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Primeira Edição: Fourth International, Vol.II No.7, August 1941, pp.207-209.
Tradução: Liga Comunista.
HTML: Fernando A. S. Araújo
Quando Engels faleceu pacificamente em Londres, sob o peso dos anos, como patriarca reverenciado da social-democracia internacional, o século que terminava separava as revoluções burguesas das revoluções proletárias, o jacobinismo do bolchevismo. A transformação do mundo, anunciada por Marx, converter-se-ia na tarefa do momento, e os revolucionários conheceriam vicissitudes sem iguais. De fato, as cabeças dos três maiores dirigentes revolucionários depois de Engels receberam os golpes da reação. O historiador do futuro não deixará de ver aí uma das marcas características da nossa época. Também não deve deixar de notar a origem desses golpes. Lênin teve a cabeça perfurada pela bala da "Socialista Revolucionária" Fanny Kaplan(1). Rosa Luxemburgo teve a cabeça esmagada a golpes de coronhadas de fuzil pelos soldados do "Social Democrata" Noske(2). O crânio de Trotsky foi aberto pela picareta de um mercenário do "Comunista" Stálin.
Nossa época de crise, com seus saltos abruptos e seu ritmo febril, consome rapidamente aos homens e partidos. Aqueles que ontem representaram a revolução tornam-se hoje os instrumentos da mais obscura reação. Esta luta entre a direção do processo histórico e seu pesado grilhão, assumiu sua forma mais dramática no duelo entre Trotsky e Stálin, precisamente porque se desenrolou sob a base de um Estado operário já estabelecido. Trotsky – levado ao poder pela explosão revolucionária das massas, passou a ser perseguido e ameaçado, quando as derrotas do proletariado se sucederam converteu-se na encarnação mesma da revolução.
Ele foi auxiliado por uma compleição física impressionante. O que primeiro chamava atenção era sua testa, fenomenalmente sublime, vertical, e não acentuada pela calvície. Depois destacavam-se seus olhos, azuis e profundos, com um olhar forte e seguro de sua força. Durante a sua estadia na França, Lev Davidovich precisou viajar muitas vezes incógnito, para simplificar os problemas de sua segurança. Ele teve que raspar o cavanhaque e pentear o cabelo de lado. Porém, quando se tratava de sair de casa e se misturar com o público, eu sempre me preocupava: "Não, é realmente impossível, ... o primeiro transeunte vai reconhecê-lo, ele não pode mudar o seu olhar...”. Logo, quando Lev Davidovich começava a falar, era a sua boca o que chamava atenção. Se ele falasse em russo ou em uma língua estrangeira, seus lábios se esforçavam por pronunciar claramente as palavras. Ele ficava irritado ao ouvir aos outros falarem de forma confusa e precipitada e se impunha sempre a si mesmo uma elocução completamente compreensível e clara. Era unicamente quando conversava em russo com Natalia Ivanovna que seu modo de falar se tornava mais ligeiro e menos articulado, chegando a sussurrar. Em conversas com as visitas em seu escritório, as mãos, a princípio descansando sobre a borda da mesa de trabalho, logo começam a se mover em gestos amplos e firmes, ajudando aos lábios a moldar a expressão de seu pensamento. Seu rosto rodeado de cabelos, o porte de sua cabeça, e todo o equilíbrio do corpo eram fortes e imponentes. Sua estatura estava acima da média, o peito era forte e as costas eram amplas e largas, e em comparação com as costas, suas pernas pareciam um pouco frágeis. É, sem dúvida, mais fácil para alguém que lhe visitou por apenas um dia dizer o que viu no rosto de Trotsky do que para alguém que viveu vários anos e sob várias circunstâncias ao seu lado.
O que jamais vi nele foi qualquer expressão de vulgaridade. Tampouco havia nele qualquer traço de ingenuidade. Não lhe faltava uma doçura, originada de uma formidável inteligência sempre disposta a compreender tudo. O que se costumava ver era um entusiasmo juvenil que empregava em tudo que fazia, e ao mesmo tempo uma habilidade para animar aos outros a colaborarem com a tarefa. Quando se tratava de fustigar um adversário esta alegria rapidamente se transformava em ironia, mordaz e maliciosa, alternada com gestos de desprezo. Quando o inimigo era particularmente canalha, você poderia, por um momento, quase encontrar uma pitada de maldade. Mas retomava sua vivacidade rapidamente. "Nós os venceremos!", Ele repetia com orgulho. No isolamento da imigração, as circunstâncias mais dramáticas, em que vi Lev Davidovich foram seus conflitos com a polícia, ou incidentes com adversários de má fé. Nessas ocasiões, seu rosto se endurecia, e seus olhos faiscavam, como se neles, de repente, se concentrasse esta imensa força de vontade que só se podia avaliar pela obra de sua vida inteira. Então era óbvio para todos que nada, nada no mundo poderia fazê-lo ceder um centímetro.
Na vida cotidiana, essa força de vontade dirigia-se a uma rigorosa organização de seu trabalho. Tudo o que desviava sua atenção sem motivo o irritava muito: ele odiava conversas inúteis, visitas não anunciadas, contratempos ou atrasos nos compromissos. Tudo isto, seguramente, sem nenhum pedantismo. Se uma questão importante aparecesse, ele não hesitava um instante em modificar todos os seus planos, mas esta tinha que valer a pena. Se tivesse algum interesse pelo movimento usava seu tempo e sua energia de forma ilimitada, mas era igualmente contido quando o descuido, a leviandade ou a má organização alheia ameaçava desperdiçar sua energia e seu tempo. Ele economizava ao máximo seu tempo, a matéria mais preciosa da qual a vida é feita. Toda a sua vida pessoal era rigidamente organizada por esta qualidade que em inglês se chama “singleness of purpose”(3). Ele estabelecia uma hierarquia de tarefas e o que empreendia levava até o final.
Comumente, não trabalhava menos de 12 horas por dia, e às vezes, quando era necessário, muito mais. Ele permanecia à mesa o menor tempo possível, e depois de compartilhar suas refeições durante muitos anos eu não me lembro de jamais tê-lo visto prestar alguma atenção especial ao que comia ou bebia. "Comer, vestir-se, todas estas pequenas coisas miseráveis que temos que repetir todos os dias ...", ele me disse uma vez.
Ele só encontrava distração em uma grande atividade física. Uma simples caminhada quase não o relaxava. Ainda que ele caminhasse em silêncio, poderia se perceber que sua mente estava sempre trabalhando. De vez em quando perguntava: "Você respondeu a essa carta?" "Você pode me achar tal citação". Somente um exercício violento lhe acalmava. Na Turquia, este exercício foi a caça e sobretudo a pesca no alto mar, complexa e agitada, onde o corpo fazia um esforço ilimitado. Quando a pesca tinha sido boa, isto é, muito cansativa, ele retomava o trabalho com vigor redobrado. No México, onde a pesca era impossível, ele inventou a coleta de cactos enormes e pesados sob sol escaldante.
É claro que a questão da segurança criou suas obrigações. Durante os onze anos e meio de sua terceira emigração, foi apenas por alguns meses, em determinados momentos durante a sua estadia na França e na Noruega, que Lev Davidovich podia andar livremente, isto é, sem vigilância, no campo, ao redor de sua casa . Como regra, cada uma de suas saídas constituíam-se de pequenas operações militares. Era necessário tomar todas as providências com antecedência, e estabelecer com cuidado o itinerário. "Vocês me tratam como se eu fosse um objeto", ele disse algumas vezes, dissimulando em forma de brincadeira, uma certa impaciência que havia por trás deste comentário.
Ele exigia o mesmo espírito metódico no trabalho dos camaradas que o ajudavam. Quanto mais próximos fossem, menos ele se preocupava com formalidades. Exigia a precisão em tudo: uma carta sem data, um documento não assinado sempre o irritavam, como em geral qualquer desleixo, negligência ou descuido. Fazer bem feito o que se está fazendo, e fazê-lo até o final. Essa regra valia tanto para as pequenas tarefas do dia-a-dia como para o trabalho intelectual: conduzir os seus pensamentos até o fim, é uma expressão que, muitas vezes encontramos nos seus escritos. Ele sempre estava muito atento com a saúde daqueles que lhe eram próximos. A saúde é um capital revolucionário que não deve ser desperdiçado. Ele ficava irritado ao ver alguém ler sob pouca luz. É preciso arriscar a vida pela revolução sem hesitar, mas por que estragar seus olhos quando você pode ler confortavelmente e de forma inteligente?
Nas conversas com Lev Davidovich os visitantes ficavam impressionados principalmente com a sua capacidade de formular sobre uma situação até então desconhecida por ele. Ele era capaz de integrar a situação em sua perspectiva geral, e ao mesmo tempo sempre dar conselhos imediatos e concretos. Durante a sua terceira emigração, muitas vezes ele teve a oportunidade de conversar com visitantes de países que ele não estava diretamente familiarizado, poderiam ser países dos Balcãs ou da América Latina, os quais ele nem sempre sabia a língua, não acompanhava sua imprensa e nunca tinha tido qualquer interesse particular em seus problemas específicos. Primeiramente ele deixava o seu interlocutor falar, ocasionalmente anotando algumas notas breves sobre um pedaço de papel em frente ao interlocutor, às vezes pedindo alguns detalhes: "Quantos membros tem esse partido" "Não é este político um advogado?". Então ele falava, e organizava a massa de informações que tinha recebido. Logo distinguia os movimentos das diferentes classes e das diferentes camadas dentro dessas classes, e em seguida, vinculado a estes movimentos logo se revelava o interesse dos partidos, grupos e organizações, e o lugar e a ação dos personagens políticos, até sua profissão e características pessoais, relacionando-se logicamente no conjunto. O naturalista francês Cuvier era capaz de reconstituir todo um animal a partir de um só osso. Com seu vasto conhecimento das realidades sociais e políticas Trotsky poderia realizar um trabalho similar. Seu interlocutor ficava sempre maravilhado de ver quão profundamente ele havia sido capaz de penetrar na realidade do problema particular, e deixava o escritório de Trotsky conhecendo melhor seu próprio país.
A cada momento se sentia em Trotsky uma imensa experiência, não apenas gravada em sua memória, mas organizada, profunda e largamente meditada. Percebia-se também que a organização desta experiência era realizada em torno de princípios que haviam se tornado indestrutíveis. Apesar de Lev Davidovich odiar a rotina, embora ele estivesse sempre ansioso para descobrir novas tendências, a menor intenção de inovação no âmbito dos princípios fazia com que ele chamasse a atenção: "Você está querendo cortar a barba de Marx", era a expressão que ele costumava usar para todas estas tentativas de colocar o marxismo de acordo com a moda do momento, e ele não dissimulava seu desprezo por elas.
O estilo de Trotsky é universalmente admirado. É, sem dúvida, o estilo que melhor se pode comparar ao de Marx. No entanto, as sentenças de Trotsky são menores que as de Marx, em quem se observa, especialmente nas obras da juventude, uma riqueza de recursos acadêmicos. O estilo de Trotsky atinge seus objetivos por meios extremamente simples. Seu vocabulário, especialmente em seus escritos predominantemente políticos, é sempre bastante limitado. As frases são curtas, com poucas orações subordinadas. Sua força reside no fato de estarem solidamente articuladas, na maioria das vezes com oposições fortemente estabelecidas, mas sempre bem ponderadas. Estes métodos sóbrios dão a seu estilo um grande frescor, uma certa jovialidade. Trotsky em seus escritos é consideravelmente mais jovem do que Marx.
Trotsky sabia como tirar proveito da sintaxe russa, cujas inflexões permitem inverter a ordem das palavras dentro de uma frase, dando assim à expressão do pensamento uma força e uma ênfase difíceis de alcançar com os meios limitados das línguas ocidentais modernas. Difíceis de traduzir também. Lev Davidovich exigia uma fidelidade matemática de seus tradutores e, ao mesmo tempo, se rebelava contra as regras gramaticais que não permitiam na língua estrangeira expressar seu pensamento de forma tão concisa e direta. Comparado com o de Lênin, o estilo de Trotsky é superior, por uma larga margem, em sua clareza e elegância, sem perder a sua potência. As sentenças de Lênin, as vezes, tornam-se sobrecarregadas e desorganizam-se. Por vezes, parece que seu pensamento é maior que a expressão escrita. Trotsky certa vez disse que em Lênin poderia se descobrir um mujique(4), mas, elevado ao nível da genialidade.
Ainda que o pai de Lênin fosse um funcionário público provincial e o de Trotsky um agricultor, é em Trotsky onde se vê o cidadão urbano, ao contrário de Lênin, sem dúvida por causa de sua origem. Isso pode ser visto de imediato na diferença entre os estilos, sem qualquer tentativa de estabelecer uma oposição em outros aspectos dessas duas gigantes personalidades.
Quando Trotsky foi deportado para a Turquia, o passaporte que as autoridades soviéticas lhe deram discriminava como profissão: escritor. De fato, ele foi um grande escritor. Se a definição dos burocratas provoca risos é porque Trotsky foi muito mais do que um escritor. Ele escrevia com facilidade, sendo capaz de ditar várias horas sem interrupção. Depois voltava a ler e corrigir com cuidado o manuscrito. Para algumas de suas grandes obras, como a “História da Revolução Russa”, foram escritos antes do texto definitivo dois projetos preliminares, mas, na maioria dos casos, há apenas um projeto. Sua enorme produção literária, que compreende os livros, panfletos, inúmeros artigos, cartas, ligeiras declarações à imprensa e as notas de todos os tipos é, seguramente, desigual. Algumas partes são mais trabalhadas que outras, mas nenhuma frase é descuidada. Pode-se tomar aleatoriamente quaisquer cinco linhas desta formidável obra escrita e ali se reconhecerá sempre um Trotsky inimitável.
O volume também é impressionante, dando testemunho de uma força de vontade e uma capacidade de trabalho pouco comuns. Foram catalogados de Lênin trinta volumes como obras completas, além de 35 outros volumes de correspondências e notas diversas. Trotsky viveu sete anos a mais que Lênin, mas seus escritos, de seus grandes livros até suas breves notas pessoais, sem dúvida, compõem um volume três vezes maior. Nos onze anos e meio de sua terceira emigração ele produziu uma obra que honrosamente valeria pelo trabalho de uma vida inteira. Pode-se dizer que a caneta nunca abandonou sua mão, e que mão!
Trotsky colocou tudo de si em seus livros. O contato pessoal com o próprio homem não modificava, mas aprofundava e tornava mais precisa a impressão que surgia a partir de uma leitura de suas obras: paixão e razão, inteligência e vontade, todos realizados a um grau extremo, mas ao mesmo tempo misturando um no outro. Em tudo que Lev Davidovich fazia tinha-se a sensação de que ele tinha jogado todo o seu ser. Muitas vezes ele repetiu as palavras de Hegel: Nada de grande se faz neste mundo sem paixão. Ao mesmo tempo, ele só tinha desprezo para com os filisteus que criticavam o "fanatismo" dos revolucionários. Mas a inteligência sempre esteve presente, em perfeita harmonia com o ímpeto. Nisto não havia qualquer sombra de contradição: a vontade era invencível porque a razão enxergava muito além. Seria necessário citar Hegel mais uma vez: Der Wille ist eine besondere denkens weise des.(5)
Notas da tradução:
(1) Dora, comumente chamada Fanny Kaplan, atingiu a cabeça de Lênin com uma bala quando ele saía de uma reunião em uma fábrica no dia 30 de agosto de 1918. É possível que a seqüela causada por este tiro tenha sido a origem direta da morte prematura de Lênin. (retornar ao texto)
(2) Detida pelos Firecorps “Cuerpos-Francos” sob as ordens do ministro socialista da guerra, Gustavo Noske (1868-1946), Rosa Luxemburgo (1870-1919), dirigente do partido social democrata de Polônia, inspirou a “esquerda” alemã a fundar o grupo Spartacus e depois o Partido Comunista, foi assassinada a golpes de fuzil e seu cadáver foi jogado em um canal, só sendo descoberto meses mais tarde. (retornar ao texto)
(3) Singleness of purpose: singularidade de propósito. (retornar ao texto)
(4) Mujique: camponês russo. (retornar ao texto)
(5) Der Wille ist eine besondere denkens weise dês: A vontade é uma função particular de pensamento. (retornar ao texto)
Inclusão | 16/10/2011 |