Homens e Coisas do Partido Comunista

Jorge Amado


7. Mário Scott, o das locomotivas


capa

Não sei de nada tão triste e perverso quando um destes homens amargados, fracassados da literatura e da vida, possuídos por um complexo de inferioridade, cheios de inveja, que por todas essas condições terminam na traição trotskista. A ambição é o farol da sua vida, a inveja é o seu roteiro. Dão-me sempre a impressão que trazem espuma na boca, espuma de raiva e um dito mesquinho sobre qualquer pessoa decente. Quando encontrardes um homem assim não precisareis perguntar-lhe sua filiação política: se não for trotskista será com certeza fascista o que, no fundo, redunda na mesma suja condição de traidor do povo.

Foi um destes seres míseros que indagou de um companheiro nosso, num encontro casual de rua:

— Quem é esse Mário Scott que vocês inventaram?

Nada é mais doloroso para um trotskista que ver um operário à frente de um movimento de massas, de um partido, de um comitê. Os trotskistas odeiam os operários, odeiam esses homens fortes que marcham para a frente sem penetrar nas sendas dos desvios nascidos do delírio pequeno-burguês desse esquerdismo que é o melhor auxiliar do fascismo. O que falava para o nosso companheiro tentava encobrir com um sorriso de superioridade a raiva de saber dos aplausos com que o proletariado paulista saudara o novo Secretário Estadual.

O companheiro sorriu e disse:

— Nós não inventamos Mário Scott. Vá perguntar aos operários quem é ele e ficará sabendo.

Antes de tudo um operário. Essa palavra “operário” significa muita coisa. Tem um conteúdo seu, político. Quer dizer segurança, lealdade, consciência de classe, compreensão do momento, espírito de sacrifício, perspectiva ampla, espírito partidário. As vacilações são próprias da pequena-burguesia inconstante e facilmente desviável, facilmente sectária, facilmente amedrontável. Mário Scott é antes de tudo um operário e essa é a sua primeira qualidade de dirigente. Outra qualidade, não menos importante, é não ter ele perdido sua condição de operário na vida de militante, ter-se conservado um trabalhador.

Mário Scott, quadro feito na ilegalidade partidária, não perdeu jamais sua condição de operário. Nele o operário está em cada palavra, em cada ato, no seu jeitão meio desengonçado mas também na sua firmeza inabalável. Gosto de ouvir suas imagens nos discursos aos operários. Gostaria que meus confrades de literatura, principalmente aqueles que pensam que escrevem de maneira popular, também as ouvissem. Essas, sim, são imagens populares e justas, e o que Mário Scott diz todos eles entendem.

Seu riso é franco e sua figura grande e sã recorda uma árvore do campo. Este é um homem das locomotivas, seu lar é o bojo fumegantes das máquinas arrastando vagões, mas ele lembra a terra, suas mãos são de camponês, sua voz é lenta como a dos tabaréus do interior. Um homem da terra, preso a ela, às suas realidades. Nele a modéstia não chega a ser uma virtude, é-lhe inata, faz parte do seu ser como os dedos das mãos. Também a franqueza, essa franqueza de operário que nunca é ofensiva. Um homem grande, de gestos calmos, alegre e confiante.

Certo pintor moderno muito tempo simpatizante do Partido, ao qual nunca faltara com sua ajuda financeira, estava amedrontado ante as condições de legalidade. Tinha medo que os operários dirigentes do Partido fossem homens duros e pouco compreensivos, incapazes de imaginar e sentir os problemas dos artistas, suas peculiaridades, sua condição especial de criadores. Esses problemas apavoravam o pintor e ele estava em crise, sem saber como se comportar agora ante o Partido, em cujos propósitos humanos confiava e ao qual se sentia ligado pelo mesmo ideal de uma vida melhor, mas ao qual temia. Eu o aconselhei a conversar com Mário Scott:

— Vá ver direito como é um operário dirigente do Partido e com ele recebe seus problemas de pintor e artista...

No outro dia o pintor surgiu radiante no meu apartamento :

— Nunca vi ninguém tão humano e compreensivo...

Não é por acaso que os ferroviários perguntam por ele em cada estação de cada estrada de ferro deste país de São Paulo:

— E o Mário Scott, como vai?

Falam com entusiasmo. Ouvi essa pergunta em dezenas de lugares. Em Piracicaba e em Sorocaba, em Barretos e em Três Lagoas. Ele se fez homem junto à fumegante caldeira das máquinas. Fala sobre elas com ternura na voz. Foi foguista e maquinista e no leito das ferrovias se desenvolveu sua vida de militante. Tenho sua autobiografia aqui ao meu lado. Ele a escreveu, com sua letra desigual, quando foi eleito para o cargo de Secretário Estadual da região de São Paulo. Pode ser que alguém vos pergunte, como perguntaram ao nosso companheiro, quem é esse Mário Scott, do Partido Comunista. Ouvi o que ele diz sobre ele mesmo:

“Nasci numa fazenda de café onde meu pai era trabalhador rural. Lembro-me da geada de 1917. Eu tinha seis anos e estava já trabalhando ao lado de meu pai, com uma enxadinha. Meu pai teve que fazer uma fogueira para nela esquentarmos as ferramentas. Aos dez anos mudamo-nos para a cidade e entrei para o grupo escolar que frequentei durante seis meses. Foi esse todo o tempo de estudo que tive até ficar homem. Só muito depois, no Partido, voltei a estudar. Deixei o grupo para acompanhar meu pai que então era mascate, ganhando a vida de fazenda em fazenda. Nessas peregrinações pude observar a vida das famílias nas fazendas de café e comecei a sentir a diferença entre a vida do campo e a da cidade. Com 12 anos vim, com minha família, para Sorocaba. Entrei logo para a Fábrica de Tecidos Santa Rosália. Fiquei então conhecendo a vida dos operários. Em 1926 entrei para a Estrada de Ferro Sorocabana, como limpador de locomotivas. Eu era nesse tempo quase que o sustentáculo da família pois meu pai, sem profissão certa, ganhava muito pouco. De limpador de locomotivas passei a ajudante de foguista e nesta condição fui ao Rio de Janeiro buscar a locomotiva 606. Esta viagem foi-me muito útil. Foi quando compreendi que o Brasil não era somente Sorocabana e São Paulo e que era necessário pensar em todo o país e não apenas no lugar onde a gente vive.

Em 1927 minha mãe faleceu. Um tio meu enlouquecera e não nos foi possível conservá-lo num sanatório. Enquanto pudemos pagar sua estadia no hospital, os médicos cuidaram dele, mas quando meu pai foi a São Paulo dizer ao médico que já não podia com as despesas então o médico declarou que meu tio estava curado e deu-lhe um atestado. Já nós sustentávamos a família de meu tio. Este voltou para nossa casa em companhia de meu pai e, mal eles chegaram, compreendemos que a sua saúde não havia melhorado, o atestado do médico era até uma falta de humanidade. Mas, que fazer? Era uma casa pequena e nela, além de minha mãe e meu pai, residiam seis filhos menores. Meu pai recorreu a tudo para conseguir internar meu tio: aos chefes políticos que lhe pediam voto, aos médicos, e tudo sem resultado. Minha mãe trabalhava para a família toda. Um dia, quando voltava da casa de uma vizinha onde fora coser na máquina emprestada umas roupinhas para os filhos, encontrou na porta meu tio louco, com um revólver na mão. Disparou dois tiros. Fiquei com 16 anos e era o responsável pela família pois meu pai entregou-se ao desespero.

E assim fui vivendo, em meio às maiores dificuldades. Alguns anos depois casei-me e vieram para a minha companhia dois irmãos de minha esposa. Já meus irmãos maiores começavam então a trabalhar na fábrica de tecidos. Ao casar-me era foguista e minha companheira era justamente a mulher que eu necessitava; cheia de saúde e coragem, de uma solidariedade a toda prova.

Com a revolução de 30 pensamos que tudo ia melhorar. Eu e o meu amigo Aurélio Sabadi tomamos parte nas comemorações da vitória e estávamos certos que uma vida nova ia começar. Aderimos aos sindicatos que então surgiam mas logo notamos que muitas das coisas que se passavam nos sindicatos não eram feitas com o fim de auxiliar os trabalhadores. Apesar disso eu compreendia que o Sindicato era uma boa organização, um meio do trabalhador defender os seus direitos. A luta sindical despertou em mim o interesse pelas questões sociais. Entrei em contato com diversas organizações e conheci então uns quantos homens — que eram exatamente aqueles mais trabalhadores, bons esposos, bons pais e bons amigos — dos quais se dizia que eram comunistas. Conversei com eles e raciocinei: “Então eu também sou comunista pois sinto a vida como eles”. Finalmente em 1933 eu ingressei no Partido e pela primeira vez tomei parte numa reunião. Fiquei maravilhado com a maneira como aqueles homens se tratavam. Havia um respeito mútuo, a linguagem que ali se falava era a da verdade. Daí em diante abriu-se para mim uma enorme perspectiva. Compreendi muita coisa, aprendi muito. O Partido foi a escola que não tivera antes. Nele comecei a realmente me educar, a me fazer um homem de verdade. Nunca mais deixei de militar no meu Partido, em meio aos meus companheiros de trabalho.

Tenho cinco filhos e acredito que para eles a vida será melhor do que tem sido para mim. Acredito que o mundo marche para uma era de paz e de felicidade. E tudo que desejo, como operário e como militante do Partido, é contribuir com o meu esforço para a construção da unidade nacional do povo brasileiro, caminho para a democracia e o progresso do Brasil”.

Aí está Mário Scott. Esse homem chegado das locomotivas é uma das figuras mais populares do Partido. Todos gostam dele, do seu jeitão desengonçado, da sua voz mansa, e todos sentem que ele é um homem íntegro, desses que se nos assemelham a imagens da terra poderosa e fecunda. Todos gostam dele, mas, mais que todos, os ferroviários. Tenho andado nesses trens paulistas, nessas ferrovias, em cada vagão, os ferroviários perguntam:

— Como vai Mario Scott?

Sorriem e completam:

— Um abraço para ele. Diga-lhe que nós estamos firmes.

continua>>>


Inclusão 08/04/2014