 000 organizadores». Muitos (e entre eles Nadéjdine) censuram o Iskra pela parcimónia de notícias sobre o desemprego, pelo carácter casual das crónicas sobre os fenómenos mais habituais da vida rural. É uma censura merecida, mas o Iskra é «culpado sem ter culpa.» Nós procurámos «esticar um fio» também através da aldeia, mas no campo quase não há pedreiros e há forçosamente que encorajar todo aquele que nos comunique mesmo os factos mais habituais, na esperança de que isto multiplicará o número de colaboradores neste terreno e nos ensinará a todos a escolher, finalmente, os factos realmente relevantes. Mas há tão pouco material de ensino que, se não o sintetizamos à escala de toda a Rússia, não há absolutamente nada que aprender. Não há dúvida que um homem que tenha, mesmo que seja aproximadamente, as aptidões de agitador e o conhecimento da vida dos vagabundos que observamos em Nadéjdine poderia, com a agitação entre os desempregados, prestar inestimáveis serviços ao movimento; mas um homem desta índole enterraria o seu talento se não tivesse o cuidado de manter todos os camaradas russos ao corrente de todos os pormenores da sua actuação para servir de ensinamento e de exemplo às pessoas que, na sua imensa maioria, não sabem ainda iniciar este novo trabalho.

Todos sem excepção falam hoje da importância da unificação, da necessidade de «concentrar e organizar», mas a maior parte das vezes não têm uma noção exacta de por onde começar e de como realizar esta unificação. Todos estarão certamente de acordo em que «se unificássemos» os círculos isolados — digamos, de bairro — de uma cidade seriam necessários para isso organismos comuns, isto é, não só a denominação comum de «união» mas um trabalho realmente comum, um intercâmbio de materiais, de experiência, de forças, uma distribuição de funções, não já só por bairros mas segundo as especialidades de todo o trabalho urbano. Todos estarão de acordo em que um sólido aparelho conspirativo não cobrirá os seus gastos (se é que se pode utilizar uma expressão comercial) com os «recursos» (subentende-se que tanto materiais como pessoais) de um único bairro e que o talento de um especialista não se poderá desenvolver num campo de acção tão reduzido. O mesmo se poderá dizer, entretanto, também da união de várias cidades, porque, como mostrou a história do nosso movimento social-democrata, mesmo o campo de acção de uma localidade isolada se mostra e já se mostrou enormemente estreito: provámo-lo mais atrás pormenorizadamente com o exemplo da agitação política e do trabalho de organização. E necessário, é incondicionalmente necessário, antes de mais, alargar este campo de acção, criar uma ligação efectiva de união entre as cidades, com base num trabalho regular e comum, porque o fraccionamento deprime as pessoas que «estão metidas num buraco» (expressão do autor de uma carta dirigida ao Iskra), sem saber o que se passa no mundo, com quem têm de aprender, como adquirir experiência de modo a satisfazer o seu desejo de uma ampla actividade. E eu continuo a insistir que esta ligação efectiva de união só pode começar a ser criada com base num jornal comum que seja, para toda a Rússia, a única empresa regular nacional a fazer o balanço de toda a actividade, nos seus aspectos mais variados, incitando dessa maneira as pessoas a seguir infatigavelmente para a frente, por todos os numerosos caminhos que levam à revolução, como todos os caminhos levam a Roma. Se queremos a unificação não só em palavras, é necessário que cada círculo local dedique imediatamente, suponhamos um quarto das suas forças, a um trabalho activo para a obra comum. E o jornal mostra-lhe imediatamente(13) os contornos gerais, as proporções e o carácter da obra; mostra-lhe quais são as lacunas que mais se notam em toda a actividade geral da Rússia, onde é que não existe agitação, onde são débeis as ligações, quais são as engrenagens do enorme maquinismo geral que este ou aquele círculo poderia reparar ou substituir por outras melhores. Um círculo que ainda não tenha trabalhado e que não procura senão trabalho poderia começar já, não como artesão na sua pequena oficina isolada e que não conhece nem o desenvolvimento da «indústria» anterior a ele nem o estado geral de determinadas formas de produção industrial, mas como colaborador de uma vasta empresa, que reflecte todo o impulso revolucionário geral contra a autocracia. E quanto mais perfeita for a preparação de cada engrenagem isolada, quanto mais numerosos fossem os trabalhadores isolados que participam na obra comum, tanto mais apertada seria a nossa rede e tanto menos perturbações nas nossas fileiras provocariam as inevitáveis prisões.

A ligação efectiva começaria já a ser criada através da simples função de difusão do jornal (se ele merecesse realmente tal título, isto é, se aparecesse regularmente, umas quatro vezes por mês, e não uma vez por mês como as revistas volumosas). Actualmente são raríssimas, e em todo o caso uma excepção, as relações entre as cidades sobre assuntos revolucionários; então essas relações converter-se-iam em regra e, naturalmente, assegurariam não só a difusão do jornal, mas também (o que é muito mais importante) o intercâmbio de experiência, de materiais, de forças e de recursos. Imediatamente o trabalho de organização ganharia uma envergadura muito maior, e o êxito alcançado numa localidade encorajaria constantemente o aperfeiçoamento do trabalho e o aproveitamento da experiência já adquirida por um camarada que actua noutro extremo do país. O trabalho local seria muito mais rico e variado do que é actualmente; as denúncias políticas e económicas que se recolhessem por toda a Rússia alimentariam intelectualmente os operários de todas as profissões e de todos os graus de desenvolvimento, forneceriam dados e ocasião para conversas e leituras sobre os mais variados problemas, suscitados, além disso, pelas alusões feitas pela imprensa legal, pelas conversas em sociedade e os «tímidos» comunicados do governo. Cada explosão, cada manifestação, seria apreciada e discutida em todos os seus aspectos e em todos os confins da Rússia, fazendo surgir o desejo de não ficar para trás, de fazer melhor que os outros (nós, os socialistas, não excluímos de modo nenhum toda a emulação, toda a «concorrência», em geral!), de preparar conscientemente o que da primeira vez se tinha feito até certo ponto espontaneamente, de aproveitar as condições favoráveis de uma determinada localidade ou de um determinado momento para modificar o plano de ataque, etc. Ao mesmo tempo, esta reanimação do trabalho local não acarretaria a desesperada tensão «agónica» de todas as forças, nem a mobilização de todos os homens, como sucede frequentemente agora, quando há que organizar uma manifestação ou publicar um número de um jornal local: por um lado, a polícia tropeçaria com muito maiores dificuldades para chegar até «à raiz», já que não se saberia em que localidade haveria que procurá-la; por outro, um trabalho comum e regular ensinaria os homens a fazer concordar em cada caso concreto a força de um ataque com o estado de forças deste ou daquele destacamento do exército comum (hoje quase ninguém pensa, em parte alguma, nesta coordenação porque nove décimos dos ataques se produzem espontaneamente), e facilitaria o «transporte» de um lugar para outro não só das publicações, mas também das forças revolucionárias.

Actualmente, na maior parte dos casos, estas forças são sangradas no estreito trabalho local; então ter-se-ia possibilidade e ocasiões constantes para transferir um agitador ou organizador mais ou menos capaz de um extremo para o outro do país. Começando com uma pequena viagem para tratar de assuntos do partido e à custa do partido, os militantes habituar-se-iam a viver inteiramente por conta do partido, a tornar-se revolucionários profissionais, a formar-se como verdadeiros chefes políticos.

E se realmente conseguíssemos que todos, ou uma maioria considerável dos comités, grupos e círculos locais empreendessem activamente o trabalho comum, poderíamos, num futuro muito próximo, estar em condições de publicar um semanário que se difundisse regularmente em dezenas de milhares de exemplares por toda a Rússia. Este jornal seria uma parte de um gigantesco fole de uma forja que atiçasse cada centelha da luta de classes e da indignação do povo, convertendo-a num grande incêndio. Em torno deste trabalho, em si muito inofensivo e muito pequeno ainda, mas regular e comum no pleno sentido da palavra, concentrar-se-ia sistematicamente e instruir-se-ia o exército permanente de lutadores experimentados. Sobre os andaimes desta obra comum de organização rapidamente veríamos subir e destacar-se, de entre os nossos revolucionários, os Jeliábov sociais-democratas; de entre os nossos operários, os Bebel russos, que se poriam à cabeça do exército mobilizado e levantariam todo o povo para acabar com a ignomínia e a maldição da Rússia. É com isto que é preciso sonhar!

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«É preciso sonhar!» Escrevi estas palavras e assustei-me. Imaginei-me sentado no «congresso de unificação», tendo à minha frente os redactores e colaboradores da Rabótcheie Dielo. E eis que se levanta o camarada Martínov e, em tom ameaçador, dirige-se-me: «Permita-me que lhe faça uma pergunta: tem ainda a redacção autónoma o direito de sonhar sem prévio referendo dos comités do partido?» Atrás dele levanta-se o camarada Kritchévski e (aprofundando filosoficamente o camarada Martínov, que, há muito tempo já, tinha aprofundado o camarada Plekhánov), num tom ainda mais ameaçador, continua: «Eu vou ainda mais longe, e pergunto se em geral um marxista tem o direito de sonhar, se não esquece que, segundo Marx, a humanidade sempre pôs perante si tarefas realizáveis, e que a táctica é um processo de crescimento das tarefas, que crescem com o partido.»

Só de pensar nestas perguntas ameaçadoras sinto calafrios, e não penso senão numa coisa: onde me esconder. Tentarei esconder-me atrás de Píssarev.

Há desacordos e desacordos — escrevia Píssarev sobre o desacordo entre os sonhos e a realidade. — Os meus sonhos podem ultrapassar o curso natural dos acontecimentos ou podem desviar-se para um lado onde o curso natural dos acontecimentos não pode nunca chegar. No primeiro caso, os sonhos não produzem nenhum dano, e podem até apoiar e reforçar as energias do trabalhador... Em sonhos desta índole, nada existe que possa deformar ou paralisar a força do trabalho. Bem pelo contrário. Se o homem estivesse completamente privado da capacidade de sonhar assim, se não pudesse de vez em quando adiantar-se e contemplar em imaginação o quadro inteiramente acabado da obra que se esboça entre as suas mãos, eu não poderia, de maneira alguma, compreender que móbil levaria o homem a iniciar e levar a seu termo vastos e penosos empreendimentos nas artes, nas ciências e na vida prática... O desacordo entre os sonhos e a realidade nada tem de nocivo, sempre que a pessoa que sonhe acredite seriamente no seu sonho, observe atentamente a vida, compare as suas observações com os seus castelos no ar e, de uma maneira geral, trabalhe escrupulosamente para a realização das suas fantasias. Quando existe um contacto entre o sonho e a vida, tudo vai bem.»(14)

Pois bem, sonhos desta natureza, infelizmente, são muito raros no nosso movimento. E a culpa têm-na sobretudo os representantes da crítica legal e do «seguidismo» ilegal, que se gabam da sua ponderação, da sua «proximidade» do «concreto».

c) De que tipo de organização precisamos?

Pelo que atrás se disse, o leitor pode ver que a nossa «táctica-plano» consiste em rejeitar o apelo imediato ao assalto, em exigir que se organize «o assédio regular à fortaleza inimiga», ou, por outras palavras, em exigir que todos os nossos esforços tenham como objectivo reunir, organizar e mobilizar um exército regular. Quando pusemos a ridículo a Rabótcheie Dielo por saltar do «economismo» aos gritos sobre a necessidade do assalto (gritos que irromperam impetuosamente em Abril de 1901, no n° 6 do Listok «R. Dielo»(15), este órgão atacou-nos, como era natural, acusando-nos de «doutrinarismo», dizendo que não compreendíamos o dever revolucionário, que exortávamos à prudência, etc. Evidentemente, não estranhámos de modo nenhum estas acusações na boca de gente que, não tendo quaisquer princípios, se escapa com a profunda «táctica-processo»; como tão-pouco estranhámos que esta acusação tenha sido repetida por Nadéjdine, que, em geral, manifesta o mais altivo desprezo pela firmeza dos princípios programáticos e tácticos.

Diz-se que a história não se repete. Mas Nadéjdine empenha-se com todas as suas forças em repeti-la e imita zelosamente Tkatchov, denegrindo o «trabalho cultural revolucionário», vociferando sobre o «repicar dos sinos do vetche(16)», apregoando um «ponto de vista» especial «de vésperas da revolução», etc. Pelo que se vê, esquece a célebre frase que diz que se o original de um acontecimento histórico é uma tragédia, a sua cópia mais não é do que uma farsa.(17) A tentativa de tomada do poder — tentativa preparada pela propaganda de Tkatchov e realizada pelo terror «intimidativo», e que realmente intimidava na sua época — era majestosa, enquanto, pelo contrário, o terror «excitante» deste Tkatchov em ponto pequeno é simplesmente ridículo; sobretudo, é ridículo quando se completa com a ideia de organizar os operários médios.

«Se o Iskra — escreve Nadéjdine — saísse da sua esfera de literatismo, veria que isto (factos como a carta de um operário publicada no n° 7 do Iskra, etc.) são sintomas que provam que brevemente, muito brevemente, começará o “assalto”, e falar agora (sic!) de uma organização cujos fios nascem de um jornal para toda a Rússia é fomentar ideias de gabinete e trabalho de gabinete.» Fixai-vos nesta confusão incrível: por um lado, terror excitante e «organização dos operários médios», juntamente com a ideia de que é «mais fácil» concentrar-se em torno de algo «mais concreto», por exemplo, em torno de jornais locais, e, por outro, falar «agora» de uma organização para toda a Rússia significa fomentar ideias de gabinete, isto é (empregando uma linguagem mais franca e simples), «agora» já é tarde! E para «a ampla organização de jornais locais» não é tarde, respeitabilíssimo L. Nadéjdine? Ao contrário comparemos com isto o ponto de vista e a táctica do Iskra: o terror excitante é uma tolice; falar em organizar precisamente os operários médios numa ampla organização de jornais locais significa escancarar as portas ao «economismo». É preciso falar de uma organização de revolucionários única para toda a Rússia e não será tarde falar dela até ao momento em que começar o verdadeiro assalto, e não um assalto no papel.

«Sim — continua Nadéjdine —, no que respeita a organização a nossa situação está muito longe de ser brilhante; sim, o Iskra tem toda a razão quando diz que o grosso das nossas forças de combate é constituído por voluntários e insurrectos... Está bem que tenhais uma noção sóbria do estado das nossas forças. Mas porque esqueceis que a multidão não é de maneira nenhuma nossa e que, portanto, não nos perguntará quando deve abrir as hostilidades e lançar-se no “motim”... Quando a própria multidão começar a actuar com a sua força devastadora espontânea, então pode envolver e desalojar o “exército regular”, que sempre se pensou organizar de maneira extraordinariamente sistemática, mas que não houve tempo de fazer.» (Sublinhado por mim.)

Estranha lógica! Precisamente porque a «multidão não é nossa», é insensato e indecente dar gritos de «assalto» imediato, já que o assalto é um ataque de um exército regular e não uma explosão espontânea da multidão. É precisamente porque a multidão pode envolver e desalojar o exército regular que se torna sem falta necessário que todo o nosso trabalho de «organização extraordinariamente sistemática» do exército regular ande a par do ascenso espontâneo, porque quanto mais conseguirmos esta organização, tanto mais provável será que o exército regular não seja envolvido pela multidão, mas marche à frente dela, à sua cabeça. Nadéjdine engana-se, porque imagina que este exército sistematicamente organizado se ocupa de coisas que o afastam da multidão, enquanto, na realidade, se ocupa exclusivamente de uma agitação política geral e multiforme, isto é, precisamente de um trabalho que aproxima e funde num todo a força destruidora espontânea da multidão e a força destruidora consciente da organização dos revolucionários. A verdade é que vós, senhores, lançais para o próximo as vossas próprias faltas, pois precisamente o grupo Svoboda, ao introduzir no programa o terror exorta desse modo à criação de uma organização de terroristas; e uma tal organização distrairia efectivamente o nosso exército da sua aproximação da multidão, que infelizmente não é ainda nossa e infelizmente não nos pergunta, ou quase não nos pergunta ainda, como e quando deve abrir as hostilidades.

«Deixaremos passar despercebida a própria revolução — continua Nadéjdine assustando o Iskra —, como nos sucedeu com os acontecimentos actuais, que nos apanharam de surpresa.» Esta frase, relacionada com as que citámos mais atrás, demonstra-nos claramente o absurdo do «ponto de vista» especial «de vésperas da revolução» congeminado pelo Svoboda(18). Falando sem ambiguidades, o «ponto de vista» especial reduz-se a que «agora» já é tarde para deliberar e nos prepararmos. Mas neste caso, oh respeitabilíssimo inimigo do «literatismo»! para que escrever 132 páginas impressas sobre «questões de teoria(19) e de táctica»? Não lhe parece que, do «ponto de vista de vésperas da revolução», seria mais adequada uma edição de 132 000 panfletos com um breve apelo: «A eles!»?

Corre precisamente menos riscos de deixar passar despercebida a revolução quem, como faz o Iskra, coloca no lugar principal do seu programa, de toda a sua táctica, de todo o seu trabalho de organização, a agitação política entre todo o povo. As pessoas que, em toda a Rússia, estão ocupadas a entrançar os fios da organização que nasça de um jornal para toda a Rússia, longe de deixar passar despercebidos os acontecimentos da Primavera, deram-nos, pelo contrário, a possibilidade de os prever. Tão-pouco deixaram passar despercebidas as manifestações descritas nos n° 13 e 14 do Iskra(20); pelo contrário, participaram nelas, com perfeita consciência de que era seu dever acorrer em ajuda do ascenso espontâneo da multidão, contribuindo ao mesmo tempo, através do seu jornal, para que todos os camaradas russos conheçam estas manifestações e utilizem a sua experiência. E se continuarem vivos, não deixarão também passar despercebida a revolução que exigirá de nós, antes e acima de tudo, experiência em matéria de agitação, saber apoiar (apoiar de maneira social-democrata) todos os protestos, saber orientar o movimento espontâneo, preservando-o dos erros dos amigos e das ciladas dos inimigos!

Eis-nos chegados, pois, à última razão que nos força a insistir particularmente no plano de uma organização formada em torno de um jornal para toda a Rússia, por meio do trabalho conjunto para este jornal comum. Só uma tal organização assegurará à organização de combate social-democrata a flexibilidade indispensável, isto é, a capacidade de se adaptar imediatamente às mais variadas condições de luta, que mudam rapidamente; saber «por um lado, evitar as batalhas em campo aberto contra um inimigo que tem uma superioridade esmagadora de forças, quando este concentra toda a sua força num ponto, e, por outro lado, aproveitar a lentidão de movimentos desse inimigo para o atacar no local e no momento em que menos espera ser atacado»(21). Seria um gravíssimo erro estruturar a organização do partido contando apenas com explosões e lutas de rua ou só com a «marcha ascendente da cinzenta luta quotidiana». Devemos desenvolver sempre o nosso trabalho quotidiano e estar sempre dispostos a tudo, porque muitas vezes é quase impossível prever como alternarão os períodos de explosões com os de calma, e mesmo que fosse possível prever isso não se poderia aproveitar a previsão para reconstruir a organização, porque num país autocrático essas mudanças produzem-se com assombrosa rapidez, às vezes como consequência de uma incursão nocturna dos janízaros(22) tsaristas. E a própria revolução não deve ser imaginada como um acto único (como pelos vistos a imaginam os Nadéjdine), mas como uma rápida sucessão de explosões mais ou menos violentas, alternando com períodos de calma mais ou menos profunda. Por isso, o conteúdo fundamental das actividades da organização do nosso partido, o foco destas actividades deve consistir num trabalho que é possível e necessário tanto durante o período da explosão mais violenta como durante o da calma mais completa, a saber: um trabalho de agitação política unificada em toda a Rússia, que lance luz sobre todos os aspectos da vida e se dirija às mais amplas massas. E este trabalho é inconcebível na Rússia actual sem um jornal para toda a Rússia e que apareça com muita frequência. A organização que se formar por si mesma em torno desse jornal, a organização dos seus colaboradores (no sentido lato do termo, isto é, de todos aqueles que trabalham para ele) estará precisamente disposta a tudo, desde salvar a honra, o prestígio e a continuidade do partido nos momentos de maior «depressão» revolucionária, até preparar, fixar e levar à prática a insurreição armada de todo o povo.

Suponhamos, com efeito, uma vaga de prisões total, o que é muito corrente entre nós, numa ou em várias localidades. Não havendo em todas as organizações locais um trabalho comum de forma regular, essas vagas de prisões são acompanhadas amiudadamente de uma interrupção do trabalho durante longos meses. Ao contrário, se todas tivessem um trabalho comum bastariam, no caso da maior vaga de prisões, algumas semanas de trabalho de duas ou três pessoas enérgicas para pôr em contacto com o organismo central comum os novos círculos de jovens que, como é sabido, mesmo agora brotam com extrema rapidez; e quando o trabalho comum, que sofre as consequências das vagas de prisões, está à vista de toda a gente, os novos círculos podem surgir e pôr-se em contacto com esse organismo central ainda mais rapidamente.

Imaginai, por outro lado, uma insurreição popular. Hoje, provavelmente, todos concordarão que devemos pensar nela e prepararmo-nos para ela. Mas como prepararmo-nos? Terá o Comité Central que designar agentes em todas as localidades para preparar a insurreição? Mesmo que tivéssemos um Comité Central, este CC não conseguiria absolutamente nada designando-os, dadas as actuais condições da Rússia. Pelo contrário, uma rede de agentes(23), que se forme por si própria no trabalho de organização e de difusão de um jornal comum, não teria de «esperar de braços cruzados» a palavra de ordem da insurreição, mas faria precisamente um trabalho regular que lhe garantiria, em caso de insurreição, as maiores probabilidades de êxito. Precisamente este trabalho reforçaria os laços de união tanto com as mais amplas massas operárias como com todos os sectores descontentes com a autocracia, o que tem tanta importância para a insurreição. Precisamente com base nesta obra formar-se-ia a capacidade de avaliar acertadamente a situação política geral e, por consequência, a capacidade para escolher o momento adequado para a insurreição. Precisamente esta obra habituaria todas as organizações locais a fazerem-se eco, simultaneamente, de todos os problemas, incidentes ou acontecimentos políticos que apaixonam toda a Rússia, a responder a esses «acontecimentos» da maneira mais enérgica, mais uniforme e mais conveniente possível; e, no fundo, a insurreição é a «resposta» mais enérgica, mais uniforme e mais conveniente de todo o povo ao governo. Precisamente este trabalho, por fim, habituaria todas as organizações revolucionárias, em todos os cantos da Rússia, a manter entre si as relações mais constantes e ao mesmo tempo mais conspirativas, relações que criariam a unidade efectiva do partido; e sem estas relações não é possível discutir colectivamente um plano de insurreição, nem adoptar em vésperas desta última as medidas preparatórias indispensáveis, medidas que devem ser mantidas no mais rigoroso segredo.

Numa palavra, «o plano de um jornal político para toda a Rússia», longe de ser o fruto de um trabalho de gabinete de pessoas contaminadas pelo doutrinarismo e pelo literatismo (como pareceu a pessoas que meditaram pouco nele), é, pelo contrário, o plano mais prático para começar, em toda a parte e imediatamente, a prepararmo-nos para a insurreição, sem esquecer ao mesmo tempo nem um instante o trabalho normal de todos os dias.