A propósito duma entrevista

Neno Vasco

15 de novembro de 1914


Primeira Edição: jornal A Aurora – Porto, 15 de novembro de 1914

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/a-proposito-duma-entrevista/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O camarada Sebastião Eugénio foi entrevistado pela República sobre a conflagração europeia. Conhecemos Sebastião Eugénio e, embora nos pese discordar dele, sobretudo neste momento, sabemos que não nos levará a mal algumas observações acerca da sua opinião, que preferiríamos ter visto expressa na nossa pequena imprensa. O ponto capital da entrevista é o seguinte:

– Posta a questão nestes termos, eu acho que, neste momento, se deve abrir um parêntesis e, pondo a liberdade humana mais alta do que tudo, nós todos, os que a amamos e que sem ela somos esmagados, concorrer para a derrota das hostes do Kaiser. De resto é assim que pensam as grandes figuras do movimento operário de todas as nacionalidades. Veja por exemplo Kropotkine que ainda há dias o dizia numa carta a um amigo. E o velho agitador já há vinte anos pensava assim, sustentando que no caso de uma invasão alemã seria capaz de pegar numa arma.

«Ainda há poucos dias, na última expedição para África, partiu como voluntário, um amigo meu que segue em política os mesmos princípios que eu sigo.

«Quero portanto sinceramente a vitória dos aliados, que é a vitória da liberdade, o esmagamento da reação militar, capitalista e jesuítica.»

Nós, da nossa parte, achamos que a nossa tarefa deve continuar a ser a mesma. Não tendo podido evitar a catástrofe (como, aliás, pudemos anteriormente evitar outros desastres e derrotas menores), devemos como sempre prosseguir na nossa ação própria, trabalhar, por exemplo, como diz S. Eugénio noutro ponto da sua declaração, para a «organização operária, longe de afrouxar, adquirir novas energias, ter uma boa orientação» revolucionária e aproveitar os ensejos que porventura se apresentem.

Quanto às «grandes figuras», não nos fica lá muito bem o emprego desse argumento de autoridade, de valor muito relativo. Em todo o caso, o nosso amigo está mal informado; várias «grandes figuras», numerosos militantes conhecidos e estimados e mesmo a maioria dos anarquistas de todos os países não querem sair do seu papel específico de inimigos do Estado e do Capitalismo, exploradores, opressores e burladores das massas e fautores de chacinas internacionais. Citemos apenas um nome – o de Malatesta, cujo silêncio fora mal interpretado, o que o levou a escrever há dias a Luís Molinári (outro) uma carta a que pertencem estas passagens:

«Eu poderia ter-me simplesmente calado, porque me basta dizer-se uma pessoa anarquista para implicitamente afirmar a sua aversão pela guerra e por qualquer colaboração com os governos e burguesias, que, por escuros interesses e arcaicos atavismos, provocaram a cruel catástrofe em que está mergulhada a Europa.

«Se receberes esta carta, obsequiar-me-ás aproveitanto o primeiro ensejo para declarar que o meu silêncio é devido a circunstâncias pessoais e de modo nenhum a hesitações na condenação mais absoluta da guerra e duma participação qualquer dos que se dizem anarquistas. Logo que puder, desenvolverei as minhas ideias a tal respeito.»

Na própria França, há um grande número de dissidentes, sindicalistas e anarquistas; e os mesmos que adotaram uma atitude, que com maior comodidade se discutirá no fim da guerra, começaram já a fazer contra-vapor, reconhecendo certos erros e exageros e combatendo, apesar das dificuldades do momento, a reação patrioteira e clerical triunfante. Para prova os artigos de Alberto e Girard, que noutro lugar publicamos.

Agora, lá o ir para a África, para as colónias, combater o imperialismo… é que nos parece um pouco forte demais! Kropotkine pede apenas que se expulse o invasor do solo belga e francês, e não nos consta que a Bélgica e a França sejam na África do Sul.

O final do trecho acima transcrito revela a alma do nosso bom Sebastião Eugénio e explica a sua maneira de ver. O que é somente um mal menor – muito relativo na sua inferioridade, sobretudo se os revolucionários sociais abandonarem o seu ponto de vista e derem armas e argumentos ao inimigo de sempre, como C. Albert vai confessando – é considerado a vitória da liberdade, o esmagamento, nada menos, da reação militar, capitalista e jesuítica!

É aquele mesmo excessivo otimismo do generoso espírito de Kropotkine, aquele otimismo que tantas vezes o traiu nas suas profecias, na sua demasiada confiança na iniciativa e espontaneidade das massas, na sua velha conceção harmonista do comunismo – o comunismo assim a sair do solo como os cogumelos depois da chuva…

Um otimismo desses passa os limites que devemos fixar para que não desanimemos, mas não andemos tampouco a confiar a torto e a direito em forças… estranhas e a sair por isso do nosso caminho próprio.


Inclusão: 24/06/2021