O direito à instrução

Neno Vasco

Dezembro de 1911


Primeira Edição: revista A Sementeira, 1ª série, N.º 39, Dezembro de 1911.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-direito-a-instrucao/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Os estudantes da Universidade de Coimbra, discutindo a reforma dos estudos e reclamando a facilitação pecuniária dos cursos, curos e matrícula livres, abolição dos exames de estado, aprovaram uma moção da qual é interessante reter alguns considerados:

Considerado o decreto de 22 de março de 1911 – que a frequência regular da instrução superior demanda tal «sacrifício de tempo e dinheiro», que a constitui um privilegio de ricos e remediados, tornando-a inacessível, de facto, a muitos estudiosos com mérito e aptidões, mas desprovidos de recursos;

Considerando o mesmo decreto – que «um dos maiores deveres doestado democrático» é assegurar a todos os cidadãos, sem distinção de fortuna, a possibilidade de se elevar aos mais altos graus de cultura, quando disso sejam capazes, por forma que a democracia constitua, segundo a bela definição do imortal Pasteur, aquela forma de estado que permita a cada indivíduo produzir o máximo esforço e desenvolver, em toda a plenitude, a sua personalidade;

Considerando nós completamente destruídas estas afirmações pelas novas disposições que ainda mais dificultaram «materialmente» o acesso á instrução superior;

O conceito de Estado democrático com o dever de assegurar a todos o direito ou possibilidade de se elevarem aos mais altos graus de cultura e a ingénua definição pasteuriana de democracia valem bem a esperança do povo trabalhador no bem-estar económico e na igualdade sob o regime republicano, esperança que os políticos e os cândidos alimentam com cuidado, especialmente durante a oposição. Quando se proclamou a efémera republica, espanhola camponeses houve, sobretudo na Andaluzia, que julgaram chegada a hora da partilha de terras e deram começo de execução a essa medida, que não seria aliás uma solução eficaz e duradoira do problema social.

Os estudantes seguem a mesma trilha dos camponeses. Uns e outros ignoram ou esquecem que a democracia, forma politica do individualismo burguês, não pode garantir senão, quando muito, a teórica «igualdade perante a lei» e o direito abstrato e legal (não a possibilidade) aos mais altos graus de cultura e ao integral desenvolvimento da personalidade.

Singular ilusão!

Nós vivemos num país pobre, sem indústrias e sem trabalho, onde por isso mesmo as classes dirigente não têm feito um esforço sério para debelar o mal do analfabetismo. A falta de instrução é uma causa de atraso industrial, mas é mais ainda efeito do que causa. Onde quer que, por circunstâncias favoráveis, se haja introduzido uma indústria próspera, o analfabetismo tende a desaparecer, porque a produção moderna favorece, e até certo ponto determina e exige, o desenvolvimento da instrução e da educação técnica, ao mesmo tempo que proporciona aos mais habilitados situações relativamente compensadoras. Comparem-se com os outros os países industriais, e dentro de cada país, embora rotineiro (Espanha, Itália, etc.) as regiões industrializadas com as que o não são.

Entre nós o desenvolvimento da instrução não viria senão aumentar ainda mais o número dos aspirantes a empregos públicos e o proletariado intelectual, agravando o já avultado mal da burocracia e do parasitismo; e assim o acréscimo de embaraços, em tempo e dinheiro, postos à obtenção dum diploma qualquer, toma estranhamente o aspeto – contraditório como tantas outras coisas nesta contraditória sociedade – de uma conveniente medida de defesa social!

Imaginemo-nos, porém, em país rico.

A indústria acha-se em acelerado e continuo progresso e floresce a democracia.

Deixaria por isso a instrução superior de constituir um privilégio quase exclusivo de ricos e remediados e seria ela porventura acessível a todos os capazes?

Acaso maiores facilitações, na duração dos cursos e nas despesas, bastariam para que tivesse plena realidade a fórmula de Pasteur? É esse o único ou o principal obstáculo que se opõe ao rápido progresso da cultura?

Fazer a pergunta é responder-lhe. Em regime de privilégio económico, de apropriação individual dos meios de produção, o direito ao desenvolvimento integral não pode ser mais do que teórico, não garantido pelos meios de realização. O pobre faz até sacrifício mandando o filho menor à escola gratuita de primeiras letras, ainda que ali forneçam ao pequeno algum pão e vestuário. As próprias aptidões, que muitas vezes não se desenham logo na primeira idade escolar, não se mostram senão com meios adequados, fora do alcance das famílias pobres e pouco instruídas.

Mas admitamos muito mais. Admitamos que o Estado democrático se pôs em condições de cumprir o seu «grande dever» de assegurar a todos os cidadãos a possibilidade de treparem ao cume do saber, se para isso tiverem pernas, destruindo todos ou quase todos os estorvos – mera hipótese, já se vê.

Assim mesmo, persistindo a organização autoritária e capitalista, haveria a insuperável barreira da divisão, da separação hierárquica entre o trabalho manual, inferior, escravo e pesado, e o trabalho intelectual, superior, dirigente agradável e honroso. E como não são precisas grandes capacidades para o exercício das leves e lucrativas profissões liberais, burocráticas, literárias, cientificas, artísticas -medicina, advocacia, magistraturas diversas, ciências, professorado, engenharia, belas letras e belas artes, etc. – todos muito humanamente as seguiriam… e aí teríamos o Estado democrático capitalista a precisar de refrear novamente a sede de cultura, alongando e dificultando os cursos e elevando as propinas.

Só uma sociedade sem privilégios económicos e políticos, na qual tudo seja de todos e a riqueza social a administrem diretamente os interessados; na qual vigore de facto, não na lei, uma igualdade de condições, tendo todos assegurado o necessário, em troca do trabalho manual proporcionado as forças de cada um; na qual cada um, sem exceção, tendo executado com a cooperação de todos e o poderoso auxílio das maquinas a breve e aprazível tarefa diária, possa dedicar muitas horas a variadas e gratas ocupações e estudos, aliando assim utilmente o exercício muscular ao esforço mental, para maior saúde do corpo e do espírito, e trazendo para os seus estudos teóricos a sua habilidade e experiencia pratica e para o trabalho os seus conhecimento técnicos, científicos e artísticos; só essa sociedade socialista e anarquista poderá, segundo a fórmula de Pasteur, permitir a cada indivíduo produzir o seu máximo esforço e desenvolver, em toda a plenitude, a sua personalidade.


Inclusão: 24/06/2021