Que Fazer?

Vladimir Ilitch Lenine

Dogmatismo e “Liberdade de Crítica”


a) O que significa a “liberdade de crítica”

”Liberdade de crítica” é, sem dúvida alguma, a palavra de ordem mais em voga actualmente, aquela que aparece com mais frequência nas discussões entre socialistas e democratas de todos os países. À primeira vista, nada parece mais estranho do que ver um dos contraditores exigir solenemente a liberdade de crítica. Acaso nos partidos avançados ergueram-se vozes contra a lei constitucional que na maioria dos países europeus, garante a liberdade da ciência e da investigação científica? “Há algo escondido” dirá necessariamente qualquer homem imparcial que tenha ouvido essa palavra de ordem em moda, repetida em todos os cantos, e que ainda não tenha apreendido o sentido do desacordo. “Essa palavra de ordem é, evidentemente, uma daquelas pequenas palavras convencionais que, como os apelidos, são consagradas pelo uso e tornam-se quase nomes comuns”. 

De facto, não constitui mistério para ninguém que, na actual social-democracia internacional, se tenham formado duas tendências, cuja luta ora “se anima e se inflama, ora se extingue sob as cinzas das grandiosas resoluções de tréguas”. Em que consiste a “nova tendência que “critica” o “velho” marxismo “dogmático”, disse-o Bernstein, e demonstrou-o Millerand com suficiente clareza.

A social-democracia deve transformar-se de partido da revolução social em partido democrático de reformas sociais. Essa reivindicação política, foi cercada por Bernstein com toda uma bateria de “novos” argumentos e considerações muito harmoniosamente orquestrados. Nega ele a possibilidade de se conferir fundamento científico ao socialismo e de se provar, do ponto de vista da concepção materialista da história, sua necessidade e sua inevitabilidade, nega a miséria crescente, a proletarização e o agravamento das contradições capitalistas; declara inconsistente a própria concepção do “objectivo final”, e rejeita categoricamente a ideia da ditadura do proletariado; nega a oposição de princípios entre o liberalismo e o socialismo, nega a teoria da luta de classes, considerando-a inaplicável a uma sociedade estritamente democrática, administrada segundo a vontade da maioria etc.

Assim, a exigência de uma mudança decisiva - da social-democracia revolucionária para o reformismo social burguês - foi acompanhada de reviravolta não menos decisiva em direcção à crítica burguesa de todas as ideias fundamentais do marxismo. E como essa crítica, de há muito, era dirigida contra o marxismo do alto da tribuna política da cátedra universitária, em uma quantidade de publicações e em uma série de tratados científicos: como, há dezenas de anos, era inculcada sistematicamente à jovem geração das classes instruídas, não é de se surpreender que a “nova” tendência “crítica” na social-democracia tenha surgido repentinamente sob sua forma definitiva, tal como Minerva da cabeça de Júpiter. Em seu conteúdo, essa tendência não teve de se desenvolver e de se formar; foi transplantada directamente da literatura burguesa para a literatura socialista.

Prossigamos. Se a crítica teórica de Bernstein e suas ambições políticas permaneciam ainda obscuras para alguns, os franceses tiveram o cuidado de fazer uma demonstração prática do “novo método”. Ainda desta vez a França justificou sua velha reputação de “país em cuja história a luta de classes, mais do que em qualquer outro, foi resolutamente conduzida até o fim” (Engels, trecho do prefácio ao Der 18 Brumaire de Marx). Ao invés de teorizar, os socialistas franceses agiram deliberadamente; as condições políticas da França, mais desenvolvidas no sentido democrático, permitiram-lhes passar imediatamente ao “bernsteinismo prático” com todas as suas consequências. Millerand deu um exemplo brilhante desse bernsteinismo prático; também, com que empenho Bernstein e Volimar apressaram-se em defender e louvar Millerand!De fato, se a social-democracia não constitui, no fundo, senão um partido de reformas e deve ter a coragem de reconhecê-lo abertamente, o socialismo não somente tem o direito de entrar em um ministério burguês, como também deve mesmo aspirar sempre a isso. Se a democracia significa, no fundo, a supressão da dominação de classe, por que um ministro socialista não seduziria o mundo burguês com discursos sobre a colaboração das classes? Por que não conservaria ele sua pasta, mesmo após os assassínios de operários por policiais terem demonstrado pela centésima e pela milésima vez o verdadeiro carácter da colaboração democrática das classes? Por que não facilitaria pessoalmente o czar a quem os socialistas franceses não chamavam senão de knouteur, pendeur et déportateur? E para contrabalançar esse interminável aviltamento e auto-flagelação do socialismo perante o mundo inteiro, essa perversão da consciência socialista das massas operárias - única base que nos pode assegurar a vitória -, são nos oferecidos os projectos grandiloquentes de reformas insignificantes, insignificantes ao ponto de se poder ter obtido mais dos governos burgueses!

Aqueles que não fecham os olhos deliberadamente não podem deixar de ver que a nova tendência “crítica” no socialismo nada mais é que uma nova variedade do oportunismo. E se tais pessoas forem julgadas, não a partir do brilhante uniforme que vestiram, nem tampouco do título pomposo que se atribuíram, mas a partir de sua maneira de agir e das ideias que realmente divulgam, tornar-se-á claro que “a liberdade de crítica” é a liberdade da tendência oportunista na social-democracia, a liberdade de transformar esta em um partido democrático de reformas, a liberdade de implantar no socialismo as ideias burguesas e os elementos burgueses.

A liberdade é uma grande palavra, mas foi sob a bandeira da liberdade da indústria que foram empreendidas as piores guerras de pilhagem, foi sob a bandeira da liberdade do trabalho, que os trabalhadores foram espoliados. A expressão “liberdade de crítica”, tal como se emprega hoje, encerra a mesma falsidade. As pessoas verdadeiramente convencidas de terem feito progredir a ciência não reclamariam, para as novas concepções, a liberdade de existir ao lado das antigas, mas a substituição destas por aquelas. Portanto, os gritos atuais de “Viva a liberdade de crítica!” lembram muito a fábula do tonel vazio.

Pequeno grupo compacto, seguimos por uma estrada escarpada e difícil, segurando-nos fortemente pela mão. De todos os lados, estamos cercados de inimigos, e é preciso marchar quase constantemente debaixo de fogo. Estamos unidos por uma decisão livremente tomada, precisamente a fim de combater o inimigo e não cair no pântano ao lado, cujos habitantes desde o início nos culpam determos formado um grupo à parte, e preferido o caminho da luta ao caminho da conciliação. Alguns dos nossos gritam: Vamos para o pântano! E quando lhes mostramos a vergonha de tal ato, replicam: Como vocês são atrasados! Não se envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir um caminho melhor! Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso, larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também nós somos “livres” para ir aonde nos aprouver, livres para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem!(*)

b) Os novos defensores da “liberdade de crítica”

É esta palavra de ordem (“liberdade de crítica”) que o Rabótcheie Dielo (n.º 10), órgão da “União dos Sociais-Democratas Russos” no estrangeiro, formulou solenemente nesses últimos tempos, não como postulado teórico, mas como reivindicação política, como resposta à questão: “É possível a união das organizações sociais-democratas funcionando no estrangeiro?” - “Para uma união sólida, a liberdade de crítica é indispensável” (p. 36).

Daqui, duas conclusões bastante precisas são extraídas: 1ª) o Rabótcheie Dielo assume a defesa da tendência oportunista na social-democracia internacional, em geral; 2ª) o Rabótcheie Dielo reclama a liberdade de oportunismo na social-democracia russa. Examinemos estas conclusões.

O que desagrada “acima de tudo” ao Rabótcheie Dielo, é a “tendência que têm o Iskra e a Zaria de prognosticar a ruptura entre a Montanha e a Gironda da social-democracia internacional”.(1)

”Falar de uma Montanha e de uma Gironda nos escalões da social-democracia, escreve o redactor-chefe do Rabótcheie Dielo, B. Kritchévski, parece-nos uma analogia histórica superficial, singular na pena de um marxista: a Montanha e a Gironda não representavam temperamentos ou correntes intelectuais diversas como poderá parecer aos historiadores ideólogos, mas classes ou camadas diversas: de um lado, a média burguesia, de outro, apequena-burguesia e o proletariado. Ora, no movimento socialista contemporâneo não existe coalizão de interesses de classe; em todas (sublinhado por Kritchévski)as suas variedades, aí compreendidos os bernsteinianos mais declarados, o movimento coloca-se inteiramente no campo dos interesses da classe do proletariado, da luta de classe do proletariado para sua emancipação política e económica” (p. 32-33).

Afirmação ousada! Ignora B. Kritchévski ofato, há muito observado, de que foi precisamente a grande participação da camada de “académicos”, no movimento socialista dos últimos anos que assegurou a rápida difusão do bernsteinismo? E, ainda mais, em que fundamenta o autor sua opinião para declarar que os “bernsteinianos mais declarados” colocam-se, também eles, no campo da luta de classe para a emancipação política e económica do proletariado? Não seria possível dizê-lo. Esta defesa resoluta dos bernsteinianos mais declarados não encontra nenhum argumento, nenhuma razão para apoiá-la. Mas, o que de mais “superficial” pode haver do que esta maneira de julgar toda uma tendência a partir das próprias convicções daqueles que a representam? O que há demais superficial do que a moral que acompanha esses dois tipos ou caminhos diferentes, e mesmo diametralmente opostos, do desenvolvimento do Partido (p.34-35 do Rabótcheie Dielo)? Observem que os sociais-democratas alemães admitem a completa liberdade de crítica; os franceses, ao contrário, não o fazem, e é o seu exemplo que demonstra todo o “mal da intolerância”.

Respondemos que é precisamente o exemplo de B. Kritchévski aquele que mostra haver pessoas que, intitulando-se, por vezes marxistas, consideram a história exactamente “à maneira de Ilováiski”. Para explicar a unidade do partido alemão e a dispersão do partido socialista francês, não há nenhuma necessidade de se buscar as particularidades da história de um ou outro país, de se fazer comparações entre as condições do semi-absolutismo militar e do parlamentarismo republicano, de se examinar as consequências da Comuna e da lei de excepção contra os socialistas, de se comparar a situação e o desenvolvimento económicos, de se levar em conta ofato de que o “crescimento ímpar da social-democracia alemã” foi acompanhado de uma luta de vigor sem precedentes na história do socialismo, não somente contra os erros teóricos (Mühlberger, Dühring(2), os socialistas da Cátedra), mas também contra os erros tácticos (Lassalle) etc. etc. Tudo isto é supérfluo! Os franceses discutem entre si, porque são intolerantes; os alemães são unidos, porque são bons rapazes.

E, note-se bem, através dessa incomparável profundidade de pensamento, “recusa-se” um fato que arruína completamente a defesa dos bernsteinianos. Colocam-se estes últimos no campo da luta de classe do proletariado? Tal questão não pode ser definitivamente resolvida, e sem se voltar atrás, senão pela experiência histórica. Por conseguinte, o mais importante aqui é o exemplo da França, o único país onde os bernsteinianos tentaram voar com suas próprias asas, com a calorosa aprovação de seus colegas alemães (e em parte, dos oportunistas russos: cf. Rab, Dielo, n.º. 2-3, p., 83-84). Alegar a “intransigência” dos franceses, além do valor “histórico” de tal alegação (à maneira de Nozdrev, é simplesmente dissimular, sob palavras acrimoniosas, fatos extremamente desagradáveis.

Aliás, não temos nenhuma intenção de abandonar os alemães a B. Kritchévski e a outros inúmeros defensores da “liberdade de crítica”. Se os “bernsteinianos mais declarados” ainda são tolerados no partido alemão, é unicamente na medida em que se submetem à resolução de Hanôver, que rejeita deliberadamente as “emendas” de Bernstein, e a de Lübeck, a qual (apesar de toda a diplomacia) contém uma advertência formal dirigida a Bernstein. Do ponto de vista dos interesses do partido alemão, pode-se discutir a oportunidade desta diplomacia e perguntar se, neste caso, um mau acordo vale mais do que uma boa discussão; em uma palavra, pode-se discordar sobre este ou aquele meio de rejeitar o bernsteinismo, mas não seria possível ignorar o fato de o partido alemão tê-lo repudiado por duas vezes. Portanto, aceitar que o exemplo dos alemães confirma a tese de que “os bernsteinianos mais declarados colocam-se no campo da luta de classe do proletariado para sua emancipação económica e política”, significa que não se compreende absolutamente nada do que se passa sob os olhos de todos.(3)

E ainda mais. O Rabótcheie Dielo, como já mostramos, apresenta à social-democracia russa a reivindicação da “liberdade de crítica” e defende o bernsteinismo. Aparentemente, deve ter-se convencido de que nossos “críticos” e nossos bernsteinianos eram injustamente maltratados. Mas, quais? Por quem, onde e quando? Por que injustamente? A esse respeito, o Rabótcheie Dielo cala-se; nem uma só vez menciona um crítico ou um bernsteiniano russo! Só nos resta escolher entre as duas hipóteses possíveis. Ou a parte injustamente ofendida não é senão o próprio Rabótcheie Dielo (o que é confirmado pelo fato de os dois artigos do n.º. 10 falarem unicamente das ofensas infligidas pela Zaria e pelo Iskra ao Rabótcheie Dielo). Mas, daí, como explicar o estranho fato de o Rabótcheie Dielo, que sempre negou obstinadamente qualquer solidariedade com o bernsteinismo, não ter podido se defender senão em favor dos “bernsteinianos mais declarados” e da liberdade de crítica? Ou, então, foram terceiros os injustamente ofendidos. Neste caso, quais seriam, pois, os motivos para não serem mencionados?

Assim, vemos que o Rabótcheie Dielo continua o jogo de esconde-esconde, ao qual se dedica (como demonstraremos mais adiante) desde que existe. Ademais, note-se esta primeira aplicação prática da famosa “liberdade de crítica”. De fato, esta liberdade logo reconduziu não somente à ausência de toda crítica, mas também à ausência de todo julgamento independente em geral. O mesmo Rabótcheie Dielo que oculta, como uma doença secreta (segundo a feliz expressão de Satrover), a existência de um bernsteinismo russo, propõe para curar essa doença copiar pura e simplesmente a última receita alemã para o tratamento da forma alemã de tal doença! Ao invés de liberdade de crítica, imitação servil... pior ainda: simiesca! As manifestações do actual oportunismo internacional, em toda aparte idêntico em seu conteúdo social e político, variam segundo as particularidades nacionais. Em um país, as oportunidades há muito agrupam-se sob uma bandeira distinta; em outro, desdenhando a teoria, seguem praticamente a política dos socialistas radicais; em um terceiro, alguns membros do partido revolucionário, que se passaram para o campo do oportunismo, desejam atingir os seus fins, não através de luta aberta por princípios e tácticas novas, mas através de corrupção gradual, imperceptível e, se é que se pode dizer, não passível de punição pelo seu partido; enfim, em outro lugar, esses desertores empregam os mesmos procedimentos nas trevas da escravatura política, onde a relação entre a actividade “legal” e a actividade “ilegal” etc., é completamente original. Fazer da liberdade de crítica e da liberdade do bernsteinismo a condição da união dos sociais-democratas russos, sem uma análise das manifestações concretas e dos resultados particulares do bernsteinismo russo, é falar sem nada dizer.

Portanto, tentemos nós próprios dizer, ao menos em poucas palavras, o que não quis dizer (ou talvez não tenha sabido compreender) o Rabótcheie Dielo.

c) A crítica na Rússia

No que concerne à nossa análise, a particularidade essencial da Rússia consiste em que o próprio começo do movimento operário espontâneo, de um lado, e a evolução da opinião pública avançada em direcção ao marxismo, de outro, foram marcados pela combinação de elementos notoriamente heterogéneos sob uma mesma bandeira para a luta contra o inimigo comum (contra uma filosofia política e social obsoletas). Referimo-nos à lua-de-mel do “marxismo legal”, um fenómeno de extrema originalidade, em cuja possibilidade ninguém teria acreditado na década de 1880, ou no início da década de 1890. Em um país autocrático, onde a imprensa é completamente subjugada, em uma época de terrível reacção política que reprimia as menores manifestações de descontentamento e de protesto político, a teoria do marxismo revolucionário abre repentinamente o caminho em uma literatura submissa à censura, e esta teoria foi exposta na linguagem de Esopo, compreensível, porém, a todos “aqueles que se interessavam”. O governo tinha se habituado a não considerar como perigosa senão a teoria da “Naródnaia Vólia” (revolucionária); e não notava, como é comum, a sua evolução interna regozijando-se com toda crítica dirigida contra ela. Antes de o governo se aperceber, antes de o pesado exército de censores e policiais descobrir o novo inimigo e atirar-se sobre ele, muito tempo se passou (muito tempo para nós russos). Ora, durante esse tempo, as obras marxistas foram editadas sucessivamente, foram fundados jornais e revistas marxistas; todo o mundo literalmente tornou-se marxista; os marxistas eram elogiados, adulados, os editores estavam entusiasmados com a venda extremamente rápida das obras marxistas. É compreensível que entre os marxistas principiantes, mergulhados na embriaguez do sucesso, tenha havido mais de um “escritor envaidecido”...

Hoje, pode-se falar desse período tranquilamente, como se fala do passado. Ninguém ignora que a efémera emergência do marxismo à superfície de nossa literatura provém da aliança com elementos bastante moderados. No fundo, esses últimos eram democratas burgueses, e esta conclusão (evidenciada por sua evolução “crítica” ulterior) já se impunha a alguns à época em que a “aliança” ainda estava intacta.(4)

Mas, assim sendo, a quem pertence a maior responsabilidade pelo “problema” ulterior, senão aos sociais-democratas revolucionários que concluíram esta aliança com os futuros “críticos”? Esta é a questão, seguida de uma resposta afirmativa, que se ouve, por vezes, das pessoas que vêem as coisas de maneira demasiado linear. Tais pessoas, porém, não têm razão alguma. Só podem temer as alianças temporárias, mesmo com elementos inseguros, os que não possuem confiança em si próprios. Nenhum partido político poderia existir sem essas alianças. Ora, a união com os marxistas legais foi, de qualquer modo, a primeira aliança, política verdadeira realizada pela social-democracia russa. Esta aliança permitiu alcançar uma vitória surpreendentemente rápida sobre o populismo, e assegurou a prodigiosa difusão das ideias marxistas (é verdade que vulgarizadas). Além disso, esta aliança não foi concluída completamente sem “condições”. Testemunha-o a compilação marxista, Documentos Sobre o Desenvolvimento Económico da Rússia, queimada em 1895 pela censura. Se se pode comparar o acordo literário com os marxistas legais a uma aliança política, pode-se comparar tal obra a um contrato político.

Evidentemente, a ruptura não se deve ao fato de os “aliados” se terem declarado democratas burgueses. Ao contrário, os representantes dessa última tendência constituem, para a social-democracia, aliados naturais e desejáveis, sempre que se trate de tarefas democráticas que a situação actual da Rússia coloca em primeiro plano. Mas, a condição necessária para tal aliança, é que os socialistas tenham a plena possibilidade de revelar à classe operária a oposição hostil entre os seus interesses e os da burguesia. Ora, o bernsteinismo e a tendência “crítica” a que aderiram, em geral, os marxistas legais, em sua maioria, removiam essa possibilidade e pervertiam a consciência socialista, aviltando o marxismo, pregando a teoria da atenuação dos antagonismos sociais, proclamando absurda a ideia da revolução social e da ditadura do proletariado, reconduzindo o movimento operário e a luta de classes a um sindicalismo estreito e à luta “realista” por reformas pequenas e graduais. Isso equivalia perfeitamente à negação, para a democracia burguesa, do direito do socialismo à independência e, por conseguinte, de seu direito à existência; e, na prática, tendia a transformar o movimento operário, então em seus primórdios, em apêndice do movimento liberal.

É evidente que, nessas condições, impunha-se a ruptura. Porém, pela particularidade original da Rússia, essa ruptura de novo consistiu em simplesmente eliminar os sociais-democratas da literatura “legal” , a mais acessível ao público e a mais amplamente difundida. Os “ex-marxistas”, que se agruparam “sob o signo da crítica” e obtiveram quase o monopólio da “execução” do marxismo, aí se entrincheiraram. Os slogans, “contra a ortodoxia” e “viva a liberdade de crítica” (retomados agora pelo Rabótcheie Dielo) tornaram-se imediatamente palavras em moda. Nem mesmo os censores e os policiais puderam resistir a essa moda, como o mostram as três edições russas do livro famoso (famoso à maneira de Eróstrato) Bernstein, ou a recomendação de Zubatov das obras de Bernstein, de M. Prokopovitch etc. (Iskra n.º. 10). Aos sociais-democratas impunha-se, então, a tarefa já em si difícil, e ainda mais incrivelmente dificultada pelos obstáculos puramente exteriores, de combater a nova corrente. Ora, tal corrente não se limitava à literatura. A evolução em direcção à “crítica” encontrou-se com o entusiasmo dos sociais-democratas práticos pelo”economismo”.(5)

O nascimento e o desenvolvimento da ligação e da dependência recíproca, entre a crítica legal e o “economismo”ilegal, constituem questão interessante, que poderia servir de objecto de um artigo especial. Aqui, basta-nos assinalar a existência incontestável dessa ligação. O famoso Credo adquiriu tão merecida celebridade por ter formulado abertamente essa ligação, e divulgado incidentalmente a tendência política fundamental do “economismo”: para os operários, a luta económica (ou, mais exactamente, a luta sindical, que abrange também a política especificamente operária); para os intelectuais marxistas, a fusão com os liberais para a “luta” política. A actividade sindical “no povo” foi a realização da primeira metade da tarefa; a crítica legal da segunda. Essa declaração era uma arma tão preciosa contra o”economismo” que se o Credo não tivesse existido, teria sido necessário inventá-lo.

O Credo não foi inventado, mas publicado sem o consentimento e talvez mesmo contra a vontade de seus autores. Em todo o caso, o autor destas linhas, que contribuiu para trazer à luz o novo “programa”,(6) teve ocasião de ouvir lamentações e censuras pelo fato de o resumo dos pontos de vista dos oradores, por eles esboçado, ter sido divulgado em cópias, rotulado com o nome de Credo, e mesmo publicado na imprensa com o protesto! Se recordamos esse episódio, é porque ele revela um traço muito curioso de nosso “economismo”: o temor à publicidade. Este é um traço do”economismo” em geral, e não somente dos autores do Credo: Manifesta-se na Rabótchaia Mysl o mais franco e honesto adepto do”economismo”, e no Rabótcheie Dielo (que se ergueu contra a publicação de documentos “economistas” no Vade mecum, e no Comitê de Kiev, há cerca de dois anos, não quis autorizar que se publicasse sua “Profissão de Fé” em conjunto com a refutação(7) desta última; e manifesta-se também em muitos e muitos representantes do “economismo”. 

Esse temor da crítica que demonstram os adeptos da liberdade de crítica, não poderia ser explicado unicamente pela astúcia (ainda que a astúcia, por vezes, desempenhe o seu papel: não é vantajoso expor ao ataque do adversário as tentativas ainda frágeis de uma nova tendência!). Não, a maioria dos “economistas” com uma sinceridade absoluta vê (e pela própria essência do “economismo” tem de fazê-lo) sem benevolência todas as discussões teóricas, divergências de facção, grandes problemas políticos, projectos de organização dos revolucionários etc. “Seria melhor deixar tudo isto aos estrangeiros.” disse-me um dia um dos “economistas” bastante consequentes, exprimindo, assim, esta opinião extremamente difundida (puramente sindical, mais uma vez), de que nossa incumbência é o movimento operário, as organizações operárias internas de nosso país, e que todo o resto é invenção dos doutrinários, uma “sobrestimação da ideologia”, segundo a expressão dos autores da carta publicada no número 12 do Iskra, em uníssono ao número 10 do Rabótcheie Dielo.

Agora, a questão que se coloca é: dadas essas particularidades da “crítica” e do bernsteinismo russos, qual devia ser a tarefa daqueles que, realmente e não apenas em palavras, desejam ser adversários do oportunismo? Em primeiro lugar, era necessário retomar o trabalho teórico que, apenas começado à época do marxismo legal, voltara então a recair sobre os militantes ilegais, sem esse trabalho, o crescimento normal do movimento seria impossível. Em seguida, era necessário empreender uma luta activa contra a “crítica” legal que corrompia profundamente os espíritos. Enfim, era preciso combater vigorosamente a dispersão e as flutuações do movimento prático, denunciando e refutando toda tentativa de rebaixar, consciente ou inconscientemente, nosso programa e nossa táctica.

Sabe-se que o Rabótcheie Dielo não cumpriu nenhuma dessas tarefas, e mais adiante analisaremos detalhadamente essa verdade bem conhecida, sob os mais diversos ângulos. No movimento, desejamos simplesmente mostrar a contradição flagrante que existe entre a reivindicação da “liberdade de crítica” e as particularidades de nossa crítica nacional e o “economismo” russo. Olhem a resolução pela qual a “União dos Sociais-Democratas Russos no Estrangeiro” confirmou o ponto de vista do Rabótcheie Dielo:

”No interesse do desenvolvimento ideológico ulterior da social-democracia, reconhecemos que a liberdade de criticar a teoria social-democrata é absolutamente necessária na literatura do partido, na medida em que esta crítica não contradiga o carácter de classe e o carácter revolucionário desta teoria.” (Dois Congressos, p. 10).

E os motivos que se apresentam são: a resolução “em sua primeira parte, coincide com a resolução do congresso do Partido em Lübeck”, a propósito de Bernstein”... Na sua simplicidade, “os (membros) da União” nem sequer notam o testimonium paupertatis (certificado de indigência) que passam a si próprias!...”mas...., em sua segunda parte, restringe a liberdade de crítica deforma mais estrita do que no congresso de Lübeck”.

Assim, a resolução da “União” será dirigida contra os bernsteinianos russos? Senão, seria completamente absurdo referir-se a Lübeck!. Mas, é falso que “restringe de forma mais estrita a liberdade de crítica”. Pela sua resolução de Hanôver, os alemães rejeitaram, ponto por ponto, exactamente as emendas de Bernstein, e na resolução de Lübeck, endereçaram uma advertência pessoal a Bernstein mencionando-o na resolução. Entretanto, nossos imitadores “livres” não fazem a menor alusão a uma única das manifestações da “crítica” e do “economismo”especificamente russos. Dada esta reticência, a alusão pura e simples ao carácter de classe e do carácter revolucionário da teoria deixa muito mais margem a falsas interpretações, sobretudo se a “União” recusa-se a classificar no oportunismo a “tendência dita economista” (Dois Congressos, p. 8 § 1). Mas, dizemos isso de passagem. O importante é que as posições dos oportunistas, em relação aos sociais-democratas revolucionários, são diametralmente opostas na Alemanha e na Rússia. Na Alemanha, os sociais-democratas revolucionários, como se sabe, são favoráveis à manutenção do que existe: ao antigo programa e à antiga táctica conhecidos de todos e explicados em todos os seus detalhes pela experiência de dezenas e dezenas de anos. Ora, os “críticos” desejam fazer modificações e, como estão em ínfima maioria e suas tendências revisionistas são demasiado tímidas, compreende-se os motivos por que a maioria limita-se a rejeitar friamente sua “inovação”. Na Rússia, ao contrário, críticos e “economistas” são favoráveis à manutenção do que existe: os “críticos” desejam que se continue a considerá-los marxistas e que se lhes assegure à “liberdade de crítica”, da qual se beneficiam sob todos os aspectos (pois, no fundo, nunca reconheceram qualquer coesão dentro do Partido;(8) além disso, não tínhamos um órgão do Partido universalmente reconhecido e capaz de “limitar” a liberdade de crítica, nem sequer por um conselho); os “economistas” desejam que os revolucionários reconheçam “os plenos direitos do movimento no momento actual” (Rab. Dielo n.º. 10, p. 25), isto é, a “legitimidade” da existência do que existe; que os “ideólogos não procurem desviar o movimento do caminho “determinado pela interacção recíproca dos elementos materiais e do meio material” (“carta” do número 12 do Iskra); que se reconheça como desejável a luta, “a mesma luta que os operários podem conduzir nas circunstâncias atuais”, e como possível aquela “que eles conduzem, na realidade, no momento presente” (“Suplemento especial da Rabótchaia Mysl”, p. 14). Porém, para nós, sociais-democratas revolucionários, este culto do espontâneo, isto é do que existe “no momento presente”, não nos diz nada. Exigimos que seja modificada a táctica que tem prevalecido nesses últimos anos; declaramos que “antes de nos unir, e para nos unir, devemos começar por nos demarcar nítida e resolutamente” (anúncio da publicação do Iskra). Em uma palavra, os alemães conformam-se ao estado actual das coisas e rejeitam as modificações;quanto a nós, rejeitando a submissão e a resignação ao estado actual das coisas, exigimos a modificação.

É esta a “pequena” diferença que nossos “livres” copiadores das resoluções alemãs não notaram!

d) Engels e a importância da luta teórica

”O dogmatismo, o doutrinarismo”, a fossilização do Partido, castigo inevitável do estrangulamento forçado do pensamento”, tais são os inimigos contra os quais entram na arena os campeões da “liberdade de crítica” do Rabótcheie Dielo. Apreciamos que esta questão tenha sido colocada na ordem do dia; apenas proporíamos completá-la com esta outra questão: Mas, quem são os juízes?

Temos diante de nós dois prospectos de edições literárias. O primeiro é o “programa do Rabótcheie Dielo, órgão periódico da “União dos Sociais-Democratas Russos” (separata do número 1 do Rab. Dielo). O segundo é o “anúncio da retomada das edições do grupo 'Liberação do Trabalho'”. Todos os dois são datados de 1899, época em que a “crise do marxismo” estava, há muito, na ordem do dia. Portanto, em vão procuraríamos na primeira obra as indicações sobre esta questão e uma exposição precisa da posição que pensa tomar, a esse respeito, perante o novo órgão. Quanto ao trabalho teórico e suas tarefas essenciais à hora presente, esse programa e seus complementos adoptados; pelo Terceiro Congresso da “União” (em 1901) nada mencionam (Dois Congressos, p. 15-18). Durante todo esse tempo, a redaçcão do Rabótcheie Dielo deixou de lado as questões de teoria, apesar de essas preocuparem os sociais-democratas do mundo inteiro.

O outro prospecto, ao contrário, assinala logo de início o descuro do interesse pela teoria no decurso desses últimos anos; reclama, insistentemente, “uma atenção vigilante para o aspecto teórico do movimento revolucionário do proletariado”, e exorta a urna “crítica implacável das tendências anti-revolucionárias, bernsteinianas, e outras”, em nosso movimento. Osnúmeros publicados da Zaria mostram como este programa foi aplicado.

Vê-se assim, portanto, que as grandes frases contra a fossilização do pensamento etc. dissimulam o desinteresse e a impotência para fazer progredir o pensamento teórico. O exemplo dos sociais-democratas russos ilustra, de uma forma particularmente notável, esse fenómeno comum à Europa (e de há muito assinalado pelos marxistas alemães), de que a famosa liberdade de crítica não significa a substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade com respeito a todo sistema coerente e reflectido; significa o eclectismo e a ausência de princípios. Quem conhece, por pouco que seja, a situação de fato de nosso movimento não pode deixar de ver que a grande difusão do marxismo foi acompanhada de certo abaixamento do nível teórico. Muitas pessoas, cujo preparo era ínfimo ou nulo, aderiram ao movimento pelos seus sucessos práticos e importância efectiva. Pode-se julgar a falta de tacto demostrada pelo Rabótcheie Dielo, pela definição de Marx, que lançou de forma triunfante: “Cada passo avante, cada progresso real valem mais que uma dúzia de programas”. Repetir tais palavras nessa época de dissensão teórica equivale a dizer à vista de um cortejo fúnebre: “Tomara que sempre tenham algo para levar!” Além disso, essas palavras são extraídas da carta sobre o programa de Gotha, na qual Marx condena categoricamente o eclectismo no enunciado dos princípios. Se a união é verdadeiramente necessária, escrevia Marx aos dirigentes do partido, façam acordos para realizar os objectivos práticos do movimento, mas não cheguem, ao ponto de fazer comércio dos princípios, nem façam “concessões” teóricas. Tal era o pensamento de Marx, e eis que há entre nós pessoas que, em seu nome, procuram diminuir a importância da teoria!

Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Não seria demasiado insistir sobre essa ideia em uma época, onde o entusiasmo pelas formas mais limitadas da acção prática aparece acompanhado pela propaganda em voga do oportunismo. Para a social-democracia russa em particular, a teoria assume importância ainda maior por três razões esquecidas com muita frequência, a saber: primeiro, nosso partido apenas começou a se constituir, a elaborar sua fisionomia, e está longe de ter acabado com as outras tendências do pensamento revolucionário que ameaçam desviar o movimento do caminho certo. Ao contrário, assistimos justamente nesses últimos tempos (como Axelrod já há muito havia predito aos “economistas”) ao recrudescimento das tendências revolucionárias não sociais-democratas. Nessas condições, um erro “sem importância”à primeira vista pode acarretar as mais deploráveis consequências, e é preciso ser míope para considerar inoportunas ou supérfluas as controvérsias de facção e a estrita delimitação dos matizes. Da consolidação deste ou daquele matiz pode depender o futuro da social-democracia russa por muitos e longos anos.

Segundo, o movimento social-democrata é, pela sua própria essência, internacional. Isso não significa somente que devemos combater o chauvinismo nacional. Significa, também que um movimento iniciado em um país jovem só pode ter êxito se assimilar a experiência dos outros países. Ora, para tanto não é suficiente apenas conhecer essa experiência, ou limitar-se a copiar as últimas resoluções. É preciso saber proceder à análise crítica dessa experiência e controlá-la por si próprio. Somente quando se constata o quanto se desenvolveu e se ramificou o movimento operário contemporâneo, pode-se compreender a reserva de forças teóricas e de experiência política (e revolucionária) necessárias para se realizar essa tarefa.

Terceiro, a social-democracia russa tem tarefas nacionais como nenhum outro partido socialista do mundo jamais o teve. Mais adiante, falaremos das obrigações políticas e da organização que nos impõe essa tarefa: liberar todo um povo do jugo da autocracia. No momento, apenas indicaremos que só um partido guiado por uma teoria de vanguarda é capaz de preencher o papel de combatente de vanguarda. E para se fazer uma ideia mais concreta do que isso significa, lembre-se o leitor dos predecessores da social-democracia russa, tais como Herzen, Bielínski, Tchernichévski e a brilhante plêiade de revolucionários de 1870-1880; pense na importância mundial de que a literatura russa atualmente se reveste; e, mas, basta!

Citaremos as observações, feitas por Engels em 1874, sobre a importância da teoria no movimento social-democrata. Engels; reconhecia na grande luta da social-democracia não apenas duas formas (política e econômica) - como se faz entre nós - mas três, colocando aluta teórica no mesmo plano. Suas recomendações ao movimento operário alemão, já vigorosa prática e politicamente, são tão instrutivas do ponto de vistados problemas e discussões atuais, que o leitor, esperamo-lo, não se importará que transcrevamos o longo trecho do prefácio ao livro Der deutsche Bauernkrieg, que há muito já se tornou uma raridade bibliográfica:

Os operários alemães apresentam duas vantagens essenciais sobre os demais operários da Europa. Primeiramente, pertencem, ao povo mais teórico da Europa; além disso, conservaram o senso teórico já quase completamente desaparecido nas classes por assim dizer “cultivadas” da Alemanha. Sem a filosofia alemã que o precedeu, notadamente a de Hegel, o socialismo alemão - o único socialismo científico que já existiu - não teria sido estabelecido. Sem o sentido teórico dos operários, estes não teriam jamais assimilado esse socialismo científico, como o fizeram. E o que prova esta imensa vantagem é, de um lado, a indiferença com respeito a toda teoria, uma das causas principais do pouco progresso do movimento operário inglês, apesar da excelente organização dos diferentes ofícios, e, de outro lado, a perturbação e a confusão provocadas pelo proudhonismo, em sua forma inicial, entre os franceses e os belgas, e, na sua forma caricaturada, que lhe deu Bakunin, entre os espanhóis e os italianos.

A segunda vantagem é que os alemães integraram tardiamente o movimento operário, tendo sido quase os últimos. Do mesmo modo que o socialismo alemão jamais se esquecerá de que foi erigido sobre os ombros de Saint-Simon, de Fourier de Owen, três homens que, apesar de toda a fantasia e a utopia de suas doutrinas, encontram-se entre os maiores cérebros de todos os tempos e se anteciparam genialmente a inumeráveis idéias, cuja exatidão presentemente demonstramos de maneira científica, também o movimento operário prático alemão jamais deve esquecer-se que desenvolveu sobre os ombros dos movimentos inglês e francês, que pôde simplesmente beneficiar-se de suas experiências adquiridas penosamente e evitar, no presente, seus erros, então na maioria inevitáveis. Sem o passado dos sindicatos ingleses e das lutas políticas dos franceses, sem o impulso gigantesco dado especialmente pela Comuna de Paris, onde estaríamos nós hoje?

É preciso reconhecer que os operários alemães souberam aproveitar as vantagens de sua situação, com rara inteligência. Pela primeira vez, desde que existe um movimento operário, a luta é conduzida em suas três direções- teórica, política e econômico-prática (resistência contra os capitalistas) - com tanto método e coesão. É neste ataque concêntrico, por assim dizer, que reside a força invencível do movimento alemão.

De um lado, em ramo de sua posição vantajosa; de outro, em decorrência das particularidades insulares do movimento inglês e da violenta repressão do movimento francês, os operários alemães, no momento, colocam-se na vanguarda da luta proletária. Não é possível prever durante quanto tempo os acontecimentos, lhes permitirão ocupar esse posto de honra.. Mas, enquanto o ocuparem, é de se esperar que cumprirão seu dever, como convém. Para tanto, deverão redobrar os esforços, em todos os domínios da luta e da agitação. Os dirigentes, em particular, deverão instruir-se cada vez mais sobre todas as questões teóricas, libertar-se cada vez mais da influência das frases tradicionais, pertencentes às concepções obsoletas do mundo, e jamais se esquecer que o socialismo, desde que se tornou uma ciência, exige ser tratado, isto é, estudado, como uma ciência. A tarefa consistirá, a seguir, em difundir com zelo cada vez maior entre as classes operárias, as concepções sempre mais claras, assim adquiridas, e em consolidar de forma cada vez mais poderosa a organização do partido e dos sindicatos...

...Se os operários alemães continuarem a agir assim, não digo que marcharão à frente do movimento - não é de interesse do movimento que os operários de uma única nação, em particular, marchem à frente -, mas ocuparão um lugar de honra na linha de combate; e estarão armados e prontos se provas difíceis e inesperadas, ou ainda grandes acontecimentos exigirem deles maior coragem, decisão e ação.

As palavras de Engels revelaram-se proféticas. Alguns anos mais tarde, os operários alemães foram inesperadamente submetidos à dura provação da lei de exceção contra os socialistas. E os operários alemães encontram-se de fato suficientemente preparados para sair vitoriosos.

O proletariado russo terá de sofrer provas ainda infinitamente mais duras, terá de combater um monstro perto do qual o da lei de exceção, em um país constitucional, parece um pigmeu. A história nos atribui agora uma tarefa imediata, a mais revolucionária de todas as tarefas imediatas do proletariado de qualquer país. A realização dessa tarefa, a destruição do baluarte mais poderoso, não somente da reação européia, mas também (podemos agora dizê-lo) da reação asiática, fará do proletariado russo avanguarda do proletariado revolucionário internacional. E temos o direito de esperar que obteremos este título honorário merecido já pelos nossos predecessores, os revolucionários de 1870-1880, se soubermos animar com o mesmo espírito de decisão e a mesma energia irredutível o nosso movimento, mil vezes mais amplo e mais profundo.


Notas:

(*) A propósito. É um fato quase único na história do socialismo moderno e extremamente consolador no seu gênero; pela primeira vez uma disputa entre tendências diferentes no seio do socialismo ultrapassa o quadro nacional para se tornar internacional. Anteriormente, as discussões entre lassalianos e eisenachianos, entre guesdistas e possibilistas, entre fabianos e sociais-democratas, entre narodovoltsy [partidários da Vontade do Povo] e sociais-democratas eram puramente nacionais, refletiam particularidades puramente nacionais, desenrolavam-se, por assim dizer, em planos diferentes. Atualmente (isto aparece hoje claramente) os fabianos ingleses, os ministerialistas franceses, os bernsteinianos alemães, os críticos russos formam todos uma única família, elogiam-se mutuamente, aprendem uns com os outros, e conduzem campanha comum contra o marxismo “dogmático”. Será que nessa primeira amálgama verdadeiramente internacional com o oportunismo socialista a social-democracia revolucionária internacional fortalecer-se-á suficientemente para acabar com a reação política que há tanto tempo prejudica a Europa? (retornar ao texto)

(1) A comparação entre as duas tendências do proletariado revolucionário (tendência revolucionária e tendência oportunista) e as duas tendências da burguesia revolucionária do século XVIII (a tendência jacobina - a “Montanha” - e a tendência girondina) foi feita no editorial do número 2 do Iskra (fevereiro de 1901). Plekhanov é o autor deste artigo. Falar do “jacobinismo” na social-democracia russa é ainda hoje o tema favorito dos “cadets”. Dos “bezzaglavtsy”, e dos mencheviques. Mas, como Plekhanov utilizou esta noção, pela primeira vez, contra a ala direita da social-democracia, hoje em dia prefere-se esquecer ou silenciar sobre o fato. (Nota do autor à edição russa de 1907. N. R.). (retornar ao texto)

(2) Quando Engels atacou Dühring, para quem se inclinavam muitos representantes da social-democracia alemã, as acusações de violência, de intolerância, de falta de camaradagem na polêmica ergueram-se contra ele, até mesmo em público, no congresso do partido. Most e seus companheiros propuseram (no congresso de 1877) de não mais publicar no Vorwärts os artigos de Engels por “não apresentarem interesse para agrande maioria dos leitores”; Vahlteich declarou, de sua parte, que a inclusão desses artigos prejudicara muito o Partido; que Dühring também prestara serviços à social-democracia: “Devemos utilizar todo o mundo no interesse do Partido, e se os professores discutem, o Vowärts não é arena para tais disputas”. (Vorwärts n.º. 65, 6 de junho de 1877). Como se vê, também esse é um exemplo de defesa da “liberdade de crítica”, exemplo sobre o qual fariam bem em refletir os nossos críticos legais e oportunistas ilegais, que tanto gostam de se referir aos alemães! (retornar ao texto)

(3) É preciso notar que, sobre a questão do bernsteinismo no Partido alemão, o Rabótcheie Dielo sempre se contentou em relatar pura e simplesmente os fatos,”abstendo-se” totalmente de uma apreciação própria. Ver, por exemplo, o número 2-3, p. 66, sobre o congresso de Stuttgart: todas as divergências se dirigem para a “tática” e se constata apenas que a grande maioria permanece fiel à tática revolucionária anterior. Ou o número 4-5, p. 25 e seguintes, simples repetição dos discursos no congresso de Hanôver, reproduzindo a resolução de Bebel a exposição e a crítica de Bernstein são novamente remetidas a um “artigo especial”. O curioso é que na página 33, no número 4-5, lê-se: “... Acepções, expostas por Bebel, contam com o apoio da grande maioria do congresso”, e um pouco mais adiante:”... David defendia as concepções de Bernstein... Em primeiro lugar, procurava mostrar que... Bernstein e seus amigos colocavam-se, apesar de tudo(sic) no campo da luta de classes”... Isto foi escrito em dezembro de 1899, e, em setembro de 1901, o Rabótcheie Dielo sem dúvida já perdeu a confiança na exatidão das afirmações de Bebel e retoma o ponto de vista de David como o seu próprio! (retornar ao texto)

(4) Alusão ao artigo de K. Touline contra Struve, artigo redigido com base na conferência intitulada: Influência do Marxismo Sobre a Literatura Burguesa. (retornar ao texto)

(5) O termo “economismo” foi utilizado entre aspas, da mesma forma que na tradução francesa, tendo em vista a intenção do Autor de ressaltar seu sentido irônico. (Nota da tradução brasileira). (retornar ao texto)

(6) Trata-se do Protesto dos 17 contra o Credo. O autor dessas linhas participou da redação desse protesto (fins de 1899). O protesto e o Credo foram impressos no exterior, na primavera de 1900. Sabe-se, agora, por um artigo da Senhora Kuskova (publicado no Byloie, creio eu) que foi ela a autora do Credo. E entre os “economistas” dessa época, no exterior, um papel marcante foi desempenhado por M. Prokopovitch. (retornar ao texto)

(7) Pelo que sabemos, a composição do Comitê de Kiev foi modificada posteriormente. (retornar ao texto)

(8) Esta ausência de coesão verdadeira no partido e de tradição de partido constitui, por si só, uma diferença fundamental entre a Rússia e a Alemanha, que deveria ter posto qualquer socialista de espírito sensato em guarda contra qualquer imitação cega. Aqui está uma amostra daquilo a que chegou a “liberdade de crítica” na Rússia. O critico russo, M. Bulgákov, faz esta observação ao crítico austríaco, Hertz: “Apesar de toda a independência de suas conclusões,Hertz, quanto a esse ponto (a cooperação), permanece aparentemente bastante ligado à opinião de seu partido e, embora em desacordo quanto aos detalhes, não se revolve a abandonar o princípio geral” (O Capitalismo e a Agricultura, t. 11, p. 287). Um súdito de um Estado politicamente escravizado, no qual 999/1000 da população estão corrompidos até a medulados ossos pelo servilismo político e não têm qualquer idéia sobre a honra e a coesão do partido, repreende à altura um cidadão de um Estado constitucional, por estar demasiado “ligado à opinião do partido”!Nada mais resta às nossas organizações ilegais do que põe-se a redigir resoluções sobre a liberdade de crítica.... (retornar ao texto)

Inclusão: 17/12/2002
Última correção: 21/12/2023