A Organização da Indústria e a Questão Agrária na República Soviética da Hungria

Eugéne Varga

Novembro de 1921


Fonte: Para a História do Socialismo. Original em http://marksizm.ucoz.ru/Jd/0Z16_MiS_2002_1-2_22.pdf. O presente artigo foi inicialmente publicado na revista russa Krásnaia Nov, 1921, n.° 2, pp. 72-93, e mais recentemente republicado na revista Markcism e Sovremennost, n.° 1-2 (22­23) de 2002, publicação fundada em 1995 pela União dos Comunistas da Ucrânia.
Tradução do russo: CN, 1.08.2013.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

Introdução

O sistema econômico da República Soviética da Hungria não se diferenciava substancialmente da organização económica da República Soviética da Rússia, apesar da fraca noção que tínhamos das instituições russas quando criámos a economia soviética na Hungria. Ao estudar as relações económicas russas vejo agora que as diferenças entre as condições russas e húngaras se baseavam essencialmente em factores políticos e históricos, o mais importante dos quais, na nossa opinião, foi a circunstância de a luta de classe do proletariado na Hungria não ter sido levada até ao fim. Apesar de a burguesia, tal como em geral as classes dominantes anteriores, se encontrar completamente ultrapassada, tendo perdido toda a autoridade devido às derrotas militares [na I Guerra Mundial (1914-1918)] e mesmo a confiança nas suas próprias forças, a influência que os socialistas de direita e a burocracia das organizações sindicais tinham sobre os operários continuava todavia a manifestar-se sem perder intensidade. É verdade que o partido comunista revolucionarizou as massas operárias, mas não possuía uma organização construída de uma forma sistemática. Quando os líderes da social-democracia e das organizações sindicais se aperceberam de que as massas se escapavam à sua direcção, em resultado da agitação do partido comunista, seguiram a anterior política oportunista.

Foram atrás dos operários e propuseram ao partido comunista a introdução conjunta do regime soviético. Fizeram-no num momento em que a burguesia, assustada com as exigências da Entente, não queria assumir a responsabilidade pela ruína do país e ofereceu o poder político aos líderes sociais-democratas da classe operária. E assim surgiu a República Soviética da Hungria sem que o partido comunista tivesse conseguido construir a sua organização à semelhança do partido russo; com a instauração do poder soviético até dissolveu algumas das suas mais importantes organizações e, fundindo-se com o partido social-democrata, fundou o Partido Socialista-Comunista. Deste modo, durante a construção da República Soviética da Hungria faltou precisamente aquele factor que desempenha um papel decisivo na Rússia: um partido comunista organizado.

Com a instauração da ditadura do proletariado, estas circunstâncias tiveram uma grande influência na constituição das organizações económicas. Dado que a burguesia esperava manter a integralidade territorial do país com a transição para o poder soviético, não houve sequer indícios de sabotagem, que tão ampla difusão teve na Rússia; todos os funcionários, engenheiros, técnicos e pessoal diplomático mantiveram-se nos seus postos, todos se auto-intitulavam comunistas. Até os elementos mais reaccionários não abandonaram os seus lugares e só com medidas coercivas era possível afastá-los das funções que desempenhavam. Por isso é uma evidência que a luta contra a burocracia não podia ser travada de forma tão implacável como na Rússia, onde a burocracia ofereceu uma resistência aberta ao poder soviético. Em consequência disto todo o sistema económico da República Soviética da Hungria teve um carácter muito mais burocrático do que na Rússia.

A pequena dimensão do país e o estado bastante satisfatório dos meios de transporte tiveram igualmente uma influência em todo o sistema de organização económica. Num país onde se chega facilmente à região mais longínqua num dia de comboio é inútil criar tantas organizações económicas locais como as que existem na Rússia. Deste modo, tornava-se possível uma maior centralização de toda a vida económica. A circunstância de a instauração da república soviética ter ocorrido não em resultado de uma luta revolucionária aberta fez com que a visão política não se sobrepusesse à visão económica de um modo tão decisivo como aconteceu na Rússia. Pode-se dizer que a construção do sistema económico na Hungria se realizou de um modo mais racional e organizado do que na Rússia, e com muita frequência em detrimento de objectivos políticos.

I. A socialização das instituições financeiras

A República Soviética da Hungria iniciou a expropriação de todas as instituições financeiras. Os bancos de Budapeste foram ocupados pelos guardas vermelhos logo na primeira manhã; expulsámos os directores dos bancos capitalistas e designámos como comissários financeiros pessoas que estavam próximas do proletariado, ligadas aos meios organizados dos empregados da banca. Na direcção de cada banco foram colocados de um a cinco destes comissários. Decretámos que ninguém podia receber do banco mais do que duas mil coroas(1) por mês; os depósitos e cofres tinham sido congelados por decreto ainda pelo anterior governo de Mihály Károlyi.(2) O governo soviético ocupou igualmente a Agência Principal de Budapeste do Banco Austro-Húngaro, e passados alguns dias todas as instituições da província ficaram também sob controlo dos sovietes. Tudo isto se passou sem sobressaltos e sem resistência.

Com a expropriação das instituições financeiras alcançou-se um duplo objectivo.

Por um lado, retirou-se a possibilidade à burguesia de dispor de grandes recursos monetários, levantando os seus capitais dos bancos, e de os utilizar em maquinações contra-revolucionárias. Por outro, permitiu garantir o pagamento de salários e os gastos do Estado e precaver interrupções na produção por falta de recursos financeiros. Por isso decretámos que todas as instituições financeiras ligadas a empresas industriais ficavam obrigadas a conceder os recursos monetários necessários ao pagamento dos salários e à aquisição de matérias-primas, mediante cheque assinado pelo comité de fábrica e pelo comissário de produção. Desta forma conseguimos que os operários recebessem o salário semanal sem atrasos logo no sábado, isto apesar de a proclamação da ditadura do proletariado ter ocorrido na sexta-feira.

Nas fábricas que não estavam ligadas a bancos, os meios financeiros para pagar salários eram disponibilizados por conta do Estado pela Direcção Central das Instituições Financeiras.

No período da ditadura do proletariado demos passos para eliminar o infindável número de instituições financeiras. Extinguimos as minúsculas caixas de poupança na província e os bancos mais pequenos de Budapeste. O nosso plano consistia em conservar apenas três instituições: O Banco Austro-Húngaro, a Direcção Central das Instituições Financeiras, que devia desenvolver as operações do Estado, e Associação Central de Crédito Agrícola, que devia tratar dos assuntos financeiros do campesinato. A extinção e fusão de bancos avançou com grande dificuldade, uma vez que os empregados das instituições financeiras receavam perder os seus postos e serem obrigados a procuram outra ocupação.

II. A socialização da indústria

Passados alguns dias da proclamação da ditadura do proletariado [21 de Março], em 26 de Março de 1919 foi publicado o decreto n.° 9 do governo soviético sobre a passagem de todas as grandes empresas para a propriedade social, sem indemnizações aos antigos proprietários. Consideravam-se grandes empresas as que tinham mais de 20 operários ou as que, tendo menos de 20 operários, eram assim classificadas devido ao seu alto nível tecnológico. Esta directiva foi imediatamente aplicada em todo o país, embora a expropriação da maioria das empresas tivesse já sido feita ainda antes da publicação do respectivo decreto. A gestão das empresas socializadas tornou-se tarefa dos comités operários que haviam sido eleitos em muitos locais após o golpe de Estado de Károlyi. Os comités operários eram compostos por entre três a 11 membros, eleitos por votação directa dos operários das empresas ocupadas. Os operários de cada empresa tinham o direito de revocar em qualquer momento todo o comité ou alguns dos seus membros e delegar outros para os seus lugares.

A tarefa mais importante do comité operário era proteger a empresa da pilhagem ou sabotagem, assegurar a continuidade da produção, manter a disciplina laboral e tomar decisões sobre diversos assuntos relacionados com os operários.

Foi claro desde o início que não se podia entregar a gestão da produção unicamente a comités constituídos desta forma. Os comités operários estavam sob uma dependência demasiado grande dos operários das respectivas empresas, precisamente porque eram eleitos por estes últimos e seu mandato podia ser anulado em qualquer momento. Ora uma vez que o comité operário significava a libertação do trabalho físico, bem como influência e poder, os seus membros procuravam manter-se em funções o mais tempo possível. Consequentemente eram propensos a agir em qualquer circunstância em benefício dos operários da sua empresa. Isto era válido para tanto nas questões da disciplina laboral, como da produtividade ou dos salários. Por isso era necessário garantir que em cada empresa estivesse alguém, em representação de todo o proletariado, com a missão de defender os interesses de todo o proletariado, em contraposição com os interesses dos operários de uma determinada empresa, e acompanhar a gestão da empresa. Os comissários de produção, nomeados pelo Conselho da Economia Nacional ou pelo Comissariado do Povo da Produção Social, cumpriam este objectivo. As suas tarefas consistiam concretamente em gerir a empresa, aplicar as directivas das instâncias superiores, manter a disciplina laboral e a produtividade do trabalho. Estas tarefas deviam ser executadas conjuntamente e com o acordo do comité operário. Quando as opiniões não coincidiam, a disposição do comissário devia ser cumprida até a questão ser dirimida nas instâncias superiores. A escolha dos comissários de produção era de grande dificuldade. Em suma, o comissário de produção devia substituir o antigo director principal; deste modo tinha a competência técnica, organizativa e disciplinar. Ora é evidente para qualquer um que, naquelas circunstâncias, em que os métodos da velha disciplina de classe já não eram apropriados, se tornava extremamente difícil encontrar pessoas que correspondessem a todos estes requisitos. Os operários que tinham influência nas massas eram quem melhor podia manter a disciplina; mas havia muito poucos com aptidão para assegurar a direcção técnica. Por isso, em muitas empresas, engenheiros que já antes participavam no movimento operário e que gozavam da confiança dos operários tornaram-se comissários de produção. Noutras empresas estas funções foram entregues a operários altamente qualificados. Em muitos locais, ao lado dos comissários de produção, escolhidos entre os operários, trabalhavam técnicos especialistas ou, inversamente, ao lado de um especialista nomeado para a direcção trabalhava um operário na qualidade de instância fiscalizadora.

III. A organização da produção industrial

A expropriação das empresas é uma condição indispensável à construção da produção socialista. Mas só por si a expropriação não proporciona o resultado que os operários esperam da produção social: nomeadamente a elevação do bem-estar. Para alcançar isso é preciso ampliar a produção, o que por sua vez exige que se ponha termo à anarquia na produção e se introduza a produção ordenada e planificada. Na Hungria foram criadas as seguintes instituições para preparar este processo:

Centros de produção. A sua organização assemelhava-se nos traços gerais à dos «centros» russos. Isto significava que todas as empresas de cada ramo industrial eram agrupadas sob uma direcção central comum. Tal é a estrutura dos consórcios constituídos no capitalismo. O pequeno território do país e o facto de nos primeiros tempos não haver uma sabotagem forte permitiam subordinar todas as empresas de cada ramo industrial a uma direcção central; verificou-se ser inútil separar as grandes das pequenas empresas, subordinando as primeiras directamente ao centro e as segundas aos sovietes locais da Economia Nacional, como acontecia na Rússia. Os centros de produção ocupavam-se da organização técnica da produção, do fornecimento de matérias-primas, da distribuição dos operários, de eventuais fusões de empresas, etc. Como é evidente, quatro meses e meio de ditadura do proletariado não foi suficientes para completar a rede de centros de produção; na maioria dos ramos industriais foram apenas elaborados planos.

Direcções de recursos materiais. Nos primeiros tempos de qualquer ditadura do proletariado sente-se uma grande insuficiência de diversos recursos materiais. Isto é uma consequência natural do facto de o governo soviético ter de ceder à velha ideologia ossificada da classe operária, segundo a qual o novo poder deveria aumentar as remunerações dos operários, em particular das amplas camadas de operários com poucas qualificações. E dado que as amplas massas do proletariado passam a dispor de mais dinheiro, têm tendência para comprar todo o tipo de mercadorias. Por seu lado, a burguesia, face à desvalorização da moeda, procura também comprar mercadorias a qualquer preço. Por isso, antes de mais, é preciso garantir que os bens materiais — não só aqueles que se destinam directamente ao consumo (sobre a distribuição destes falaremos mais à frente), mas também os que servem de matérias-primas ou semi-fabricados para subsequente transformação — cheguem ao processo de produção por um caminho rigorosamente controlado de distribuição sistemática. Com este fim, criámos diferentes direcções de recursos materiais: de carvão, madeiras, mobiliário, etc., etc.

A distribuição racional dos recursos materiais visava garantir a continuidade da produção, antes de mais, nas empresas que dispunham dos melhores equipamentos técnicos, onde o trabalho era por isso mais produtivo. A distribuição criteriosa dos recursos materiais tornava-se particularmente importante dada a existência da pequena indústria. Inicialmente, as competências dos centros de produção e das direcções de recursos materiais não estavam suficientemente delimitadas; algumas instituições eram em simultâneo centros de produção e direcções de recursos materiais. No entanto, já se manifestava uma forte tendência para uma separação nítida entre a gestão da produção, que entrava nas competências dos centros de produção, e a gestão de recursos materiais, que cabia às referidas direcções. Inicialmente, também na Rússia não havia uma divisão entre a produção e a distribuição de produtos. Hoje estas duas funções já estão separadas uma da outra.

No período inicial, antes da criação dos centros de produção, a direcção da produção recaía em grande parte sobre o Comissariado da Indústria. Mas na sequência da criação dos centros de produção e das direcções dos recursos materiais, a competência deste comissariado foi-se estreitando cada vez mais, no sentido de se concentrar na direcção superior da produção.

Tanto as direcções de recursos materiais como os centros de produção funcionavam sob a direcção dos correspondentes conselhos. Cada direcção de recursos materiais era acompanhada por um conselho para a distribuição de recursos materiais, cujos membros eram eleitos nas organizações sindicais dos sectores que fabricavam um determinado tipo de produtos.

Isto era necessário não só para assegurar uma distribuição correcta dos materiais, mas também para que as organizações sindicais, juntamente com as direcções de recursos, assumissem a responsabilidade perante a classe operária quando era preciso retirar recursos a uma dada empresa, forçando-a assim a parar a produção. Conselhos similares deveriam também acompanhar o trabalho de todos os centros de produção.

Nalguns distritos foram criados conselhos [sovietes] locais de Economia Nacional. Os seus membros eram camaradas delegados pelos conselhos políticos, sindicatos, associações de produtores agrícolas, associações de consumo, etc. Cada Conselho Distrital da Economia Nacional deveria dar origem a uma Direcção Económica Distrital, cuja tarefa seria a de dirigir a vida económica do distrito, com base nas directivas dos órgãos superiores, e fiscalizar o cumprimento diligente e a aplicação das suas disposições.

Conselho da Economia Nacional. Era constituído por 60 membros, nomeadamente por representantes dos maiores sindicatos, dos conselhos distritais de economia nacional (um por cada), de associações de produtores e consumidores, e tinha o seu Presidium. Neste Conselho eram debatidas todas as questões de importância fundamental. Uma instituição análoga existiu inicialmente na Rússia, mas depois perdeu importância e foi extinta. Na Hungria, este Conselho realizou um trabalho sério e útil; para a resolução das questões mais importantes designava comissões cujos trabalhos foram reunidos numa série de monografias.

Presidium do Conselho da Economia Nacional. No começo, os comissariados da economia funcionavam autonomamente à semelhança dos antigos ministérios: O Comissariado do Povo da Agricultura equivalia ao antigo Ministério da Agricultura, o mesmo sucedendo com o das Finanças, do Comércio, etc. Com o decorrer do tempo constatou-se que a autonomia dos comissariados do povo no domínio da economia não se justificava, uma vez que no afã do trabalho neste tempo de transição, os comissários do povo propunham com frequência decretos contraditórios e emitiam ordens que se contradiziam.

Por isso, o Congresso dos Sovietes decidiu fundir todos os comissariados na área da economia num único órgão - o Conselho da Economia Nacional, de modo que os comissários do povo se tornaram apenas dirigentes dos principais departamentos deste Conselho. Todas as directivas econômicas passaram a ser emitidas unicamente pelo Conselho da Economia Nacional. Deste modo, a centralização da vida económica na Hungria foi muito mais longe do que na Rússia, onde, na realidade, não existe um Conselho da Economia Nacional, uma vez que o órgão assim designado dirige apenas assuntos da produção industrial, continuando a existir os comissariados do povo da Agricultura, Finanças, Vias de Comunicação e Assuntos Sociais como organizações independentes, exteriores ao Conselho da Economia Nacional.

O Conselho da Economia Nacional da Hungria compunha-se dos seguintes comissariados que se tornaram nos seus principais departamentos:

  1. Departamento da Economia Material;
  2. Departamento do Comércio Externo;
  3. Departamento da Agricultura;
  4. Departamento das Finanças;
  5. Departamento dos Produtos Alimentares;
  6. Departamento das Vias De Comunicação;
  7. Departamento da Produção Social;
  8. Departamento do Controlo;
  9. Departamento das Obras de Construção;
  10. Departamento dos Assuntos Sociais.

Tinha quatro presidentes eleitos pelo Congresso dos Sovietes, que eram em simultâneo comissários e membros do Governo. Três deles dirigiam igualmente um dos principais departamentos da Economia. Os responsáveis pelos restantes principais departamentos integravam o Presidium, mas não eram comissários do povo nem membros do Governo. O Presidium do Conselho da Economia Nacional era a mais alta instância em todos os assuntos económicos do país. Tinha poder para decidir autonomamente todos os assuntos; as questões com implicações políticas eram previamente debatidas pelo Governo. O Presidium respondia pelas suas resoluções perante o Congresso dos Sovietes ou perante o seu Comité Executivo.

Além do Conselho da Economia Nacional, o Presidium contava ainda na sua actividade com a colaboração de outros dois conselhos:

Conselho da Agricultura. Devido à grande importância da agricultura, criámos ainda um conselho específico com cerca de 40 membros, que eram representantes das organizações de operários agrícolas, operários da indústria florestal, empregados administrativos, de associações de produtores agrícolas e de outras organizações de operários de ramos da indústria estreitamente ligados à agricultura. Incluía ainda representantes de associações de consumo e de especialistas agrónomos. Como este conselho foi criado no último período de existência da ditadura do proletariado não há muito a dizer sobre a sua actividade.

Conselho Técnico Superior. Era composto pelos melhores técnicos especialistas do país e por vários representantes das federações sindicais. A sua tarefa consistia em resolver questões técnicas. Os seus membros oriundos da burguesia recebiam uma remuneração mensal, bem como tinham direito a uma gratificação especial pela resolução de problemas concretos.

IV. A questão agrária

A questão agrária é a mais difícil de resolver pela ditadura do proletariado. É uma questão complexa tanto no plano económico como no plano político. No plano económico, porque o abastecimento do proletariado urbano com os bens indispensáveis à sobrevivência depende da justa resolução da questão agrária; no plano político, porque nos países da Europa Central e de Leste nenhum governo do proletariado urbano pode resistir muito tempo a uma resistência pertinaz da população rural. Por conseguinte é necessário conduzir uma política que, do ponto de vista económico, não trave a produção, mas que a estimule na medida do possível, de modo a abastecer as cidades com alimentos. Uma política que, ao mesmo tempo, seja capaz de criar apoio no campo ao regime proletário. Era pois preciso conduzir uma política que atraísse para o lado da ditadura do proletariado pelo menos os operários agrícolas e os camponeses pobres, e que, no mínimo, neutralizasse as camadas médias dos camponeses na luta política.

Na primeira fase da ditadura do proletariado, o abastecimento do exército e da cidade com víveres constitui a tarefa mais premente e difícil. Por isso, no início de toda a ditadura do proletariado é preciso antes de mais garantir que não há interrupções na produção. A paragem da indústria provoca um grande prejuízo, enquanto uma paragem da agricultura engendra consequências fatais. Os trabalhos agrícolas, devido às condições técnico-produtivas naturais, têm um carácter sazonal: aquilo não é feito num determinado momento não pode ser remediado no mesmo ano agrícola. E uma vez que a agricultura produz os bens mais essenciais à vida, é necessário antes de mais garantir a continuidade da produção.

Esta necessidade tem uma grande influência no carácter da expropriação da propriedade fundiária. Por princípio toda a propriedade fundiária deve ser expropriada, tal como todos os meios de produção, apesar de, até certas dimensões, a propriedade da terra não representar um meio de exploração do trabalho, mas a base natural de existência através do trabalho. Mas se nos abstrairmos deste aspecto fundamental do problema, é claro que, na prática, definir a dimensão mínima da propriedade que deve ser sujeita a expropriação é tão difícil na agricultura como na indústria. Isto é dificultado por considerações políticas: não se pode transformar milhões de pequenos camponeses em adversários e empurrá-los para o campo da contra-revolução. Isto é dificultado também por considerações de organização económica: o proletariado não dispõe da quantidade necessária de partidários conscientes para poder prescindir de imediato de milhões de agricultores que gerem as suas explorações. Isto é tanto mais real que cada erro nesta matéria coloca em perigo o abastecimento da cidade.

Tal como na indústria não se pode aqui estabelecer uma fronteira rígida para a expropriação. Isto depende antes de mais da distribuição da propriedade fundiária e da estratificação de classe da população agrícola, bem como da ideologia desta. Quanto maior foi a parte do latifúndio no total da área agrícola, quanto mais proletários houver na agricultura totalmente privados de terra, quanto mais agudizadas estiverem as contradições de classe entre os latifundiários e os operários agrícolas, tanto mais solidamente se poderá instaurar a ditadura do proletariado no campo, tanto mais poderá avançar a expropriação. Inversamente, quanto mais uniforme for a distribuição da propriedade fundiária, menor será consequentemente o número de verdadeiros operários, menos favorável será a situação para o domínio do proletariado, mais prudente deverá por isso ser a expropriação. De passagem noto que o revisionismo social-democrata e o bolchevismo divergem acentuadamente na questão agrária. Para a política democrática burguesa, a ampla difusão do latifúndio é sinónimo de política agrícola feudal reaccionária, de carestia dos meios de existência. Daqui decorrem agudas contradições de classe que são um terreno favorável à revolução proletária. O predomínio da pequena propriedade agrícola significa democracia, contradições de classe no campo pouco agudizadas — um terreno desfavorável para uma verdadeira revolução proletária. Por isso, os revisionistas são a favor do parcelamento dos grandes domínios, os comunistas, pelo contrário, são favoráveis à sua manutenção.(3)

Como é sabido, na Hungria, a distribuição da propriedade fundiária é muito desigual. Em 1916 as propriedades com mais de 100 joches(4) (cerca de 43 hectares) representavam 35 por cento da superfície total arável. A percentagem de superfície ocupada pelos grandes latifúndios era ainda maior. Na parte governada pelo poder soviético, que não estava sob ocupação do inimigo, esta relação era ainda mais desigual.

Assim, na Hungria, a camada de operários agrícolas totalmente privados de terra era constituída por cerca de um milhão de indivíduos.

Se excluirmos a Roménia e a Irlanda, em nenhum outro país encontramos um número tão elevado de trabalhadores rurais como nas regiões da velha Hungria, povoadas pelos magiares;(5) aqui vemos operários agrícolas que não possuem o mais pequeno pedaço de terra e nem sequer laboram para si próprios terras arrendadas. À semelhança dos proletários industriais sem abrigo passam a vida a deslocar-se de terra em terra.

Nestas circunstâncias era possível agir energicamente no que toca à expropriação da terra. Segundo o decreto de 3 de Abril, todas as grandes e médias propriedades fundiárias, incluindo bens semoventes [gado] e apeiros [alfaias e outros instrumentos], obrigações e hipotecas, foram declaradas expropriadas sem qualquer indemnização. Em si, este decreto não definiu uma dimensão mínima não sujeita a expropriação. Mas um outro decreto, que estabeleceu o regime de expropriação da terra, fixou como dimensão mínima a superfície de 100 joches (cerca de 43 hectares).(6)

Deste modo, muitos milhões de hectares de terra, aproximadamente 50 por cento de toda a superfície fundiária ou cerca de 30 a 40 por cento da terra arável, passaram juridicamente para a posse das classes trabalhadoras. Do ponto de vista económico, na Hungria a expropriação decorreu de forma muito mais sistemática do que na Rússia. A propriedade fundiária não foi propriamente expropriada na Rússia. Na realidade, ela foi dividida sem qualquer plano pelos camponeses entre si, ao mesmo tempo que os bens existentes foram pilhados e repartidos. Isto não foi uma expropriação mas uma partilha revolucionária. As consequências nefastas deste facto foram notavelmente mostradas por Lénine no seu discurso «A luta pelo pão».(7)

Na Hungria a expropriação do grande latifúndio efectuou-se sem partilha, assim os bens dos domínios permaneceram intactos e a produção não foi interrompida.

Isto não foi de modo algum mérito dos quadros soviéticos húngaros, explica-se pelas condições históricas completamente diferentes em que a expropriação se realizou na Rússia e na Hungria. Na Rússia, os camponeses tomaram parte na revolução, aliás sob o comando de camadas abastadas. Por isso, a revolução resolveu a questão agrária de modo correspondente. Os camponeses dividiram a terra e repartiram os meios de produção, sendo que a parte maior coube não aos camponeses pobres mas precisamente às camadas abastadas. Na Hungria não houve uma revolução proletária no sentido próprio do termo. Numa noite, o poder passou para as mãos dos proletários, digamos, legalmente. No campo, em geral, o movimento revolucionário era insignificante, mas não houve resistência armada. Por isso, juridicamente, a expropriação podia ser feita sem obstáculos e as grandes explorações foram conservadas. Na Rússia procura-se agora organizar grandes empresas na agricultura. Desde 1918 que o governo soviético envida grandes esforços para conservar as grandes empresas agrícolas sob a forma de explorações soviéticas, artéis e comunas, apesar da resistência dos camponeses.

Sublinhamos a palavra «juridicamente» porque é preciso reconhecer abertamente que, na maioria dos casos, a expropriação apenas foi efectuada juridicamente, já que do ponto de vista social a situação pouco se alterou. A população em geral não tinha uma ideia clara do que significava a expropriação.

Como se realizou a expropriação?

Devido à preocupação de não colocar a colheita em perigo, os antigos empregados dos domínios foram mantidos nos seus lugares e geriam como antes as empresas, só que agora por conta do Estado. Em muitos casos, os antigos proprietários continuaram como administradores dos respectivos domínios expropriados. Aqui adoptou-se o mesmo método que foi amplamente utilizado na Rússia no que respeita à expropriação das grandes empresas industriais. Mas, enquanto na Rússia os comités das empresas industriais iniciaram imediatamente a sua actividade estabelecendo de facto o controlo operário, na Hungria, a organização dos comités nos grandes latifúndios expropriados nunca passou do papel em grande parte dos casos. E mesmo que o latifundiário tenha ficado na qualidade de funcionário do Estado, no plano social nada mudou. O latifundiário permanecia na sua casa senhorial, continuava a deslocar-se na sua quadriga e obrigava os operários, como antes, a trata-lo por «senhor». A única alteração consistia em que já não podia dispor dos seus bens e devia cumprir as instruções do respectivo centro de produção. Mas os operários agrícolas tinham uma percepção muito reduzida de tudo isto; para eles a importância da revolução social resumia-se ao facto de receberem um salário sensivelmente mais elevado do que antes.

Todas as inovações sociais foram adiadas para o Outono, isto é, para o período em que teriam um impacto menor na produção.

Se por um lado este tipo de acção não deu os resultados económicos esperados, por outro foi politicamente arriscado, uma vez que impediu o alastramento da revolução social aos operários agrícolas e adiou a adesão do proletariado rural à revolução. Apenas uma pequena parte do proletariado rural compreendeu a importância da revolução e sacrificou a sua vida à luta travada pelo Exército Vermelho. No entanto, um profundo abalo político antes da colheita seria evidentemente uma iniciativa muito audaciosa e perigosa. Se os operários industriais da Hungria, no momento da proclamação da ditadura do proletariado, não estavam suficientemente maduros para dirigir as empresas industriais, muito menos o estavam os operários agrícolas. Não tinham qualquer formação económica e política; um em cada dois era analfabeto; o seu desejo de transformar a terra em propriedade privada própria mostrava que não eram comunistas, nem sequer sociais-democratas. Antes da revolução, os grandes latifundiários utilizaram todos os meios repressivos do poder de Estado que tinham nas mãos, para impedir a agitação política entre os operários agrícolas. Esta matéria-prima, este material humano não preparado, tinha de ser tratado com muito cuidado para não pôr em perigo os resultados do ano agrícola. A produção agrícola não foi interrompida mas pagamos um preço elevado pela renúncia à agitação política das amplas massas do proletariado agrícola.

A organização das empresas agrícolas expropriadas estava pensada do seguinte modo.

Em cada domínio deviam ser organizadas cooperativas. As cooperativas de um determinado território seriam reunidas sob uma direcção única comum. Todas as cooperativas de produção ficariam subordinadas à Direcção Central de Cooperativas Agrícolas de Produção que era tutelada directamente pelo Conselho Superior da Economia Nacional. A forma da cooperativa foi adoptada devido ao atraso social dos operários agrícolas. Se tivéssemos declarado simplesmente os grandes latifúndios como propriedade do Estado, as reivindicações salariais seriam ilimitadas e a intensidade do trabalho cairia para o mínimo. Em contrapartida, a política que adoptámos dava-nos a possibilidade de incentivar a disciplina e a intensidade do trabalho, uma vez que todo o rendimento do domínio pertencia aos operários. Em certa medida isto era também uma forma de satisfazer o anseio dos operários agrícolas a acederam à propriedade da terra. Isto também pareceu acertado do ponto de vista político porque nos permitia paralisar a propaganda contra-revolucionária, que afirmava que os operários agrícolas apenas tinham mudado de senhor, que em vez de criados do «nobre senhor conde» se tinham tornado em «criados do proletariado urbano». No plano material esta concessão tinha um efeito reduzido, dado que a contabilidade de todos os domínios estava centralizada. Era nossa intenção, após uma suficiente difusão da instrução no campo, declararmos os latifúndios expropriados como propriedade do Estado e os operários como empregados do Estado, tal como os operários industriais.(8)

A gestão económica de cada domínio foi organizada à semelhança de tinha sido feito nas fábricas.

O dirigente da produção, correspondente ao comissário de produção, passou a ser o administrador do domínio nomeado pelo Estado. Os membros da cooperativa de produção eram trabalhadores permanentes, assalariados rurais que recebiam um pagamento anual e operários livres que se comprometiam a trabalhar no domínio um número mínimo de dias (120 dias). Os membros da cooperativa elegiam o comité de produção com funções semelhantes aos comités das grandes empresas industriais. Todavia, dado o baixo nível de desenvolvimento dos operários agrícolas e a correspondente ideologia conservadora, o administrador tinha um autoridade muito, que, em geral, prevalecia sobre os comités de produção, os quais, aliás, em muitos lugares não nunca chegaram a ser eleitos. Por isso, os comités agrícolas tiveram apenas uma existência formal. O início de um verdadeiro trabalho de organização estava adiado para o Outono. Não se devia perturbar o normal desenvolvimento dos trabalhos de Verão, que eram tão importantes para o abastecimento alimentar da população. Apesar disso também na agricultura surgiram fricções entre operários e a administração, semelhantes às verificadas nas fábricas, e a sua eliminação apresentava grandes dificuldades.

Nos domínios expropriados iniciou-se logo o trabalho de organização do abastecimento do proletariado urbano, uma vez que não se podia contar com segurança que os camponeses continuassem a fornecer produtos às cidades. Foi feito tudo o que era possível para aumentar a produção nos domínios expropriados. Os materiais auxiliares que existiam em quantidades insuficientes, como o carvão, a gasolina, adubos e meios de produção (máquinas, charruas e alfaias) eram distribuídos prioritariamente aos grandes domínios expropriados. Havia um plano para organizar produções hortícolas de alta intensidade em grandes domínios situados perto da capital e das grandes cidades. Nos arredores de Budapeste, logo no primeiro mês da ditadura, iniciou-se a organização de várias explorações hortícolas de muito grande dimensão no território do antigo hipódromo. Outras iniciativas deveriam ser lançadas no Outono.

Em muitos domínios foram construídos caminhos rurais, utilizando-se materiais militares armazenados. As vacas leiteiras de domínios longínquos foram concentradas em explorações leiteiras próximas das estações de caminhos-de-ferro, de modo a poder-se abastecer de leite a capital e outras cidades. Os operários e empregados libertados das empresas que produziam artigos de luxo e de outros ramos da economia deveriam ser instalados em domínios expropriados para aí terem uma ocupação produtiva saudável e elevarem o nível intelectual dos operários agrícolas, contribuindo por essa via para o aumento da sua produtividade. Nas grandes explorações hortícolas atrás referidas trabalhavam centenas de antigos funcionários do Estado e outros membros da camada dos «senhores», onde revelavam empenho e boa disposição. Em resumo, foi elaborado um plano bem pensado que deveria num curto espaço de tempo elevar a produtividade dos grandes domínios expropriados, os quais abrangiam 40 a 50 por cento de toda a superfície agrícola, de modo a permitir o abastecimento mínimo da população urbana e eliminar o monopólio dos camponeses sobre os produtos alimentares. O maior obstáculo à concretização deste plano foram os dirigentes dos sindicatos de operários agrícolas. Hostis à ditadura, revelaram falta de visão e ficaram cristalizados na sua rotina tradicional; incitavam os operários a apresentar reivindicações tão desmesuradas que todo o produto da agricultura ficaria na sua posse nada restando para a população urbana. Esta dificuldade poderia ter sido resolvida mediante um trabalho inteligente de agitação.

Todos os grandes domínios expropriados sem excepção ficaram subordinados à direcção económica central do Estado. Discutiu-se a conveniência de comunalizar (municipalizar) algumas grandes explorações para elevar a produtividade, com a ajuda dos operários e do controlo local. Também os operários industriais de certas grandes empresas propuseram que lhes fossem atribuídas grandes explorações agrícolas para cultivo próprio em horário pós-laboral. No entanto, por muito tentadoras que essas propostas parecessem, nós mantivemos uma posição contrária de princípio. Ante a tendência geral para o particularismo, que é característica de toda a época revolucionária, tínhamos de estar alerta, já que tal solução paralisaria a direcção centralizada das explorações que produziam víveres.

Passamos agora à questão particular do campesinato que mantinha a posse privada de terra. As esperanças optimistas de Lárine (citadas por Kaustki no seu trabalho A Questão Agrária) de que os camponeses, atraídos pelo exemplo das grandes empresas estatais, renunciariam voluntariamente à propriedade privada, são na nossa opinião utópicas. Na Rússia, onde sob a influência da propriedade comunitária da terra, a chamada «mir»,(9) se terão eventualmente mantido no campesinato alguns vestígios de uma ideologia próxima do comunismo, pode haver alguma hipótese de isso acontecer. Mas nos países onde a propriedade privada da terra existe desde há muito e onde a ideologia egoísta do proprietário está amplamente enraizada entre os camponeses, não se pode sequer pensar em renúncia voluntária à propriedade privada por parte da actual geração. Qualquer regime proletário deverá, na nossa opinião, ter em conta este facto.

Assim, como fazer com o campesinato?

Esta questão está estreitamente ligada com o problema do abastecimento. Na Hungria metade da terra foi expropriada pois estava ocupada pelos grandes domínios. E como se pensou que graças a isto o proletariado industrial tinha garantido, pelo menos, uma alimentação frugal, pudemos adoptar uma posição expectante relativamente à questão do campesinato. A tarefa que se nos colocava era, por via das instituições de ensino, estimular os camponeses a melhorar as suas explorações, aumentar as suas necessidade e desta forma evitar que regressassem à exploração doméstica fechada. Pretendíamos obter a produção excedentária por via pacífica, através da compra e da troca de produtos. Medidas mais decididas seriam necessárias se os camponeses ricos começassem a entravar sistematicamente a venda e o escoamento dos seus excedentes por motivos políticos. Nestes casos não há qualquer outra solução que não seja a expropriação da terra: as requisições não resolvem o problema porque provocam a redução da produção. Mas, devido à sua fragmentação em parcelas, que impede na maior parte dos casos a criação de grandes explorações, estas propriedades só podem ser geridas por órgãos locais. Com este fim seria necessário criar organizações proletárias firmes do ponto de vista político e económico. As explorações camponesas expropriadas deveriam ser entregues, em regime de renda natural, para cultivo colectivo, a pequenas comunas de produção compostas por operários agrícolas e controladas pelo soviete local. Pensámos em pequenas comunas porque, presentemente, em terras dispersas e com os instrumentos dos camponeses apenas se pode ter pequenas explorações.

Mas para que isto fosse possível era preciso realizar primeiro um trabalho difícil: arrancar os proletários do campo à influência ideológica dos camponeses ricos, introduzir a ideia da luta de classes no campo, despertar o sentimento de solidariedade entre operários agrícolas e o proletariado urbano. Esta é uma tarefa invulgarmente difícil. Na Hungria teria sido mais fácil resolver este problema, uma vez que no campo existe uma acentuada diferenciação de classe entre os grandes e pequenos camponeses e entre o próprio campesinato há diferenças patrimoniais muito grandes. Mas naqueles países onde não há uma grande estratificação entre camponeses ricos e pobres do campo, devido a uma distribuição uniforme da terra, a questão não pode ser resolvida daquela maneira. Nestes casos é preciso mudar completamente a ideologia camponesa.

Para tal é antes de mais necessário atrair para o lado da ditadura do proletariado o sector do ensino. É também possível enviar para o campo operários industriais comunistas, ainda ligados às suas aldeias natais, como agitadores e dirigentes dos sovietes agrícolas.

O regime proletário ganharia, por esta via, vários representantes permanentes de confiança em cada aldeia, capazes de controlar qualquer movimento camponês contra- revolucionário; com a sua colaboração e utilizando a imprensa, brochuras, sessões de esclarecimento e o ensino podia-se começar a educação ideológica do campo. Em face das inevitáveis dificuldades alimentares nas cidades, será sempre fácil mobilizar para esta tarefa um número suficiente de operários. É um trabalho difícil e meticuloso, mas terá de ser feito, se não queremos a guerra civil entre a cidade e o campo.

V. A socialização do comércio

Servindo-se da experiência russa, o poder soviético na Hungria, logo após a passagem do poder para as suas mãos, encerrou todas as grandes empresas comerciais e instituições que não vendiam artigos de primeira necessidade. Permaneceram abertas apenas as lojas de produtos alimentares, que já anteriormente só distribuíam os mais importantes bens alimentares através do sistema de senhas de racionamento. Depois foram reabertas empresas artesanais e lojas de material de escritório e livrarias.

A expropriação do grande comércio foi efectuada sem qualquer indemnização. As mercadorias encontradas foram entregues às correspondentes direcções de materiais. As empresas ficaram sob o controlo de comissários nomeados entre os empregados do comércio.

A súbita interrupção do comércio atingiu os especuladores e, sobretudo, deixou descontente a burguesia que, vendo o poder de compra a aumentar, açambarcaria de boa vontade todo o tipo de mercadorias.

Mas precisamente porque no início da ditadura do proletariado, na Hungria como em qualquer outro país, em consequência do aumento dos salários, o poder de compra das massas era incomparavelmente maior do que a quantidade de mercadorias armazenadas ou produzidas pela indústria em queda, era preciso assegurar uma distribuição sistemática das mercadorias que se obtinham com grande esforço: roupa branca, vestuário, calçado, moveis. Mas isto só se pode fazer mediante a eliminação do comércio livre e através de organizações estatais de distribuição dos produtos, como aconteceu na Rússia. Na Hungria, a constituição destes organismos estatais decorreu lentamente e por isso houve um grande atraso na distribuição das mercadorias. Isto poderia ter sido rapidamente corrigido com o aumento do número de cooperativas e pontos estatais de distribuição.

VI. Os resultados da nova organização

É óbvio para qualquer pessoa que os primeiros meses da ditadura do proletariado não poderiam proporcionar o aumento do bem-estar que ingenuamente esperavam aqueles que tinham uma ideia pouco clara da essência da ditadura do proletariado. É certo que a ditadura do proletariado eliminou os rendimentos dos ricos e impediu que estes continuassem a viver no luxo e abundância, enquanto os operários viviam na necessidade, mas a expropriação das riquezas e rendimentos dos ricos não significa que o bem-estar das massas operárias aumenta imediatamente. Para elevar o nível de vida dos trabalhadores é preciso maior quantidade de víveres, mais combustíveis, mais vestuário, mais móveis e mais alojamentos. De tudo isto, os palácios expropriados aos ricos apenas poderão satisfazer numa medida insignificante as necessidades de alojamento e de móveis. Em contrapartida, os ricos não nos podem dar mais víveres e mais combustíveis, uma vez que as reservas que eventualmente tenham são totalmente insignificantes em comparação com as enormes necessidades dos trabalhadores.

A satisfação mais ampla das necessidades só é possível mediante o aumento da produção. Precisamos de produzir mais bens para poderemos consumir mais. A organização racional da produção tem como finalidade, em primeiro lugar, produzir apenas aqueles produtos de que as massas operárias têm necessidade, em segundo lugar, produzir maior quantidade destes produtos. Mas é necessário um intervalo de tempo bastante grande para que se tornem evidentes as vantagens da nova organização da produção. As empresas que antes produziam artigos de luxo para os ricos devem ser convertidas para a produção de artigos de amplo consumo. Isto exige algum tempo.

A produção de víveres por motivos naturais só poder ser aumentada no melhor dos casos uma vez por cada ano, mas na maioria dos casos isso só acontece depois de passados muitos anos. Deste modo, está completamente excluída a hipótese de a instauração da ditadura do proletariado poder traduzir-se num aumento súbito do bem-estar. Cada comunista consciente deve ter isto bem presente.

No início da ditadura do proletariado, o aumento do consumo é ainda impossibilitado pelo facto de a produção não só não crescer, mas ter necessariamente que cair. A produção cai antes de mais em consequência do enfraquecimento da disciplina laboral. Na sociedade capitalista, os exploradores só conseguem manter a disciplina através de meios de coerção de classe. Isto significa que põem na rua e condenam à fome os operários que não cumprem a disciplina e cujo trabalho não tem a produtividade que lhes assegura o lucro. Os supervisores e capatazes zelam para que o operário trabalhe efectivamente todo o tempo que está ao serviço do empregador.

Os sistemas de trabalho à peça, de prémios e o taylorismo foram concebidos para garantir a prestação zelosa de trabalho ao empregador. Estas formas de manutenção da disciplina laboral e da produtividade já tinham deixado de ser aplicadas antes da instauração da ditadura do proletariado. A revolução social significa o derrubamento do domínio de classe até então existente e da disciplina de classe. E é óbvio que as massas operárias precisam de algum tempo para ver que o fim da disciplina de classe não deve traduzir-se no fim da disciplina laboral, que é necessário substituir a velha disciplina coerciva de classe por uma nova disciplina laboral voluntária, a qual tornará possível o aumento da produção. Os elementos menos conscientes da classe operária demoram algum tempo a compreender estas relações complexas. Por isso, no primeiro período de toda a ditadura do proletariado assiste-se a um enfraquecimento da disciplina laboral e, por conseguinte, a uma queda da produção. Na Hungria estes fenómenos foram particularmente amplificados pela abolição do sistema de pagamento à peça e pela introdução generalizada da jornada de oito horas de trabalho.

A produtividade baixou fortemente também devido à luta política, ao grande interesse que esta suscitou, ao despertar da classe operária para a política, à criação de batalhões de operários nas fábricas, à mobilização dos operários com instrução militar para o Exército Vermelho e, mais tarde, por força do bloqueio imposto pela Entente à Hungria soviética. De modo que a produtividade caiu significativamente e a melhoria do nível de vida estava fora de questão.

No entanto, logo no segundo período da ditadura do proletariado cessaram as interrupções da produção provocadas pelo enfraquecimento da disciplina laboral. E foi por iniciativa dos próprios operários que as coisas começaram a melhorar. Primeiro, em certas fábricas e, mais tarde, na base de um decreto conjunto das organizações sindicais e do Conselho da Economia Nacional, desenvolveu-se todo o país uma nova atitude em relação à disciplina laboral. Esta nova atitude correspondia às novas relações sociais. O principal papel nesta mudança coube à influência da classe operária sobre a opinião pública. Um operário indisciplinado que esquecesse os seus deveres era sancionado com uma repreensão pelo comité de fábrica, o seu nome era colocado no quadro negro e era censurado pelos restantes operários da empresa. Aplicavam-se também outras medidas punitivas como descontos no vencimento, mudança de local de trabalho, exclusão da empresa e mesmo do sindicato. Em muitos locais os próprios operários exigiram o restabelecimento do trabalho à peça, isto é, a remuneração de acordo com a produtividade de cada um.

A remuneração em função da produtividade não é compatível com um verdadeiro regime económico comunista. Não é justo que uma pessoa débil, inapta ou doente tenha um rendimento inferior ao de um operário forte, capaz e saudável. Mas não se pode esquecer que a presente geração foi inteiramente educada no espírito capitalista e considera justo que aquele que, por quaisquer motivos, trabalha mais e produz mais, receba mais. No período da ditadura do proletariado na Hungria vimos muitos exemplos instrutivos disto. Juntámos três fábricas de material ferroviário na Budapest-Waizner-strasse que deram origem à primeira fábrica na Hungria de máquinas agrícolas. Quando começou a funcionar verificou-se que os operários de uma fábrica produziam o dobro dos operários das outras fábricas, sendo que todos ganhavam à hora. Então, os operários da fábrica mais produtiva exigiram um aumento correspondente do vencimento, caso contrário não estariam dispostos a produzir mais do que as fábricas menos produtivas. Isto significa que, com o tipo de pensamento capitalista dos actuais operários, o sistema de pagamento à hora faz com que a produtividade dos que trabalham pior determine o nível geral da produtividade. Por isso, na Rússia e também na Hungria foi necessário reintroduzir o sistema remuneração em função da produtividade. Esta necessidade mantém-se enquanto a geração de operários educados no espírito comunista não compreender que cada um deve ser o mais produtivo possível para servir um fim comum; que uma pessoa forte e capaz deve produzir mais pela mesma remuneração que o seu irmão débil e doente.

Os conflitos entre os operários e os directores técnicos especialistas também prejudicavam a produção.

Na economia capitalista, os especialistas, directores engenheiros, cumprem uma tarefa dupla nas fábricas: por um lado vigiam os aspectos técnicos e o processo de produção, por outro, fazem contas com os operários, controlam a sua produtividade, etc., ou seja, representam os interesses dos patrões contra os operários. No momento em que se torna classe dominante, o proletariado revela neste assunto a mesma concepção falsa que na questão da disciplina laboral. Os operários não conseguiam distinguir a actual direcção técnica dos especialistas da sua anterior actividade ao serviço dos capitalistas. Como antes, em muitos casos, odiavam o pessoal técnico, que continuavam a ver como representantes do capital; os conflitos nas fábricas tornaram-se habituais e isto, naturalmente, fez com que os técnicos trabalhassem de má vontade. O que levantava mais problemas era o facto de o pessoal técnico e administrativo ter uma jornada de trabalho mais curta e desfrutarem de melhores condições de trabalho. Os operários exigiam condições iguais de trabalho em todos os domínios. Ainda não viam aquilo que os russos já tinham compreendido, designadamente, que o Estado proletário, na presente etapa da revolução, é obrigado a proporcionar aos especialistas burgueses melhores condições de trabalho do que aos membros da classe dominante, precisamente porque os primeiros são especialistas oriundos dos meios burgueses.

Obviamente que, no início, a nova organização também cometeu erros. A classe operária e os sovietes operários locais não compreendiam com frequência a essência da expropriação. Pensavam que as empresas expropriadas se tornavam propriedade dos respectivos operários ou dos habitantes de uma determinada região e que passariam a produzir apenas para eles.

Muitas vezes era difícil conseguir que os operários ou os sovietes locais compreendesse que cada empresa é património de toda a classe operária e que a sua produção não pode destinar-se unicamente aos habitantes de uma localidade ou de uma região, mas à população de todo o país. Deste modo, surgiram certas dificuldades em concertar interesses locais e centrais. Uma centralização desmesurada conduz ao surgimento de uma burocracia e impede o eventual aproveitamento de especificidades locais; pelo contrário, uma autonomia excessiva dos poderes locais dificulta o abastecimento e distribuição por parte do Estado. A via justa está entre estes dois extremos.

Pouco tempo após o início do bloqueio sentiram-se logo as suas consequências nefastas. Ao analisarmos esta questão não podemos misturar as condições russas com as condições húngaras. A Rússia é um país vasto, rico em recursos naturais, que até ao final de 1917 foi fornecido generosamente pela Entente. A Hungria, pelo contrário, no momento da instauração da ditadura do proletariado já levava quatro anos de bloqueio, juntamente com a Áustria e a Alemanha. Além disso, todo o território do país não atinge a dimensão de uma gubérnia russa, e a sua economia estava interligada com a economia da Áustria. Com um território que mal atingia os 150 mil quilômetros quadrados, é natural que os efeitos do boicote da Entente se fizeram sentir muito mais intensamente do que no vasto e rico território da Rússia. O sobredimensionamento de algumas instituições, a inexperiência dos operários nelas colocados e a sabotagem silenciosa dos especialistas, que começava a revelar-se crescentemente, fizeram com que, nos primeiros meses, os novos órgãos não funcionassem com a agilidade e rapidez que desejaríamos e proporcionou ricas oportunidades ao criticismo mesquinho dos sociais-democratas, que não compreendiam em absoluto o significado da ditadura do proletariado. Incapazes de compreender o sentido dos acontecimentos, peroravam sobre a nova burocracia, a queda da produção, a penúria de mercadorias provocada artificialmente.

A sua crítica era néscia e mesquinha. No entanto é verdade que o enfraquecimento da disciplina laboral, a queda da produtividade, a efervescência política, a necessidade de travar uma guerra revolucionária, o esgotamento das reservas e o novo bloqueio severo levaram à queda da produtividade do país e, em consequência, o nível de vida dos operários não só não melhorou como se deteriorou ainda mais, em particular no que se refere aos operários industriais das cidades.

O aumento dos salários decretado pela ditadura do proletariado aplicou-se não só aos operários urbanos mas também aos trabalhadores rurais. Os últimos recebiam uma parte importante do salário em produtos alimentares. Isto permitiu-lhes consumir mais alimentos do que antes, o que representou uma melhoria efectiva do seu nível de vida. Mas é evidente que quanto mais produtos consumiam os operários agrícolas menos restavam para os habitantes das cidades, os empregados e operários industriais. A resistência dos camponeses também reduziu o abastecimento de víveres; esta resistência tinha em parte motivos políticos e em parte motivos financeiros. Trataremos estes últimos de seguida.

VII. A questão monetária durante a ditadura do proletariado na Hungria

Entre as dificuldades enfrentadas pela ditadura do proletariado na Hungria, distingue-se uma em particular, singular no seu género, nomeadamente, o problema específico das notas de banco.

Hoje, depois da guerra, todo o governo — seja ele dirigido por capitalistas, sociais-democratas ou pelos sovietes —, para cobrir as suas despesas, é obrigado a emitir dinheiro em montantes superiores às suas receitas. O défice é por toda a parte coberto com a emissão de novos valores monetários. Na Hungria criou-se uma situação muito particular, uma vez que o país não dispunha de uma moeda própria, mas utilizava a moeda emitida pelo Banco Austro-Húngaro. As máquinas impressoras deste banco encontram-se em Viena. Era necessária uma expedição para imprimir notas em Viena, além de que o banco era chamado a cobrir as necessidades monetárias da Áustria e da Hungria. Em Budapeste apenas se podia imprimir as notas provisórias de 20 e 25 coroas, que haviam sido introduzidas desde a revolução de Outubro.

Nestas notas estava impresso o decreto que determinava a sua substituição por notas normais de banco até ao fim de Junho de 1919. Mas pior que isso era a circunstância de, por tolice, terem sido impressas só de um lado, o verso foi deixado em branco. Os camponeses chamavam a estas notas «dinheiro branco» e já durante o regime de Károlyi recusavam-se a aceitá-las. Mas como na altura ainda havia em reserva uma quantidade suficiente de notas do antigo do Banco Austro-Húngaro, o chamado «dinheiro azul», pagava-se aos camponeses com notas «azuis» e utilizava-se as «brancas» nas cidades. Após a instauração da ditadura do proletariado, o Banco Austro-húngaro recusou-se a dar crédito ao governo operário, isto é, a imprimir-lhe novas notas «azuis». Como o governo soviético precisava de dinheiro, viu-se obrigado a imprimir novas notas de 20 e 25 coroas, recorrendo aos meios técnicos existentes. A consequência foi que rapidamente os camponeses se apoderaram de todas as notas «azuis» e restando nas cidades apenas notas «brancas» O valor do dinheiro «azul» aumentou gradualmente até atingir o dobro do valor do dinheiro «branco». Verificou-se o mesmo fenómeno que na Rússia com o rublo dos Romanov, de Kérenski e soviético. Mas com uma importante diferença que representou uma singularidade da situação da ditadura do proletariado na Hungria: as «notas» azuis eram válidas não só na Hungria, mas também na Áustria e, depois de facilmente carimbadas, circulavam também na Jugoslávia e na Checoslováquia. Deste modo, os camponeses com as suas notas «azuis» podiam comprar tudo o que queriam nos países vizinhos e por isso não tinham interesse em levar os seus produtos para as cidades húngaras ou vender alimentos ao governo soviético, uma vez que não precisavam de receber dele, como acontecia com os camponeses russos, sal, querosene, fósforos, artigos em ferro e produtos industriais. Devido à pequena dimensão do país não era difícil chegar à fronteira a partir de qualquer ponto, e o contrabando era muito facilitado pelo dinheiro «azul» que circulava igualmente nos países vizinhos. Deste modo, os camponeses recusavam-se terminantemente a aceitar dinheiro «branco», excepto nos casos em que eram coagidos com ameaças directas. O abastecimento das cidades com víveres diminuiu significativamente. A questão monetária agudizou-se a tal ponto que, em dada altura, até os ferroviários entraram em greve porque não conseguiam comprar quaisquer alimentos com as suas notas «brancas». Quanto mais próximo da fronteira e mais longe de Budapeste se situava uma região — o principal bastião da revolução proletária — menos dinheiro «branco» havia em circulação. No quarto mês de existência do governo soviético fizemos uma tentativa para resolver de forma radical a questão monetária: emitimos novas notas através das caixas postais de poupança. Inicialmente fizemos apenas notas de cinco coroas, que entraram em circulação sem grandes dificuldades dado que havia uma enorme falta de trocos; depois imprimimos notas de dez e 20 coroas e, pouco antes da queda da ditadura do proletariado, também de 100 coroas. As novas notas, graças à sua cor azul foram muito mais bem aceites do que a velhas notas brancas. O governo soviético ordenou a retirada imediata de circulação das notas do Banco Austro-Húngaro e declarou as novas notas das caixas postais de poupança como o único meio de pagamento legal.

Não podemos saber até que ponto esta medida teria resolvido a questão monetária, uma vez que a queda do poder soviético impediu a sua aplicação. Mas podemos afirmar com segurança que o problema não ficaria resolvido definitivamente. A dificuldade reside não tanto na forma do dinheiro, mas sobretudo no facto de o Estado proletário, nos primeiros tempos de existência, devido à queda da produção industrial, não ter condições para fornecer aos camponeses a quantidade necessária de mercadorias em troca dos seus produtos. Antes da guerra, os camponeses eram obrigados a vender os seus produtos nas cidades para poderem pagar os tributos, os juros das suas dívidas, as contas do advogado e do médico. Durante a guerra os preços dos produtos alimentares subiram de tal modo que os camponeses conseguiram pagar grande parte das duas dívidas. O governo soviético libertou-os dos tributos, e por isso não tinham qualquer pressão económica que os levasse a vender o que quer que fosse em troca de notas de banco, que já guardavam em enormes quantidades nos seus cofres. Nestas circunstâncias, por nenhum dinheiro os camponeses venderiam os seus víveres, uma vez que tal dinheiro não lhes dava acesso a produtos industriais. A essência da questão consiste deste modo na transição da economia monetária para a economia natural. Concluímos, portanto, que uma dificuldade particular da ditadura do proletariado na Hungria foi provocada pela circulação do dinheiro «branco», o qual agudizou muito mais a questão monetária em comparação com a Rússia ou qualquer outra república soviética.

VIII. A organização da distribuição

Nos seus traços gerais, o sistema de distribuição de produtos na Hungria era semelhante ao russo. Os produtos de primeira necessidade, o pão, batatas, açúcar, etc., já durante a guerra eram distribuídos apenas com senhas de racionamento. No entanto, a distribuição de outros artigos de consumo enfrentou muito obstáculos. Durante a guerra, nas fábricas, ministérios e instituições foram criados os chamados organismos de compras. Estes organismos, que adquiriam produtos em grosso para os seus membros, pagavam com frequência acima dos preços fixados e assim prejudicavam as compras do Estado. Isto continuou também durante a ditadura do proletariado. Estávamos firmemente decididos a dissolver estes organismos de compras, tal como tinha sido feito na Rússia, e estabelecer um sistema de distribuição único em cada região. A curta duração da ditadura do proletariado não nos permitiu realizar esse objectivo.

Um segundo problema muito difícil era o «tráfico de víveres». Uma vez que os camponeses, pelas razões atrás referidas, não traziam os seus produtos para os mercados das cidades, e os organismos de compras do Estado ainda não estavam bem organizados, o auto-abastecimento individual adquiriu grandes dimensões. Operários e habitantes das cidades, que tinham familiares ou conhecidos no campo, deslocavam-se e traziam para Budapeste alimentos em sacas, cestos e trouxas. Em cada comboio que partia de Budapeste, viajavam milhares de pessoas que invadiam o campo procurando os camponeses. Em troca de dinheiro ou de sal, tabaco ou produtos manufacturados traziam consigo alimentos: farinha, banha, manteiga, leite, ovos, etc.

Este «mercado negro» de massas inviabilizava a organização de um aparelho estatal de compras, dado que para o camponês era mais vantajoso guardar os seus produtos para o «traficante» do que vendê-los ao Estado pelo preço mínimo. A proibição do tráfico agravou a situação de certas camadas de operários; operários e empregados alegaram que o Estado só poderia proibir o tráfico quando estivesse em condições de abastecer os habitantes das cidades. As direcções sindicais e os socialistas de direita manifestavam a mesma opinião. De modo que entrámos num círculo vicioso: não se podia pôr fim ao tráfico porque o abastecimento estatal ainda funcionava mal; ao mesmo tempo, a organização dos aprovisionamentos do Estado não podia consolidar-se enquanto, graças ao tráfico, os camponeses continuassem a vender directamente ao consumidor os seus excedentes a preços mirabolantes. O abastecimento do Estado baseava-se sobretudo nos grandes domínios expropriados, nos quais as reservas de cereais, de lacticínios e de gado para abate estavam sob controlo directo do Estado proletário.

IX. As dificuldades econômicas e a queda da ditadura do proletariado

Após a queda da ditadura do proletariado, nos círculos dos comunistas húngaros discutimos muitas vezes a seguinte questão: será que teríamos sido capazes de superar as dificuldades económicas caso as tropas romenas e checas não tivessem invadido o país e semeado o caos? Não há dúvida de que a situação económica da República Soviética da Hungria não seria fácil se o estado proletário continuasse durante muito tempo isolado no meio de países capitalistas. Mas a sua situação económica não era de modo nenhum pior do que a da Rússia. A questão mais essencial que se coloca é a de saber se a classe operária, que no início da ditadura do proletariado revelou pouca abnegação, seria capaz compreender, com a ajuda da agitação, a verdade fundamental de que o proletariado para manter o seu poder político tem de sofrer, passar privações e fome. Atrás referimos que a instauração da ditadura do proletariado não traz por si só um aumento do nível de vida; no início, a vida melhora para os operários agrícolas, mas deteriora-se inevitavelmente para os operários das cidades. É necessário insistir para que o proletariado urbano, em particular os membros do partido comunista, compreendam a inevitabilidade disto. E quando colocamos a questão de saber se a República Soviética da Hungria teria caído, mesmo sem a intervenção estrangeira, em consequência das suas dificuldades económicas, temos de responder do seguinte modo: se o pensamento pequeno-burguês dos operários das cidades permanecesse imutável assim como a sua fraca disposição para sacrifícios revolucionários; se não fosse quebrada a influência e importância dos sociais-democratas pequeno-burgueses e dos líderes dos sindicatos; se o proletariado húngaro não se elevasse, em abnegação e firmeza, ao nível do proletariado russo, então, nesse caso, a sua ditadura cairia em consequência das dificuldades económicas internas. Não devemos nunca esquecer que a derrota militar, que conduziu à queda da ditadura do proletariado na Hungria, foi em grande parte consequência da pouca abnegação e da inexperiência política do proletariado húngaro. Não devemos nunca esquecer que a resistência do Exército Vermelho foi enfraquecida pela agitação dos socialistas e líderes do movimento sindical, que acreditaram nas promessas dos agentes da Entente e foram suficientemente estúpidos para crerem que à ditadura do proletariado se podia seguir um governo operário social-democrata, que seria abastecido pela Entente com farinha, banha, carvão e todos os bens. Os líderes dos operários e o resto da classe operária não pensaram um instante sequer no que a Hungria teria de dar em troca dos víveres prometidos. Todos pensaram que a Entente ofereceria todos esses bens em sinal de pura gratidão pela eliminação do regime soviético. Por conseguinte, somos obrigados a afirmar que se a ditadura do proletariado não conseguisse mudar o tipo de pensamento dos operários húngaros, se estes não revelassem maior disposição para sacrifícios do que vimos durante a ditadura, então ela cairia mesmo sem o ataque do exterior, apenas em consequência da contra-agitação e contra-revolução da social-democracia e da burguesia, que tirava proveito das dificuldades económicas. O proletariado húngaro adquiriu inquestionavelmente uma rica experiência política sob o jugo do terror branco que se seguiu à ditadura do proletariado. Os operários húngaros podem agora com base numa rica experiência própria comparar o domínio do proletariado com o domínio da burguesia. Podem agora recordar que durante a ditadura do proletariado não podia queixar-se de falta de carne, banha, calçado e vestuário. Pelo contrário, agora, tudo isto lhes falta. Parece que as montras são cheias de finas comidas e bebidas, de roupa branca e bonito vestuário de qualidade. Mas o operário húngaro tem menos acesso a estas riquezas do que durante o seu domínio, no tempo da aparente miséria completa. Agora que as mercadorias estão disponíveis em abundância, o proletariado não tem meios para as comprar; depois do derrubamento da ditadura do proletariado, os salários foram reduzidos para metade e muitas centenas de milhares de desempregados, sem qualquer auxílio ou um tostão de rendimento, olham para o deboche dos ricos desfrutando de todos os prazeres terrenos. A experiência na própria pele ensina agora ao proletariado da Hungria que, apesar de a instauração da ditadura ter conduzido ao empobrecimento geral, a restauração do domínio da burguesia não trouxe a prosperidade apregoada pelos chefes da social-democracia que se aliaram à Entente. A restauração da ditadura da burguesia trouxe prosperidade e riqueza à burguesia e uma profunda e indescritível miséria ao proletariado húngaro. Se durante a ditadura do proletariado a burguesia era obrigada a sofrer juntamente com o proletariado e os produtos na posse do Estado eram distribuídos prioritariamente aos trabalhadores, agora são apenas as massas de produtores que passam fome.

A burguesia aproveita de novo sem limites as vantagens da exploração. Temos a esperança de que, em breve, na nova revolução social, os operários húngaros, dispondo já de uma grande experiência política, defenderão a sua ditadura com mais abnegação do que na primeira vez. Ao que parece, é através da experiência histórica própria, e não por via da preparação teórica, que as classes recebem educação revolucionária.


Notas de rodapé:

(1) A coroa foi substituída pelo pengõ em 1927, o qual vigorou até meados de 1946, quando foi criado o florim húngaro. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(2) O conde Mihály Ádám Gyorgy Miklós Károlyi de Nagykároly (1875 -1955) foi primeiro- ministro da República Democrática da Hungria entre 1 e 16 de Novembro de 1918, data em que o monarca Carlos I de Habsburgo-Lorena resigna às funções de chefia do Estado e se exila na Suíça. Károlyi proclama a República e assume a presidência da Hungria até ser derrubado em 21 de Março de 1919. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(3) O facto de os bolcheviques terem dado inteira liberdade aos camponeses para dividirem os grandes latifúndios em nada altera esta concepção de princípio. Os bolcheviques russos encontravam-se numa situação política extraordinariamente difícil. Dado o forte predomínio da população rural, só por esta via podiam consolidar a revolução no campo. Agora tomam medidas para organizar o que resta dos grandes domínios em explorações soviéticas e restabelecer grandes empresas agrícolas na base da cooperação. (retornar ao texto)

(4) Joche (hox) é uma antiga medida agrária utilizada nos países da Europa Central, tendo diferentes valores: na Alemanha, por exemplo, equivalia a 56,03 ares (1 are = a 100 m2), na Hungria a 43,16 ares. O artigo original indica que 100 joches correspondem a 57 hectares (N. Ed.) (retornar ao texto)

(5) Os magiares (magyars) são o grupo etnolinguístico que fundou a Hungria, sendo por isso habitualmente associados à noção de povo húngaro. Contudo, não só o país sempre foi habitado outras etnias, como uma parte importante dos magiares se fixou historicamente noutros países, como a Roménia, a Sérvia, a Croácia, a Alemanha ou Ucrânia, entre outros, onde constituem importantes minorias étnicas. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(6) É óbvio que a dimensão da propriedade fundiária é um critério muito imperfeito para a expropriação: 100 joches de terra arável podem ter muito mais valor do que 500 joches de terra infértil. Todavia não era possível definir com tanta clareza um patamar mínimo senão na base da dimensão territorial. As injustiças daqui decorrentes deveriam ser sistematicamente eliminadas ulteriormente. (retornar ao texto)

(7) Com grande probabilidade o autor refere-se ao texto de Lénine intitulado «Discurso Sobre a Luta contra a Fome», proferido em 4 de Junho de 1918, na reunião conjunta do Comité Executivo Central de Toda a Rússia, do Soviete de Moscovo e dos Sindicatos. V.I. Lénine, Obras Completas (em russo), 5.a edição, Moscovo, 1969, t. 36, pp. 395-414. (N. Ed.). (retornar ao texto)

(8) A questão sobre se seria possível transformar os operários agrícolas em empregados do Estado e se seria possível realizar a socialização dos grandes latifúndios sem repartição da terra ficou em aberto. Temos razões para pensar que, após uma campanha de agitação bem preparada, os operários agrícolas húngaros aceitariam esta decisão e voluntariamente renunciariam à vida muito pouco agradável dos pequenos camponeses isolados. Para apaziguar a fome de terra dos pobres do campo, poderia, eventualmente, fazer sentido destinar-lhes parcelas até um hectare por pessoa. Isto poderia ser feito sob a forma de arrendamento hereditário. (retornar ao texto)

(9) As comunidades rurais (comunitárias) na Rússia eram chamadas mir, palavra que significa também mundo e paz. (N. Ed.) (retornar ao texto)

Inclusão 03/12/2015