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Primeira Edição: AÇÃO DIRETA, ano 10 – N.º 104 (Rio de Janeiro, Março de 1956). Originalmente publicado no Despertar do Porto, de 3 de dezembro de 1903.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-dinheiro/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
“O dinheiro é a mola real desta vida”, diz-se; “o dinheiro abre todas as portas”, acrescenta-se. Tudo com ele se adquire: o pão e os livros, o vestuário e o saber, as consciências e os palácios, a arte e o calçado, o prazer e os eleitores, uma mobília e um noivo, o braço do operário e as carícias das mulheres — honras, proteções, fama, amizade, tudo!
E, ao mesmo tempo que se proclama, com um terror supersticioso, a omnipotência do dinheiro para a conquista das riquezas, reconhece-se com a alma dilacerada, que ele deixa sobre a vida um profundo sulco de desgosto, que ele derrama uma nódoa sobre todas as alegrias.
Pelo dinheiro, jovens mortificados de desejos, deixam passar tristemente a mocidade, e quando, enfim, conseguem apoderar-se da inebriante taça do amor, é com uma prega ao canto da boca que a levam aos lábios. Passou o tempo, e veio tarde o gozo, que só o dinheiro permite.
Quantas aspirações mortas! quantas vocações sufocadas, torcidas, desviadas! quanta obra perdida! Arte, Ciência, Filosofia, o Dinheiro é o vosso Inimigo!
Com uma moeda entre os dedos, um senhor faz consumir, numa fadiga bestial, durante horas e horas, dezenas de seres humanos, famintos de algumas rodelas de cobre.
O dinheiro! Disseram-no destinado a facilitar as trocas e ele tornou-se instrumento de triania: disseram-no capaz de determinar o valor, e útil para a economia, e isso significou dividir o trabalho em leve e pesado, agradável e fastidioso, nobre e ignóbil, útil e inútil, e isso permitiu a acumulação e deu-nos o avarento ! Acumular, pagar, pôr a juros, transmitir: eis o segredo da tirania!
“O dinheiro abre todas as portas”. O dinheiro dá-nos tudo — a terra, o próprio céu!” E o homem lança-se atrás do ídolo, atrás do bezerro de ouro, de olhos injetados de sangue, louco, cego, tropeçando, aos encontrões. E uns fazem-se avarentos, possessos da terrível loucura do “vil metal”, outros, os que o tiveram sem esforço, ignorando as lágrimas e o sangue com que está cunhado, põem-se a lançá-lo ao vento, num esbanjamento de forças, que — estranha contradição — se torna útil!
“O dinheiro abre todas as portas!” E os homens precipitam-se desvairados em sua perseguição, batendo-se, ferindo-se, odiando-se, e deixando ao lado, sem os ver, o amor, a paz e a alegria, e deixando ao lado, sem a ver, a vida toda!
Torna-se uma ideia fixa; praticam-se todas as infâmias, explora-se, rouba-se, assassina-se, desce-se ao fundo da terra, entra-se no antro das fábricas, executam-se todas as fainas do escravo, sempre com os olhos fixos nele. Para se conquistar isso que dizem ser a mola da vida, arruina-se a própria vida!
Nessa carreira ofegante — atrás de quê? — duma mentira: é a própria vida que os seres não vêem! A seu lado estendem-se vastos campos incultos para o pão, erguem-se montanhas de granitos para as casas, estende-se ferro para as máquinas! A natureza, sensual, rica, amorosa, abre os seus braços para o homem, solicita-o, convida-o: — “Aqui me tens! fecunda-me, sou tua! Serás rico, imensamente rico; livrar-te-ei da preocupação do dinheiro, porque no meu seio poderás sorver toda a vida, repartida entre a ciência, a filosofia, a arte e o trabalho ! Ama-me. Fecunda-me. Sou tua!”
Mas ele não ouve, não vê, não compreende, tão habituado está a repetir a si próprio que o dinheiro é tudo, que é com os olhos espantados, a boca rasgada numa expressão de pasmo, que ele te fixa, se tu o seguras por um braço e lhe gritas:
— Que procuras tu, louco? Em que consomes a vida estupidamente? Comes o dinheiro? O dinheiro veste-te?
Louco! Conquista a natureza e não o dinheiro. Dela obterás todas as riquezas, a abundância que buscas tem-na ela ao teu dispor; porque não lha arrancas? A abundância dá-te paz, harmonia e amor.
Vai com os outros homens, em livre acordo, à conquista do bem estar e de gozos, mas não corras atrás de uma quimera, lança-te nos braços da realidade; a Natureza, a boa amante. Porque tens fome, se ela te dá pão? Porque andas nú se ela te oferece o linho? Porque te fadigas tanto, porque te extenuas, se ela tem ferro para as tuas máquinas? Porque moras numa pocilga, se ela te dá a pedra ? A natureza não é de poucos, é de todos. E para que havia de ser de um impotente que a deixa estéril, se o seu seio fecundado pode a todos dar a vida?
Louco, livra-te da tirania do dinheiro e de quem a impõe. A mola da vida não é o dinheiro: hoje a vida está mal assente e daí o desequilíbrio. Deve assentar sobre o trabalho, que é o beijo que tu dás à natureza para a fecundar, e não essa pena de escravo que o dinheiro te causa, gerando o ódio. E a Natureza ajuda-te na tarefa com as forças do raio e do vapor, com os milhões de braços de ferro das suas minas. És imensamente rico! Porque te obstinas em viver como pobre! Abre os olhos para a vida que te rodeia!
De braços abertos, lábios ardentes, olhares voluptuosos, a Natureza oferece-se: A natureza é tua! Porque não gozas? Porque não a fecundas?