História da Revolução Russa

Léon Trotsky


Os bolcheviques e os sovietes


Os recursos e os meios da agitação bolchevique se apresentaram, se se examina de perto, não somente como não correspondendo de forma nenhuma à influência política do bolchevismo, mas, simplesmente, impressionante pela insignificância. Até às jornadas de Julho, o partido tinha 41 órgãos de imprensa, contando os semanários e os mensais, com uma tiragem total de 330 mil exemplares; após o esmagamento de Julho, a tiragem foi reduzida a metade. No fim de Agosto, o órgão central do partido tinha imprimido 50 mil exemplares. Durante os dias onde o partido tomou conta dos sovietes de Petrogrado e de Moscovo, os fundos na caixa do Comité central aumentou a cerca de 30 mil rublos papel.

Os intelectuais não afluíam ao partido. Uma larga camada de ditos «velhos bolcheviques», o número de estudantes que tinham aderido à revolução em 1905, se transformou em engenheiros que tinham sucesso na carreira, como médicos, funcionários, e que mostravam sem cerimónia hostilidade. Mesmo em Petrogrado, faltavam jornalistas, oradores, agitadores. A província via-se completamente desprovida. Não havia dirigentes, homens possuindo uma educação política que poderiam explicar ao povo o que queriam os bolcheviques! Tal é o lamento que se ouve em centenas de lugares perdidos e sobretudo na frente. No campo, as células bolcheviques quase que não existem. As comunicações postais estão completamente perturbadas: abandonadas à sua sorte, as organizações locais, muitas vezes, reprovam, não sem razão, ao Comité central de só dirigir Petrogrado.

Então como, com um aparelho tão fraco e uma tiragem de imprensa tão insignificante, as ideias e as palavras de ordem do bolchevismo puderam amparar-se do povo? O segredo do enigma é muito simples: as palavras de ordem que respondem à necessidade aguda de uma classe e de uma época criam milhares de canais. O meio revolucionário, levando a um estado incandescente, distingue-se pela alta condutibilidade das ideias. Os jornais bolcheviques eram lidos em voz alta, relidos até ficarem em tiras, os artigos mais importantes aprendiam-se por cor, eram contados, recopiados, etc. lá onde era possível, reimprimidos.

«A tipografia do estado-maior – conta Pireiko – deu um grande serviço à causa da revolução: quantos na nossa tipografia, se reproduzem diversos artigos da Pravda e pequenos opúsculos, muito próximos e acessíveis aos soldados! E tudo isso era rapidamente encaminhado para a frente, por via aérea, pelos motoristas de autos e por motocicletas...»

Ao mesmo tempo, a imprensa burguesa, expedida gratuitamente na frente em milhões de exemplares, não encontrava um leitor. Os pesados pacotes nem eram desfeitos. O boicote da imprensa «patriótica» tomava frequentemente formas demonstrativas. Os representantes da 18ª divisão siberiana decidiram convidar os partidos burgueses a suprimir o envio da sua literatura, dado que nem servia para fazer ferver a água para o chá» A imprensa bolchevique tinha outra utilidade. É por isso que o coeficiente da sua utilidade, ou melhor, se quisermos, da sua nocividade, era infinitamente mais elevada.

A explicação habitual dos sucessos do bolchevismo é levada a evocar a «simplicidade» das suas palavras de ordem que iam a favor dos desejos das massas. Há aí uma parte de verdade. A consistência da política dos bolcheviques foi determinada por esse facto que, contrariamente aos partidos «democráticos», eles não dependiam de comandos tácticos ou meio formulados, traduzindo-se no fim de contas na protecção da propriedade privada. Todavia, esta diferença não esgota por ele própria a questão. Se, à direita dos bolcheviques, se mantinha a «democracia», do lado esquerdo tentavam repelir seja os anarquistas, seja os maximalistas, seja os socialistas-revolucionários de esquerda. Portanto, todos esses grupos não tinham saído do estado de impotência. O bolchevismo distinguia-se nisto que ele tinha subornado o seu princípio objectivo – a defesa dos interesses das massas populares – às leis da revolução considerada como um processo objectivamente objectivamente condicionado. A dedução científica dessas leis, antes de tudo as que governam o movimento de massas populares, constituía a base da estratégia bolchevique. Na sua luta, os trabalhadores guiam-se não somente pelas suas necessidade, mas pela sua experiência da vida. O bolchevismo era absolutamente estranho ao desprezo aristocrático da experiência espontânea das massas. Ao contrário dos bolcheviques partiam desta experiência e construiam sobre essa base. Nisso era uma das suas grandes vantagens.

As revoluções são sempre prolixas, e os bolcheviques não escaparam a esta lei. Mas, enquanto que a agitação dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários tinha um carácter disperso, contraditório, na maior parte das vezes evasivo, a agitação dos bolcheviques distinguia-se pela sua natureza responsável e concentrada. Os conciliadores tagarelavam para afastar as dificuldades, os bolcheviques caminhavam diante delas. A análise constante da situação, a verificação das palavras de ordem segundo os factos, uma atitude séria, davam uma força particular, um vigor persuasivo à agitação bolchevique.

A imprensa do partido não exagerava os sucesso, não adulterava as relações de força, não tentava da ganhar pela gritaria. A escola de Lenine era a do realismo revolucionário. Os dados fornecidos pela imprensa bolchevique em 1917 era, à luz dos documentos da época e da crítica histórica, infinitamente mais verídica que as informações de todos os outros jornais. A veracidade provinha da força revolucionária dos bolcheviques, mas, ao mesmo tempo, consolidava a sua potência. O abandono desta tradição tornou-se, a seguir, um dos traços mais perniciosos da conduta dos epígonos.

«Nós não somos charlatães – dizia Lenine imediatamente após a sua chegada – nós devemos nos basear unicamente sobre a consciência das massas. Mesmo se devemos ficar minoritários – sim... não tenhamos medo de estar em minoria... Nós fazemos um trabalho crítico para livrar as massas do engano...  A nossa linha mostrar-se-à verdadeira. A nós virão todos os oprimidos. Não haverá outra saída para eles.»

Completamente compreendida, a política bolchevique apresentou-se a nós como o contrário da demagogia e do espírito aventureiro!

Lenine leva uma vida clandestina. Ele segue com extrema atenção os jornais, lê como sempre entre as linhas e, nas entrevistas pessoais pouco numerosas, surpreende os ecos dos pensamentos inacabados e as intenções não exprimidas. Nas massas, refluxo. Martov, defendendo os bolcheviques contra a calúnia, aflito, ironiza em direcção do partido que encontrou o meio de se infligir a si próprio uma derrota. Lenine adivinhou, - logo ele recebeu sobre isso informações nítidas – que, para tal ou tal bolchevique, os traços do arrependimento não são estranhos e que o impressionável Lunatcharsky não era o único nesse caso. Lenine escreveu sobre as jeremiadas dos pequenos burgueses e da conduta de «renegados» de certos bolcheviques que se mostraram tolerantes às jeremiadas. Os bolcheviques, nos distritos e na província, subscreveram essas palavras severas. A sua persuasão tornou-se ainda maior: «o velho» não perderá a cabeça, não perderá a coragem, não sucumbirá aos movimentos de humor ocasionais.

Um membro do Comité central dos bolcheviques – não é Sverdlov? - escreveu, dirigindo-se à província:

«Por um tempo, nós não temos jornais próprios... A organização não está destruida... O Congresso não é adiado.»

Lenine segui atentamente, tanto que lhe permitiu o seu isolamento forçado, a preparação do Congresso do partido e esboçou as resoluções essenciais; trata-se do plano da ofensiva ulterior. O Congresso é nomeado antecipadamente unificador, porque se previa que se incluísse no partido certos grupos revolucionários autónomos, antes de tudo os da organização inter-distritos de Petrogrado à qual pertencem Trotsky, Ioffé, Oritsky, Riazanov, Lunatcharsky, Pokrovsky, Manoilsky, Karakhan, Ioreniev e vários outros revolucionários conhecidos pelo seu passado ou que estavam ainda somente a serem conhecidos.

No 2 de Julho, mesmo na véspera da manifestação, tinha lugar um conferência inter-distritos, representando cerca de de quatro mil operários.

«Em maioria – escreve Sokhanov, que assistia entre o público, - eram para mim desconhecidos, operários e soldados... O trabalho foi feito febrilmente e todos sentiram que ele era frutuoso. Uma só coisa incomodava: no quê vocês se diferenciam dos bolchevique e porquê vocês não estão com eles?»

Para apressar a unificação que se esforçavam de adiar certos dirigentes da organização, Trotsky publicou na Pravda esta declaração:

«Não existe actualmente, na minha opinião, diferenças de princípio ou de táctica entre a organização  inter-distritos e a dos bolcheviques. Por consequência, não há motivos que justificariam a existência distinta dessas organizações.»

No 26 de Julho abriu-se o Congresso de unificação, na realidade o VIº Congresso do partido bolchevique que se desenrolava meio legalmente, se dissimulando alternativamente em dois bairros operários, 175 delegados, desse número 157 delegados com voz deliberativa, representavam 112 organizações agrupando 176 750 membros. Em Petrogrado, contava-se 41 000 membros: 36 000 na organização bolchevique, 4 000 nos inter-distritos, cerca de 1 000 na organização militar. Na região industrial de Moscovo, o partido contava 42 000 membros, no Ural, 25 000, na bacia do Donetz cerca de 15 000. No Cáucaso, existiam grandes organizações bolcheviques, em Baku, em Grosny, em Tíflis: as duas primeiras compunham-se quase exclusivamente de operários; em Tíflis predominavam os soldados.

A composição do Congresso representava o passado pré-revolucionário do partido. Sobre cento e setenta e um delgados que preencheram as folhas de inquérito, cento e dez tinham passado pela prisão, no total duzentos e quarenta e cinco anos, dez tinham feito, no conjunto, quarenta e um anos de presídio, vinte e quatro totalizavam setenta e três anos de deportação, no total havia cinquenta e cinco banidos por uma duração de vinte e sete anos no conjunto; vinte e sete homens tinham passado na emigração uma duração total de noventa e nove anos; cento e cinquenta tinha sido alvo de prisão acima de quinhentos e quarenta e nove anos.

«Nesse congresso – dizia mais tarde, nas suas Memórias, Piatnitsky, um dos secretários actuais da Internacional comunista – não assistiram nem Lenine, nem Trotsky, nem Zinoviev, nem Kamenev... Ainda que a questão do programa do partido tivesse sido retirada da ordem do dia, o congresso se desenrolou sem os líderes, com actividade e muito bem...»

Na base dos trabalhos se colocaram as teses de Lenine. Teoricamente pouco seguro dele, mas resoluto politicamente, Estaline tentou enumerar os traços que determinam «o carácter profundo da revolução socialista, operária». A unanimidade do Congresso, comparativamente à conferência de Abril, saltou aos olhos.

Sobre as eleições do Comité central, o processo-verbal do Congresso comunicou: Lê-se os nomes dos quatro membros do Comité central que obtiveram o maior número de votos : Lenine – 133 votos sobre 134; Zinoviev – 132; Kamenev – 131; Trotsky – 131. Além disso são eleitos para o Comité central: Noguine, Kollontai, Estaline, Sverdlov, Rykov, Bukarine, Artem, Ioffé, Uritsky, Miliotine, Lomov» Note-se esta composição do Comité central: sob a sua direcção se cumprirá a insurreição de Outubro.

Martov saudou o congresso com uma carta na qual ele exprime de novo «a sua profunda indignação diante da campanha de calúnias», mas, sobre as questões essenciais, parou no limiar da acção,

«não se deve admitir – escreveu - que se substitua ao problema da conquista do poder pela maioria da democracia revolucionária o problema da conquista do poder numa luta com esta maioria e contra ela...»

Por maioria da democracia revolucionária, Martov continuava a compreender a representação soviética oficial que se desequilibrava» Martov está ligado aos sociais patriotas não por uma vã tradição fraccional – escrevia então Trotsky – mas por uma atitude profundamente oportunista em relação à revolução social considerada como um objectivo longínquo que não pode determinar a maneira de colocar as tarefas de hoje. E é isso mesmo que o separa de nós.»

Houve somente um pequeno número de mencheviques de esquerda, Larine à cabeça, para se aproximar definitivamente neste período dos bolcheviques; Iurenive, futuro diplomata soviético, como relator do Congresso sobre a questão da unificação dos internacionalistas, chegou a esta conclusão que era preciso unificar-se com «a minoria da minoria dos mencheviques»... O grande afluxo dos antigos mencheviques ao partido só começou após a insurreição de Outubro: juntaram-se não ao levantamento proletário, mas ao poder que daí tinha saído, os mencheviques manifestavam o traço essencial do oportunismo: a obsequiosidade diante do poder do dia. Lenine, que se mantinha extremamente cauteloso sobre a composição do partido, logo reclamou a exclusão de 99% dos mencheviques que tinham entrado após a insurreição de Outubro. Ele esteve longe de chegar a esse resultado. Logo a seguir, as portas escancararam-se para os mencheviques e socialistas-revolucionários, e os antigos conciliadores tornaram-se um dos apoios do regime estalinista no partido. Mas isso tudo se relaciona já com a época ulterior.

Sverdlov, que praticamente tinha organizado o congresso no seu relatório: «Trotsky, antes do congresso, entrou na redacção do nosso órgão, mas a sua encarceração impediu de aí participar efectivamente.» Foi somente no congresso de Julho que Trotsky entrou formalmente no partido bolchevique. O balanço dos anos de desentendimento e de luta fraccional foi encerrado. Trotsky chegou-se a Lenine como a um mestre cuja força e importância ele tinha compreendido mais tarde que outros, mas talvez mais completamente. Raskolnikov, que tinha frequentado de perto Trotsky desde da sua chegada do Canadá e que tinha logo passado com ele, lado a lado, algumas semanas na prisão, escreveu nas suas Memória:

«Trotsky tinha um imenso respeito por Vladimir Ilitch (Lenine). Ele colocou-o acima de todos os contemporâneos que teve ocasião de encontrar na Rússia e no estrangeiro. No tom de Trotsky, falando de Lenine, sentia-se a devoção de um discípulo: nessa época, Lenine contava um estágio de trinta anos ao serviço do proletariado, e Trotsky estava no seu vigésimo ano. Os ecos dos antigos desentendimentos do período de antes da guerra tinham-se completamente apagado. Entre a linha de táctica de Lenine e a de Trotsky, não existia diferença. Essa aproximação, já esboçada durante a guerra, foi completamente determinada no momento de Léon Davidovitch (Trotsky) à Rússia; segundo as suas primeiras manifestações de actividade nós sentimos todos, velhos leninistas, que ele era dos nossos.»

Já, o único número de votos dados a Trotsky quando ele foi eleito para o Comité central mostrou que ninguém no meio bolchevique não o considerava, mesmo no momento da sua entrada na partido, como um intruso.

Invisivelmente presente no congresso, Lenine inspirava nos trabalhos da assembleia o espírito de responsabilidade e de audácia. O criador e o educador do partido não tolerava nem a negligência na teoria nem na política. Ele sabia que uma fórmula económica inexacta, tal como uma observação política desatenta ganham cruéis vinganças na hora da acção. Defendendo o seu procedimento em relação a cada texto do partido, mesmo um texto de importância secundária, Lenine repetiu mais de uma vez:

«Não são bagatelas, é necessário precisão: o nosso agitador aprenderá isso por cor e não será derrotado...» «O nosso partido é bom – acrescentava, tendo em vista precisamente essa atitude séria, exigente, do agitador de base, sobre o que era preciso dizer e a maneira de o dizer.

A ousadia das palavras de ordem bolchevique deu mais de uma vez a impressão de ser fantasista: foi assim que foram acolhidas as teses de Abril de Lenine. Na realidade, numa época revolucionária, o que há de mais fantasista, são as lutas mesquinhas; em contra-partida, o realismo é inconcebível fora de uma política de longínquos objectivos. Não basta dizer que a fantasia era estranha ao bolchevique: o partido de Lenine era o único partido de realismo político na revolução.

Em Junho e no início de Julho, os bolcheviques operários declararam mais de uma vez que eles eram muitas vezes obrigados a desempenhar o papel de lança de bombeiros em relação às massas, e que isso não lhe assentava bem. Julho, com a derrota, tinha trazido uma experiência que foi paga caro. As massas tornaram-se muito mais atentas aos avisos do partido, aprendendo os seus cálculos de táctica. O congresso do partido de Julho confirmou isto: «O proletariado não se deve deixar levar pelas provocações da burguesia que deseja, neste momento, apelar a uma batalha prematura.» Todo o mês de Agosto, sobretudo a segunda quinzena, é marcada por constantes avisos do partido dirigidos aos operários e soldados: não descer à rua. Os próprios líderes bolcheviques brincavam frequentemente em voz baixa sobre a semelhança dos seus avisos com o leitmotivo político da velha social-democracia alemã que retinha as massas de toda a luta séria, alegando invariavelmente o perigo da provocação e a necessidade de acumular forças. Na realidade, a semelhança não era aparente. Os bolcheviques compreendiam perfeitamente que as forças acumulam na luta e não numa abstenção passiva. O estudo da realidade era para Lenine simplesmente uma exploração teórica no interesse da acção. Quando ele avaliava a situação, ele via sempre no seu próprio centro o partido como força activa. Ele considerava com particular hostilidade, mais exactamente desgosto, o austro-marxisme (Otto Bauer, Hilferding, e outros) pelo qual a análise teórica é somente um comentário científico da passividade. A prudência em um travão, e não um motor. Ninguém ainda viajou sobre um travão, tal como ninguém construiu nada sobre a prudência. Mas os bolcheviques sabiam ao mesmo tempo que a luta reclama um cálculo de forças; é preciso ser prudente para ter o direito de ser temerário.

A resolução do VI Congresso, ao mesmo tempo que prevenia os conflitos prematuros, indicava que era preciso aceitar o combate «quando a crise comum a toda a nação e um profundo desenvolvimento das massas criariam as condições favoráveis para a passagem de elementos pobres da cidade e do campo ao lado dos operários». Ao ritmo da revolução, não se tratava de dezenas de anos, nem mesmo de anos mas de alguns meses.

Tendo actualizado a explicação para as massas da necessidade de se preparar para uma insurreição armada, o Congresso decidiu ao mesmo tempo de suprimir a palavra de ordem central do período precedente: a devolução do poder aos sovietes. Uma coisa ia com a outra. Lenine tinha preparado a modificação das palavras de ordem pelos seus artigos, suas cartas e as suas entrevistas particulares.

A passagem do poder para os sovietes teria marcado directamente a passagem do poder aos conciliadores. Isso podia realizar-se pacificamente, simplesmente ao retirar o governo burguês que repousava sobre a boa vontade dos conciliadores e sobre os restos da confiança nas massas. A ditadura dos operários e dos soldados era um facto, a datar do 27 de Fevereiro. Mas os operários e os soldados não se davam conta do facto como convinha. Eles tinham confiado o poder aos conciliadores que, por sua vez, o tinham transmitido à burguesia. O cálculo dos bolcheviques visando um desenvolvimento pacífico da revolução repousava não sobre a esperança que a burguesia remeteria de boa vontade o poder aos operários e soldados, mas que os operários e os soldados impediriam no momento adequado os conciliadores a ceder o poder à burguesia.

A concentração do poder nos sovietes, sob o regime da democracia soviética, teria aberto aos bolcheviques a completa possibilidade de se tornar uma maioria nos sovietes e, por consequência, criar um governo sobre as bases do seu programa. Para atingir esse objectivo, não haveria necessidade de insurreição armada. A substituição dos partidos ao poder teria podido realizar-se pacificamente. Todos os esforços do partido, desde Abril até Julho, teriam por objectivos assegurar o desenvolvimento pacífico da revolução por intermédio dos sovietes. «Explicar pacientemente» - tal era a chave da política bolchevique.

As jornadas de Julho modificaram radicalmente a situação. Dos sovietes, o poder passou entre as mãos das cliques militares que estavam ligadas aos cadetes e às embaixadas e que tinham apoiado Kerensky por um certo tempo, na qualidade de democrata firme. Se o Comité executivo tinha pensado agora em decidir que o poder passaria entre as suas mãos, o resultado teria sido completamente diferente do que poderia ter sido três dias antes: no palácio de Tauride teria entrado, provavelmente um regimento de cossacos com as escolas de junkeres, e teria tentado simplesmente prender os «usurpadores». A palavra de ordem «o poder para os sovietes» supunha então uma insurreição armada contra o governo e as cliques militares que se mantinham por detrás deles. Mas o levantamento em nome do poder dos sovietes que não queriam esse poder teria sido uma evidente absurdidade. Por outro lado, tornar-se-ia duvidoso então – alguns pensavam inverosimilhantemente – que os bolcheviques pudessem conquistar a maioria nos sovietes sem autoridade, por meio de novas eleições pacíficas: ligados pelo esmagamento, em Julho, os operários e os camponeses, os mencheviques e os socialistas-revolucionários apoiarão bem entendido no seguimento das violências exercidas contra os bolcheviques. Continuando conciliadores, os sovietes transformarão-se numa só oposição sob um poder contra-revolucionário para logo deixar de existir.

Nessas condições, estava fora de questão a passagem pacífica do poder para as mãos do proletariado e os camponeses pobres. Para o partido bolchevique, isso significava: é preciso preparar a insurreição armada.

Sob qual palavra de ordem? Sob a palavra de ordem declarada da conquista do poder pelo proletariado e os camponeses pobres. É preciso colocar o problema revolucionário na sua forma nua. Sob a forma equívoca dos sovietes, é necessários sobressair o conteúdo de classe. Isso não era renunciar aos sovietes como tais. Tendo-se amparado do poder, o proletariado deverá organizar o Estado de tipo soviético. Mas serão outros sovietes que preenchem a tarefa histórica absolutamente contrária à função preservadora dos sovietes conciliadores.

«A palavras de ordem da passagem do poder para os sovietes – escrevia Lenine no seguimento da perseguição e calúnia – agora teria um ar de dom quixotismo ou de gozo. Essa palavra de ordem, objectivamente, seria um engano para o povo, lhe sugerindo ilusões como se bastasse agora aos sovietes desejar tomar o poder ou então decidir assim tê-lo – como se houvesse ainda no Soviete partidos que não seriam ainda contaminados por ter ajudado os carrascos, como se se pudesse fazer do passado o que não tinha sido.»

Renunciar a exigir a passagem do poder aos sovietes? No primeiro momento, esta ideia chocou o partido, mais exactamente os seus quadros agitadores que, durante os meses precedentes, tinham tomado de tal forma a palavra de ordem popular que eles a associavam a quase todo o conteúdo da revolução. Nos círculos do partido iniciou-se uma discussão. Muitos militantes conhecidos do partido, tais com Manuilsky, Iureniev e outros, demonstraram que em retirando a palavra de ordem «todo o poder para os sovietes», criar-se-ia um perigo de isolamento do proletariado em relação ao campesinato. Esta objecção substituía as classes pelas instituições. O fetichismo da forma de organização representa, tão estranha que pareça à primeira vista, uma doença muito frequente precisamente nos meios revolucionários. «Na media onde nós continuamos parte integrante desses sovietes – escrevia Trotsky - nós nos esforçamos em obter que os sovietes que reflectem a jornada de ontem da revolução cheguem a se erguer à altura da tarefas de amanhã. Mas, tão importante que seja a questão do papel e da sorte dos sovietes, ela é subordinada para nós à questão da luta do proletariado e das massas meio proletarias da cidade, do exército e da aldeia para o poder político, para a ditadura revolucionária.»

A questão de saber qual organização de massas deveria servir ao partido para a direcção da insurreição não admitia solução à priori, e ainda menos solução categórica. Os órgãos devendo servir para a insurreição podiam ser os comités de fábrica e os sindicatos que se encontravam já sob a direcção dos bolcheviques, tal como os sovietes, em certos casos, na medida onde eles escapavam ao jugo dos conciliadores. Lenine citava o exemplo de Ordjnonikidze:

«É indispensável para nós transferir o centro de gravidade sobre os comités de fábrica e de oficina. Os órgão da insurreição devem ser os comités de fábrica e de oficina.»

Depois que as massas foram atingidas, em Julho, os sovietes, primeiro como a um adversário passivo, a seguir como um inimigo activo, a mudança de palavras de ordem encontrou na sua consciência um terreno completamente preparado. Aí estava a preocupação constante de Lenine: exprimir com a última das simplicidades o que, por um lado, decorre das condições objectivas e, por outro, a forma da experiência subjectiva das massas. Não serve mais agora oferecer o poder aos sovietes de Tseretelli – assim sentiam os operários e os soldados avançados – é necessário somente que nós próprios o tomemos!

A manifestação de grevistas em Moscovo contra a conferência de Estado não somente se de desenrolou contra a vontade do Soviete, mas não formulou a reivindicação do poder dos sovietes. As massas já tinham compreendido a lição dada pelos acontecimentos comentados por Lenine. Ao mesmo tempo, os bolcheviques de Moscovo não hesitaram um minuto em ocupar posições de combate, desde que o perigo se manifestou de uma contra-revolução tentando esmagar os sovietes conciliadores. A política bolchevique combinava sempre a intransigência revolucionária com a mais extrema flexibilidade e encontrava precisamente, nesta combinação, a sua força.

Os acontecimentos sobre o teatro da guerra submeteram logo a um teste muito grave a política do partido do ponto de vista do seu internacionalismo. Após a queda de Riga, a questão da sorte de Petrogrado apanhou os operários e os soldados. A reunião dos comités de fábrica e de oficina em Smolny, o menchevique Mazorenko, oficial que tinha recentemente dirigido o desarmamento dos operários de Petrogrado, fez um relato sobre o perigo que ameaçava a capital e colocou questões práticas de defesa.

«A que propósito vocês querem falar connosco? - exclamou um dos oradores bolcheviques... - Os nossos líderes estão presos e você nos chama para discutir questões que dizem respeito à defesa da capital.»

Como operários da indústria e cidadãos da república burguesa, os proletários  do bairro de Vyborg não estão dispostos a sabotar a defesa da capital revolucionária. Mas, como bolcheviques, membros do partido, eles não querem nem um segundo partilhar com os dirigentes a responsabilidade da guerra diante do povo russo e diante dos povos dos outros países.

Temendo que o espírito de defensiva não se transformasse numa política de defesa nacional, Lenine escrevia:

«Nós não seremos partidários da defesa nacional senão após a passagem do poder para o proletariado... Nem a tomada de Riga nem a de Piter (Petrogrado) não farão de nós partidários da defesa nacional: até a esse momento, nós somos pela revolução proletária, nós somos contra a guerra, nós não somos partidários da defesa nacional».

«A queda de Riga – escrevia Trotsky da prisão – é um golpe duro. A queda de Petrogrado seria uma calamidade. Mas a queda da política internacional do proletariado russo seria uma catástrofe.» Doutrina de fanáticos? Mas nesses mesmos dias onde os caçadores bolcheviques e os marinheiros caíam sob as paredes de Riga, o governo retirava as tropas para esmagar os bolcheviques, e o generalíssimo preparava-se para fazer a guerra ao governo. Por esta política na frente como na retaguarda, para a defensiva como para a ofensiva, os bolcheviques não podiam e não queriam tomar a sombra de uma responsabilidade. Se eles se tivessem conduzido de outro modo, eles não seriam bolcheviques.

Kerensky e Kornilov constituíam duas variantes de um e mesmo perigo; mas essas variantes, a insinuante e a aguda, encontraram-se no fim de Agosto em oposição irredutível entre elas. Era preciso antes de tudo afastar o perigo agudo para a seguir acabar com o perigo insinuante. Não somente os bolcheviques entraram no comité de defesa, ainda que tivessem sido condenados a ocupar a situação de uma pequena minoria, mas eles declararam que, na luta contra Kornilov, eles estavam prontos a concluir «uma aliança militarmente técnica» mesmo com o Directório. Sobre isso, Sokhanov escreve:

«Os bolcheviques mostraram um tacto extremo e sabedoria política... É verdade que, caminhando para um compromisso que não estava na sua natureza, eles perseguiam certos fins particulares imprevisíveis para os seus aliados. Mas a sua sabedoria era bastante grande neste assunto.»

Não havia nada não específico para os bolcheviques nesta política: pelo contrário, ela respondia perfeitamente ao carácter do partido. Os bolcheviques eram revolucionários de acção e não de gestos, de essência e não de forma. Sua política era determinada pelo reagrupamento real de forças e não por simpatias ou antipatias. Perseguido pelos socialistas-revolucionários e os mencheviques, Lenine escrevia:

«Seria um grande erro acreditar que o proletariado revolucionário, procurando por assim dizer «vingar-se» dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques que apoiaram o esmagamento dos bolcheviques, as execuções na frente e o desarmamento dos operários, seria capaz de recusar «apoiá-los» face à contra-revolução.»

Dar um apoio técnico, mas não político. Contra o apoio político, Lenine prevenia resolutamente numa das suas cartas ao Comité central:

«Nós não devemos apoiar, mesmo no momento, o governo de Kerensky. Isso seria faltar aos princípios. Perguntar-se-à: não é preciso bater-se contra Kornilov? Com certeza! Mas não é a mesma coisa, há aqui um limite; ele é ultrapassado por certos bolcheviques que caiem no «espírito conciliador», deixando-se arrastar pela torrente dos acontecimentos.»

Lenine sabia interpretar de longe as nuanças nos movimentos de opinião política. No 29 de Agosto, na sessão da Duma municipal de Kiev, um dos dirigentes bolcheviques do lugar, G. Piatakov, declara:

«Nesta hora de perigo, nós devemos esquecer as velhas querelas... para nos unir com todos os partidos revolucionários que querem levar adiante uma batalha à contra-revolução. Apelo à unidade», etc.

Era justamente o tom político falso contra o qual Lenine prevenia. «Esquecer as velhas querelas», era abri novos créditos aos candidatos à bancarrota.

«Nós faremos, nós faremos  a guerra a Kornilov – escrevia Lenine – mas não apoiaremos Kerensky, nós denunciamos a sua fraqueza. Há uma diferença... As frases... sobre o apoio a dar ao governo provisório, etc., etc., devem ser combatidas implacavelmente, precisamente como frases.»

Os operários não faziam qualquer ilusão sobre o carácter do seu «bloco» com o palácio de Inverno. «Ao lutar contra Kornilov, o proletariado combaterá não a ditadura de Kerensky, mas por todas as conquistas da revolução» - assim se exprimiam as fábricas, uma após outra, em Petrogrado, em Moscovo, na província. Não fazendo a menor concessão política aos conciliadores, não confundindo nem as organizações nem as bandeiras, os bolcheviques estavam, como sempre, prontos a coordenar os seus actos com um adversários e inimigo se isso desse a possibilidade de golpear outro inimigo mais perigoso no momento presente.

Na luta contra Kornilov, os bolcheviques perseguiam «fins particulares». Sokhanov indica por aí que eles davam-se por tarefa transformar o Comité de defesa num instrumento para a insurreição proletária. Que os comités revolucionários das jornadas kornilovianas se tornassem até um certo grau a pré-figuração de órgãos que dirigem a seguir o levantamento do proletariado, é indiscutível, mas Sokhanov atribui mesmo assim aos bolcheviques uma excessiva perspicacia quando ele pensa que tinham previsto esse ponto na organização. Os «objectivos particulares» consistiam em esmagar a contra-revolução, a desligar se fosse conseguido os cadetes dos conciliadores, em agrupar o mais possível as massas sob a direcção bolchevique, em armar o maior número possível de operários revolucionários. Os bolcheviques não escondiam esses objectivos. O partido perseguido socorria o governo da repressão e da calúnia; mas salvava-o da derrota militar para o mais seguramente o matar politicamente.

As últimas jornadas de Agosto produziram novamente uma brusca deslocação nas relações de força, desta vez da direita para a esquerda. As massas chamadas à luta restabeleceram sem esforço a situação que os sovietes tinham tido antes da crise de Julho. A partir de então, a sorte dos sovietes está de novo nas suas próprias mãos. O poder pode ser tomado pelos sovietes sem combate. Para isso, os conciliadores só necessitam consolidar o que se formou já na realidade. Toda a questão é de saber se eles o quererão... Num momento de entusiasmo, os conciliadores declararam que a coligação com os cadetes não se pode mais considerar. Se é assim, ela é inconcebível em geral. A mudança de atitude da coligação não pode significar outra coisa senão a passagem do poder aos conciliadores.

Lenine compreendeu imediatamente o essencial da nova situação para daí tira as deduções indispensáveis. No 3 de Setembro, ele redige o seu notável artigo Sobre os compromissos. O papel dos sovietes modificou-se de novo, constatou: no início de Julho, eles eram os órgãos da luta contra o proletariado; no fim de Agosto, eles tinham-se tornado os órgãos da luta contra a burguesia. Os sovietes reencontraram as tropas à sua disposição. A história reabriu de novo a possibilidade de um desenvolvimento pacífico da revolução. É uma possibilidade excepcionalmente rara e preciosa: é preciso tentar realizá-la. Lenine troça de passagem daqueles que julgam inadmissível os compromissos, quaisquer que sejam : o problema consiste «através de todos os compromissos na medida onde eles são inevitáveis», em realizar os próprios objectivos e tarefas.

«O compromisso, do nosso lado – diz, é o nosso regresso à reivindicação de antes de Julho: todo o poder aos sovietes, um governo de socialistas-revolucionários e de mencheviques responsáveis diante dos sovietes. Agora, e somente agora, talvez no total durante alguns dias, ou então uma ou duas semanas, um tal governo poderia constituir-se e consolidar-se pacificamente.»

A brevidade do prazo fixado devia caracterizar toda a gravidade da situação: os conciliadores têm os seus dias contados para escolher entre a burguesia e o proletariado.

Os conciliadores apressaram-se a afastar a proposição leninista como uma armadilha perfídia. Na realidade, a proposição não tinha ponta de malícia: persuadidos que o seu partido tinha sido chamado a tomar a cabeça da nação. Lenine fez uma tentativa franca para atenuar a luta, enfraquecendo a resistência dos adversários que ele colocava diante do inevitável.

As audaciosas evoluções de Lenine que provinham sempre de uma modificação da própria situação e conservam invariavelmente nelas a unidade da concepção estratégica, constituem uma escola considerável de estratégia revolucionária. A proposição do compromisso tinha o sentido de uma lição das coisas, antes de tudo para o próprio partido bolchevique. Ela mostrava que, apesar da experiência feita com Kornilov, não restava mais aos conciliadores senão a via da revolução. O partido dos bolcheviques sentiu-se definitivamente, após isso, o único partido da revolução.

Os conciliadores recusaram desempenhar o papel de transmissão, passando o poder das mãos da burguesia para as do proletariado, como, em Março, eles tinham jogado um papel de transmissão, ganhando o poder das mãos do proletariado para as da burguesia. Mas, mesmo por aí, a palavra de ordem do «poder para os sovietes» continuava suspendida, não por muito tempo, todavia: alguns dias depois, os bolcheviques obtiveram a maioria no Soviete de Petrogrado, e depois um bom número de outros. A palavra de ordem do «poder para os sovietes» não foi, por consequência, retirada uma segunda vez da ordem do dia, mas tomou um novo sentido: todo o poder para os sovietes bolcheviques. Sob este aspecto, a palavra de ordem deixava definitivamente de ser a de uma evolução pacífica. O partido comprometeu-se na via da insurreição armada, através dos sovietes e em nome dos sovietes.

Para compreender o desenvolvimento ulterior, é indispensável colocar uma questão: de qual maneira os sovietes conciliadores tinha recuperado no início de Setembro o poder que eles tinham perdido em Julho? Através das resoluções do VIº Congresso afirmou-se claramente esta ideia constante que pelos resultados dos acontecimentos de Julho, a dualidade de poderes se viu liquidada, tendo sido substituida pela ditadura da burguesia. Os últimos historiadores soviéticos reproduziram de um livro para outro a mesma ideia, nem mesmo tentando fazer disso uma nova apreciação à luz dos acontecimentos que se seguiram. Além disso, eles não se colocaram esta questão: se, em Julho, o poder tinha sido inteiramente passado para as mãos da clique militar, porquê então esta mesma clique teve que recorrer à insurreição em Agosto? Compromete-se na via arriscada de uma conspiração não aquele que possui o poder, mas aquele que quer apoderar-se dele.

A formula do VIº Congresso era, pelo menos, inexacta. Se denominarmos «dualidade de poderes» o regime sob o qual havia uma ficção de poder entre as mãos do governo oficial, enquanto que a força real estava entre as mãos do Soviete, não há qualquer motivo para afirmar que a dualidade de poderes está terminada a partir do momento onde uma porção real poder passou do Soviete à burguesia. Do ponto de vista das tarefas de combate do momento, devia-se e podia-se sobrestimar a concentração nas mãos da contra-revolução. A política não é uma matemática. Praticamente, era infinitamente mais perigoso em subestimar o significado da mudança ocorrida que de a exagerar. Mas a análise histórica não necessita dos exageros da agitação. Simplificando o pensamento de Lenine, Estaline dizia ao Congresso:

«A situação é clara. Agora, ninguém não fala da dualidade de poderes. Se, antes, os sovietes representavam uma força real, agora são somente os órgãos de agrupamentos de massas, não possuindo qualquer poder.»

Certos delegados replicavam nesse sentido que em Julho era a reacção que tinha triunfado, mas não a contra-revolução que tinha vencido. Estaline respondia a isso por um aforismo inesperado: «Na realidade, a revolução não ganha senão através de uma série de reacções alternadas: ela faz sempre um passo atrás após dois em frente. O relatório da reacção em relação à contra-revolução é o de uma reforma em relação a uma insurreição. Pode-se chamar «vitórias da reacção» as modificações no regime que aproximam este das necessidades da classe contra-revolucionária, sem mudar portanto o detentor do poder. Mas a vitória da contra-revolução é inconcebível sem a passagem do poder para as mãos de outra classe. Essa passagem decisiva não foi o produto de Julho.

«Se o levantamento de Julho era uma meia insurreição – escreveu muito justamente, alguns meses mais tarde, Bukharine, que não soube, portanto tirar das suas próprias palavras as deduções necessárias -  vitória da contra-revolução foi a um certo grau um meia vitória.» Mas uma semi-vitória não podia dar à burguesia o poder. A dualidade de poderes reconstruiu sobre outras bases, se transformou, mas não desapareceu. Nas fábricas, como antes, não havia nada a fazer contra a vontade dos operários. Os camponeses conservavam o poder ao ponto de recusar aos proprietários nobres o uso dos seus direitos de propriedade. Os chefes dos exércitos sentiam-se intranquilos diante dos soldados. Mas o que é o poder, se não a possibilidade material de dispor da força militar e da propriedade? No 13 de Agosto, Trotsky escrevia, sobre os movimentos que se tinham produzido: «O assunto não se limita ao facto que ao lado do governo se mantinha o Soviete que preencheu um grande número de funções governamentais, se erguiam dois regimes diferentes que se apoiavam sobre classes diferentes... Implantado lá no alto, o regime da República capitalista e, formado em baixo o regime da democracia operária se paralisavam um ao outro.»

É absolutamente indiscutível que o Comité executivo central tinha perdido a sua grande importância. Mas é errado acreditar que a burguesia tinha obtido tudo o que as cúpulas conciliadoras tinham perdido. Estes últimos perdiam não somente à direita, mas à esquerda, não somente em proveito das cliques militares, mas em proveito dos comités de fábrica e de regimentos. O poder se descentralizava, se quebrava, desaparecia parcialmente debaixo da terra como as armas que os operários tinham escondidas após a derrota de Julho. A dualidade de poderes deixou de ser «pacífica», em guardar o seu contacto e a sua regra. Ela tornou-se mais clandestina, descentralizada, mais polarizada e explosiva. No fim de Agosto, a dualidade de poderes dissimulada se transformou de novo em dualidade activa. Veremos qual importância esse facto adquiriu em Outubro.


Inclusão 09/02/2012