MIA> Biblioteca> Neno Vasco > Novidades
Primeira Edição: A Lanterna, N.º 273, 30 de janeiro de 1915
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/os-ardores-belicos-dos-governantes/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Brito Camacho, chege dos republicanos «unionistas», tem feito reveelações que lançam uma clara luz sobre o modo como os governos decidem da paz e da guerra e negoceiam sem cerimónia a pele dos povos.
Verdadeiramente, não há revelações. Já muita gente dizia, à boca pequena, que a Inglaterra não fizera a Portugal pedido algum de intervenção e de remessa de tropas, vendo-se os ardentes guerristas bastantes desgostosos com isso.
O sr. Brito Camacho veio dar a este murmúrio a força e a publicidade da sua situação e do seu jornal, garantindo solenemente que, se a «Unidão Republicana» desfrutasse ou compartilhasse o poder, Portugal, de pleno acordo com a Inglaterra, pondo-se aliás à disposição dela, não teria de mandar tropas para os campos de batalha onde se batem milhões de homens.
A Grã Bretanha apenas disse ao seu pequeno aliado que se entretivesse com a defesa do seu próprio território e das suas colónias próprias, resguardando-lhe ela as costas marítimas; e o documento que foi pomposa e jubilosamente dado como um convite à participação de Portugal na guerra europeia não passou duma aceitação um tanto enfastiada de um oferecimento anterior.
Nos seus cálculos de milhões, o governo inglês tem certamente como quantidade desprezável o reduzido contingente de soldados portugueses; e as suas notas distinguem cuidadosamente entre o que foi pedido e o que insistentemente foi metido à cara – não se vá imaginar, como aliás já começou a dizer a imprensa alemã, que a Inglaterra se vê tão embaraçada e falha de forças que até já pede socorro aos mais fracos países…
Chegaremos a saber um dia que interesses de classe, de partido ou de particulares levam numerosos políticos dirigentes a tamanho empenho no envio de alguns milhares de pobres diabos para o matadouro – um crime, como diz o sr. Brito Camacho?
Estas coisas são rigorosos segredos diplomáticos, embora delas dependa a vida de tantos desgraçados, que não percebem patavina dessas manigâncias e com elas nada podem ganhar. O próprio «livro branco», que o sr. Brito Camacho reclama e que no fundo nada explicaria ao povo, é dado como impossível nessa ocasião… A famosa Razão de Estado é mais uma vez invocada. Mesmo alguns dos políticos adversos a uma espontânea participação de Portugal na guerra acham abusivas as revelações de Brito Camacho, embora este declare que procurou antes todos os meios de evitar o «crime» sem ter de fazer a sua campanha ruidosa…
Os diretamente interessados não têm o direito de saber como os governantes dispõem da sua pele – sua dos interessados, não dos governantes. Os ministros falam muito da necessidade de ir à guerra em defesa da pátria e da liberdade; mas em geral não são eles que vão: vão os outros. Um jornalista proclama: «O novo governo vem de um partido que não se liga com os outros, porque não aceitou a cobardia que eles lhe impunham e porque foi o primeiro a dizer: – a Vamos para a guerra!»
Mas aquele vamos, primeira pessoa do plural, não se refere ao jornalista nem ao seu partido. O mesmo jornalista, em resposta ao sr. Alpoim, que convidara os guerristas a alistarem-se como ele, já alegou que não ia por ter família a sustentar… Os outros nem respondem: limitam-se a troçar do gordo Alpoim e a caricaturar-lhe o gesto.
No entanto, o soldado moderno, além da técnica e da resistência física, necessita de um ideal, de uma grande paixãoÇ ninguém, pois, mais bem talhado para tão nobre papel do que os nossos guerristas, abarrotados de entusiasmo e capazes de compreender o alcance desta «guerra de libertação»…
Em vez disso, no melhor da festa, fazem-se substituir por pobres soldados à força. Falam de liberdade, de democracia – e mantêm nestes negócios as piores sobrevivências do regime absoluto e do feudalismo: a Razão de Estado, o servidão militar obrigatória!
Lisboa, 28 de dezembro de 1914.