História da Revolução Russa

Léon Trotsky


O exército e a guerra


Já, no decurso dos meses que precederam a revolução, a disciplina no exército tinha sido fortemente abalada. Pode-se notar bastantes queixas de oficiais na época: os soldados faltam de respeito aos oficiais, o tratamento dos cavalos, do equipamento e mesmo da armas estava abaixo de toda a crítica, a desordem reinava nos comboios militares. A situação não era ruim sob todos os aspectos. Mas por todo o lado ela ia na mesma direcção: a caminho da decomposição.

Agora juntava-se o tremor da revolução. O levantamento da guarnição de Petrogrado produziu-se não somente sem a adesão dos oficiais, mas contra eles. Nas horas críticas, os comandantes furtaram-se simplesmente. Chidlovsky, deputado outubrista, encontrou-se, no dia 27 de Fevereiro, com oficiais do regimento Preobrajensky, evidentemente com o objectivo de conhecer a atitude deles em relação à Duma, mas, entre os aristocratas da Guarda, ele deparou-se com a incompreensão completa do que se passava, talvez, mesmo assim, meio simulada: todos os homens eram monarquistas assustados. «Qual foi o meu espanto – conta Chidlovsky – quando, na manhã seguinte, vi todo o regimento Preobranjensky desfilar em ordem na rua, com a banda de música, sem um oficial...» Na verdade, alguns contingentes vieram ao palácio Tauride com os seus chefes, ou, mais exactamente, levaram os chefes com eles. Os oficiais, no cortejo triunfal, sentiam-se de certa forma prisioneiros. A condessa Kleinmichel, que como detida observou a cena, exprimiu-se com mais clareza: os oficiais pareciam carneiros levados para o matadouro.

A Revolução de Fevereiro não criou divisão entre soldados e oficiais, ela simplesmente mostrou-a à luz do dia. No espírito dos soldados, a insurreição contra a monarquia era antes de tudo um levantamento contra os oficiais. «Desde da manhã do 28 de Fevereiro – escreveu nas suas Memórias o cadete Nabokov, que trajava nesse tempo o uniforme de oficial – era perigoso sair de casa, porque já arrancavam os galões dos oficiais.» Assim se apresentava na guarnição o primeiro dia do novo regime!

A primeira preocupação do comité executivo foi reconciliar os soldados com os oficiais. Isso significava em resumo simplesmente que se substituía a tropa sob o antigo comando. O regresso dos oficiais nos seus regimentos devia, segundo Sokhanov, preservar o exército «da anarquia geral ou da ditadura da soldadesca sombria e incoerente». Esses revolucionários, assim como os liberais, temiam não os oficiais mas os soldados. Todavia, os operários, de acordo com «a sombria soldadesca», apreendiam toda as desgraças precisamente do lado dos brilhantes oficiais. A reconciliação obtida não era, por consequência, sólida.

Stankevitch descreveu da maneira seguinte a atitude dos soldados em relação aos oficiais que voltaram após a insurreição: «Os soldados, ao violarem a disciplina e saindo dos quartéis sem os oficiais, mas sobretudo em muitos casos contra a vontade destes últimos, matando mesmo alguns deles que faziam o seu dever, pensaram ter cumprido uma grande façanha emancipatória. Se isso foi uma façanha, e se os próprios oficiais agora o afirmam, porquê os chefes não os fizeram sair para a rua? Enfim, para eles teria sido mais fácil e menos perigoso. Agora, a vitória adquirida, eles juntaram-se aos corajosos vencedores. Mas é sincera e duradoura?» Essas palavras são tanto mais instrutivas que o seu autor pertence ele próprio a esses oficiais «de esquerda» que não tiveram a mínima ideia de os levar para a rua.

Na manhã do dia 28, na Perspectiva Sampsonievsky, um oficial de engenharia explicou aos seus soldados que «o governo detestado de todos tinha sido derrubado», que um novo tinha sido formado, com o príncipe Lvov à cabeça, e que, seguidamente, era preciso obedecer aos oficiais. «E agora, peço a cada um de voltar ao seu posto no quartel.» Alguns soldados gritaram a formula usual: «Feliz de estar às suas ordens!» Mas a maioria parecia desorientada: então, é tudo? Por acaso, Kaiorov presenciou a cena. Ele ficou impressionado. «Permita-me de dizer uma palavra, senhor comandante»... E, sem esperar pela autorização, Kaiorov colocou a seguinte questão: «Foi para substituir um proprietário por outro, nas ruas de Petrogrado, durante três dias, que o sangue dos operários foi derramado?» Kaiorov, mais uma vez, agarrava o boi pelos cornos. A questão que ele colocava foi objecto da luta nos meses seguintes. O antagonismo entre o soldado e o oficial era o reflexo da hostilidade entre o camponês e o proprietário nobre.

Na província, os chefes da tropa, tendo evidentemente recebido a tempo as instruções, expunham os acontecimentos de uma maneira uniforme: o soberano tinha, diziam eles, esgotado as suas forças na preocupação da defesa do país e foi forçado a transmitir a pesada responsabilidade do governo ao irmão. Via-se, ao olhar os soldados – declara lamentando-se, um oficial num lugarejo da Crimeia. Via-se que, para eles, Nicolau ou Miguel, era um só. Portanto, quando, o mesmo chefe é forçado, na manhã seguinte, a anunciar ao batalhão a vitória da revolução, os soldados, segundo as suas próprias palavras, transfiguraram-se. Suas questões, gestos, olhares, testemunhavam claramente um «longo e perseverante trabalho realizado com insistência por alguém sobre os cerebros escuros, cinzentos, não acostumados a pensar». Que abismo entre o oficial cujo cerebro se adapta sem dificuldades ao último telegrama de Petrogrado e esses soldados que, ainda que penosamente, determinam honestamente a sua atitude diante dos elementos, avaliando-as eles próprios.

O alto comando, tendo reconhecido, formalmente, a insurreição, decidiu geralmente não deixar a revolução ganhar a frente. O chefe do estado-maior do Grande Quartel General ordenou aos comandantes da frente, no caso que se apresentassem no seu sector delegações revolucionárias, que o general Alexeiev chamava «bandas», de os prender imediatamente e de os levar ao tribunal marcial logo ali. No dia seguinte, o mesmo general, em nome da sua alteza «o grão-duque Nicolau Nicolaievitch, exigia do governo «que ele meta fim a tudo o que se produzia na retaguarda do exército, isto é à revolução.

O comandante diferia tanto que possível informar o exército da frente sobre a insurreição, não por fidelidade à monarquia mas por temer a revolução. Sobre certas frentes foi estabelecida uma verdadeira quarentena: as cartas de Petrogrado eram interceptadas, os mensageiros presos – o antigo regime queria assim algumas horas de eternidade. A notícia da revolução não atingiu a linha de fogo senão cerca do 5 ou 6 de Março, mas sob qual forma? Ouvimos pouco mais ou menos isto: o grão-duque foi nomeado generalíssimo, o czar abdicou em nome da pátria e foi tudo. Em muitas trincheiras, talvez mesmo na maior parte, as informações sobre a revolução vieram do lado alemão em vez de Petrogrado. Haveria ainda dúvidas, entre os soldados, que todo o comando não foi conjurado para dissimular a verdade? E os soldados podia dar o menor crédito a esses mesmos oficiais que, no dia seguinte ou depois, trajavam fitas vermelhas?

O chefe do estado-maior da frota do mar Negro conta que a notícia dos acontecimentos de Petrogrado não teria tido influência sobre os marinheiros. Mas desde que chegaram da capital os primeiros jornais socialistas, «num piscar de olhos, o estado de espírito das tripulações modificou-se, as reuniões política começaram e, das rachas, saíram rastejando os agitadores criminosos». O almirante não compreendeu o que se passava sob os seus olhos. Não foram os jornais que provocara a mudança nos espíritos. Eles dissiparam somente as dúvidas dos marinheiros sobre a profundidade da insurreição e permitiram às tripulações de se manifestar abertamente seus verdadeiros sentimentos, o temor das represálias do lado do comando tendo desaparecido. A fisionomia política dos oficiais do mar Negro, e a sua própria são caracterizadas pelo mesmo autor numa só frase: «A maioria dos oficiais considerava que sem o czar a pátria perder-se-ia.» Os democratas pensavam que a pátria se perderia se tais luzes não fossem devolvidas aos obscuros marinheiros.

O comando do exército e da frota partilhavam duas alas distintas: uns tentavam manter-se nos seus postos, compunham com a revolução, inscreviam-se no partido socialista-revolucionários, e, mais tarde, alguns deles tentaram mesmo infiltrar-se entre os bolcheviques. Os outros, em contrapartida, tentavam opor-se à nova ordem, mas logo perdiam o pé num conflito e eram levados pela corrente dos soldados que subia. Tais grupos são tão naturais que eles se reproduzem em todas as revoluções. Os oficiais intransigentes da monarquia francesa, os que, segundo os termos de um deles, «lutaram até ao fim», sofreram menos da insubordinação dos soldados que o servilismo de certos colegas nobres. No fim de contas, a maioria do antigo comando era eliminada, esmagada, e foi somente uma pequena parte que se reeducou e se adaptou. Os oficiais partilhavam somente, mas de uma forma dramática, a sorte das classes nas quais eles tinham sido recrutados.

O exército representa em geral uma imagem da sociedade que ele serve, distinguindo-se no facto que ele dá às relações sociais um carácter concentrado, levando até ao extremo os seus traços negativos e positivos. Não é por acaso que a guerra, do lado russo, não valorizou nenhum nome de grande capitão. O alto comando é caracterizado de uma maneira suficientemente brilhante por um dos seus: «Muito aventureirismo, muita ignorância, muito egoísmo, intrigas, carreirismo, cupidez, incapacidade, falta de perspicácia – escreveu o general Zalessky – e muito pouca ciência, talentos, preparação, pouca vontade de se arriscar, mesmo de arriscar o conforto e a saúde». Nicolau Nicolaievitch, que foi o primeiro generalíssimo, distinguia-se somente pela sua altura e a sua obscenidade de muita augusta personagem. O general Alexeiev, mediocridade cinzenta, decano de qualquer modo dos escrivões do exército, ganhava pela assiduidade. Kornilov, capitão decidido, era considerado, mesmo pelos seus admiradores como um simples de espírito. Verkhovsky, ministro da Guerra de Kerensky, declarou mais tarde sobre Kornilov que era um coração de leão com uma cabeça de ovelha. Brossilov e o almirante Koltchak eram em certa medida, admitamos, superiores aos outros pela sua intelectualidade, e era tudo; a Denikine não lhe faltava carácter, mas, para o resto, era um vulgar general do exército, que tinha talvez lido cinco ou seis livros. Vinha a seguir os Iudenith, os Dragomirov, os Lokomsdy, sabendo ou não francês, simplesmente bebedores, grandes bebedores, mas perfeitas nulidades.

Na oficialidade foram, na verdade, largamente representados não somente a Rússia dos nobres, mas a da burguesia e da democracia. A guerra lançou nas fileiras do exército dezenas de milhares de oficiais, jovens da pequena burguesia – oficiais, funcionários da administração militar, médicos, engenheiros. Esses círculos, partidários da guerra até à vitória, ressentiam a necessidade de algumas grandes medidas, mas submetiam-se, no fim de contas, às altas esferas reaccionárias – por medo, do tempo do czarismo, e por convicção após a revolução – assim como a democracia, na retaguarda, subordinavam-se à burguesia. Os elementos conciliadores da oficialidade partilhavam a funesta sorte dos partidos conciliadores com a diferença, que, sobre a frente, a situação se desenhava desmesuradamente mais grave. No comité executivo mantinham-se por equívocos, mas, diante dos soldados, era mais difícil.

Os ciúmes e os conflitos entre oficiais democratas e aristocratas, sem conseguir renovar o exército, introduziram aí somente um novo elemento de decomposição. A fisionomia do exército estava determinada pela velha Rússia e ela estava marcada pela servidão. Tal como outrora, os oficiais consideravam como o melhor soldado o jovem camponês que obedecia sem pensar e em quem ainda não tinha despertado a consciência da sua personalidade humana. Tal era a tradição «nacional», sovoroviana, do exército russo, que se tinha apoiado sobre uma agricultura primitiva, sobre o direito da servidão e a comunidade agrária. No século XVIII, Sovorov obtinha ainda prodígios com esse material.

Leão Tolstoi idealizou com uma predilecção de grande senhor, no seu Platão Karataiev, antigo tipo de soldado russo que se submete sem vacilar à natureza, ao arbítrio e à morte («A guerra e a paz»). A Revolução francesa, tendo aberto uma maravilhosavia de penetração do individualismo, em todos os domínios da actividade humana, anulou a arte militar de Sovorov. No decorrer do século XIX assim como no século XX, durante o lapso de tempo que separa a Revolução francesa da revolução russa, o exército czarista, como exército feudal, foi invariavelmente batido. O comando que se tinha constituido sobre esse terreno «nacional» distinguia-se pelo desprezo da personalidade do soldado, por um espírito de mandarinismo passivo, pela ignorância do ofício, pela completa falta de heroísmo e por um notável dom de vigarice. A autoridade da oficialidade assentava sobre os sinais exteriores da distinção, sobre o ritual das marcas de respeito, sobre o sistema das repressões e mesmo sobre uma certa linguagem convencional, ignóbil dialecto de escravos «incluindo, ignoro» - língua que o soldado devia manter ao dirigir-se ao oficial.

Ao aceitar verbalmente a revolução e prestando juramento ao governo provisório, os marechais do czar faziam simplesmente cair sobre a dinastia derrubada as suas próprias faltas. Eles aceitavam graciosamente que Nicolau II fosse declarado o bode expiatório de todo o passado. Mas, quanto a ir mais longe, alto lá! Como teriam eles compreendido que a essência moral da revolução fosse animar a massa humana sobre a imobilidade espiritual sobre a qual foi construido todo o seu bem estar? Designado para comandar a frente, Denikine declarou em Minsk: «Admito a revolução totalmente e sem restrições. Mas considero perigoso para o país revolucionar o exército e de aí introduzir a demagogia.» Formula clássica do pensamento obtuso de um general! No que diz respeito aos generais subalternos, eles sóreclamavam, segundo os termos de Zalessky, uma coisa: «Não nos toquem, e, pelo resto, nada nos importa?» Todavia, a revolução não podia dispensar de os tocar. Saídos das classes privilegiadas, nada podiam ganhar, mas muito a perder. Estavam ameaçados de ter de abandonar não somente seus privilégios de comandantes, mas também as sua grandes propriedades. Ao mesmo tempo que fingiam uma atitude lealista em relação ao governo provisório, a oficialidade reaccionária travou uma luta tanto mais encarniçada contra os sovietes. E quando ela se convenceu que a revolução penetrava irresistivelmente nas massas dos soldados e nas suas terras, o comando considerou esse facto como uma traição nunca vista da parte de Kerensky, de Miliokov, e de Rodzianko. Dos bolcheviques também, é preciso dizer?

As condições de existência da frota de guerra, mais que as do exército, comportavam os germes vivos e permanentes da guerra civil. A vida dos marinheiros em caixas de ferro onde são empilhados à força por vários anos, continua a não se distinguir, mesmo sob o ponto de vista alimentar, da existência de presídios. Além disso, os oficiais, pertencendo na maior parte aos círculos privilegiados, tendo escolhido a vocação e de sua plena vontade o serviço da marinha, identificavam a pátria ao czar, o czar a eles próprios, e no marujo viam a parte menos preciosa de um navio de guerra. Dois mundos estranhos um ao outro e fechados vivem em contacto estreito, não deixando de ter olho um no outro. As embarcações tinham as suas bases nas cidades marítimas industriais, contando um grande número de operários indispensáveis para a construção e a reparação de navios. Além disso, as equipagens das máquinas e dos serviços técnicos, nos navios, eram compostas por um bom número de operários qualificados. Eis as condições que transformavam a frota de guerra numa mina revolucionária. Nas insurreições elevantamentos militares de todos os países, os marinheiros constituem o elemento mais explosivo: quase sempre, desde da primeira possibilidade, eles exerciam rigorosas represálias sobre os oficiais. Os marinheiros russos não foram excepção.

Em Cronstadt, a insurreição acompanhou-se de uma explosão desangrenta vingança contra os chefes que, assustados pelo seu próprio passado, tentaram dissimular a revolução aos marinheiros. Uma das primeiras vítimas foi o comandante da frota, o almirante Viren, que gozava de um ódio bem merecido. Uma parte dos oficiais fora presa pelos marujos. Os que foram deixados em liberdade foram desarmados.

Em Helsingfors e em Sveaborg, o almirante Nepenine não deixou chegar nenhuma notícia de Petrogrado insurgido até à noite do 4 de Março, intimidando os marinheiros e os soldados ameaçando-os de repressão. O levantamento, desse lado, rebentou com mais violência e durou uma noite e um dia. Numerosos oficiais foram presos. Entre eles, os mais detestados foram jogados para debaixo do gelo. Considerando o que conta Skobelev sobre o comportamento das autoridades de Helsingfors e da frota – escreveu Sokhanov, portanto pouco indulgente em relação «à obscura soldadesca» - só nos devemos admirar que esses excessos tenham sido significantes.»

Mas, no exército igualmente, não faltaram as represálias sangrentas que se produziram por vagas sucessivas. No início, vingavam-se do passado, dos infames tratamentos infligidos aos soldados. As más lembranças, ardentes como úlceras, não faltavam. A partir de 1915, onde se tinha oficialmente estabelecido no exército czarista o castigo disciplinar das vergastadas, os oficiais faziam, segundo as suas conveniências, fustigar os soldados, muitas vezes pais de família. Mas não se tratava sempre e somente do passado. Na conferência pan-russa dos sovietes, o relator sobre a questão do exército comunicou que, entre o 15 e o 17 de Março, tinham ainda ordenado, no exército da frente, castigos corporais aos soldados. Um deputado da Duma regressado da frente contava que os Cossacos, na ausência dos oficiais, lhe tinham declarado o seguinte: «Olhe, você fala da ordem dada (trata-se, ao que parece da famosa «ordem Nº 1», sobre a qual falaremos mais tarde). Recebemos ontem, e portanto, hoje, o comandante bateu-me na cara.» Os bolcheviques tal como os conciliadores preveniam os excessos entre os soldados. Mas as vinganças sangrentas também eram tão inevitáveis como o coice de uma arma após um tiro. De qualquer modo, ao dizer da Revolução de Fevereiro que ela não foi sangrenta, os liberais fundavam-se no facto de terem recebido o poder.

Certos oficiais encontraram meio de provocar violentos conflitos a propósito das fitas vermelhas que, aos olhos dos soldados, eram o símbolo da ruptura com o passado. Assim teve lugar o assassinato do comandante do regimente de Somy. Um comandante tendo exigidos de um efectivo de complemento chegado de novo, que retirassem a fita vermelha, foi detido pelos soldados. Houve também um bom número de choques sobre os retratos do czar que não foram retirados dos locais oficiais. Seria a fidelidade da monarquia? Na maioria dos casos, não era senão suspeita sobre a solidez da revolução e precaução pessoal para o futuro. Mas os soldados não estavam errados ao discernir por detrás dos retratos, o espectro emboscado do antigo regime.

Medida irreflectidas vindas do alto, sobresaltos em baixo estabeleciam o novo regime no exército. A autoridade disciplinar dos oficiais não foi abolida nem limitada: ela caiu simplesmente durante as primeiras semanas de Março. «Era claro – disse o chefe do estado-maior do mar do Norte – que se um oficial tentasse aplicar uma pena disciplinar a um marinheiro, não havia força para obter a execução.» Aí vê-se um dos sintomas de uma verdadeira revolução popular.

Desde da queda do poder disciplinar, a incapacidade prática da oficialidade não foi dissimulada por acaso. Stankevitch, a quem não se pode recusar nem o dom da observação, nem o interesse pela coisa militar, exprime-se em termos perturbadores sobre o comando, mesmo desse lado: a instrução fazia-se ainda segundo os antigos regulamentos que não respondiam mais às exigências da guerra. «Tais exercícios eram provas de resistência e de submissão dos soldados.» A oficialidade esforçava-se, bem entendido, em deitar a culpa da sua incapacidade sobre a revolução.

Diligentes com os ajustamentos de contas impiedosos com o punho, os soldados também inclinavam-se à credulidade infantil e a uma gratitude cheia de abnegação. Durante um curto momento, o deputado Filonenko, padre e liberal, parecia aos soldados da frente ser o portador das ideias de emancipação, o pastor da revolução. As velhas concepções eclesiásticas aliaram-se estranhamente à nova fé. Os soldados traziam o padre em triunfo, levantavam-no acima das cabeças, instalavam-no com muitas amabilidades no seu trenó, e sufocando-o de entusiasmo, reportava na Duma: «Não podemos acabar com os nossos adeus. Eles beijam-nos as mãos e os pés.» Parecia a esse deputado que a Duma teve no exército uma formidável autoridade. Na realidade, a autoridade pertencia à revolução e era ela que jogava o seu reflexo embaciado sobre certas figuras aparecidas por acaso.

A erupção simbólica à qual procedeu Gotchkov no alto comando, demitindo algumas dezenas de generais, não dava qualquer satisfação aos soldados, e, ao mesmo tempo, criava nos oficiais superiores um estado de incerteza. Cada um temia não poder mostrar serviço, a maioria deixava andar, adulava e apertava os punhos nos bolsos. Pior ainda, deve dizer-se dos oficiais intermediários e subalternos, que afrontavam os soldados. Desse lado, o governo não fez qualquer saneamento. Procurando as vias legais, os artilheiros de uma bateria da frente escreviam ao comité executivo e à Duma de Estado, sobre o seu comandante: «Irmãos...pedimos-lhes humildemente que afastem o nosso inimigo interno Vantchekhasa.» Como não recebiam resposta, os soldados começavam a agir pelos seus próprios meios: insubordinação, expulsões e mesmo prisões. Foi somente após isso que o comando, despertando, fazia desaparecer da circulação oficiais que tinham sido presos ou maltratados, procurando por vezes punir os soldados, ainda mais, muitas vezes, deixando-os sem castigo, temendo complicar as coisas ainda mais. Assim se criou uma situação intolerável para a oficialidade, a qual, não esclarecia de forma nenhuma a situação dos soldados.

Foram numerosos os oficiais combatentes que, levando a sério a sorte da tropa insistiam na necessidade de um saneamento geral do comando: senão, afiançavam, não se poderia pensar à regeneração das capacidades combativas da tropa. Os soldados submetiam aos deputados da Duma os argumentos não menos convincentes. Mais tarde, quando eles eram vexados, eles deviam se queixar diante dos seus chefes, os quais, habitualmente, não faziam atenção às queixas. Agora, como agir? Pois como o comando era o mesmo, as queixas apresentadas teriam a mesma sorte. «A esta questão, era difícil responder», reconhecia um deputado. Portanto, esta simples questão dizia respeito ao destino e futuro do exército.

Não imaginemos que as relações no exército tenham sido idênticas em todo o país, nas diferentes formações e nas tropas. Não, os contrastes eram consideráveis. Se os marinheiros da frota do mar Báltico reagiram às primeiras notícias da revolução pelas represálias sobre os oficiais, logo ali ao lado, na guarnição de Helsingfors, os oficiais ocupavam ainda no início de Abril dirigiam os sovietes dos soldados e, nos momentos solenes, aparecia, em nome dos socialistas-revolucionários, um imponente general. Tais contrastes de ódio e de confiança não eram raros. Contudo, o exército apresentava um sistema de vasos comunicantes, e as disposições políticas dos soldados e marinheiros tendiam a juntar-se num e mesmo nível.

A disciplina mantinha-se pouco mais ou menos enquanto que os soldados esperavam mudanças rápidas e decisivas. Mas quando viram – declara um delegado da frente – que tudo continuava na mesma, mesma opressão, mesma escravatura, mesmas trevas, mesmas vexações, os sarilhos começaram. A natureza que não tinha premunido todos os humanos, considerou, por infelicidade dar aos soldados um sistema nervoso. As revoluções servem para lembrar de tempos a tempos esta dupla asneira.

Na retaguarda como na frente, as causas acidentais provocariam facilmente conflitos. Tinham cedido aos soldados o direito de frequentar livremente, «em igualdade com todos os cidadãos», os teatros, as reuniões, os concertos, etc.. Numerosos soldados compreenderam que tinham direito à entrada gratuita nos teatros. O ministro explicou-lhes que era necessário compreender «a liberdade» num sentido transcendental. Mas as massas populares insurgidas nunca se mostraram inclinadas ao platonismo nem ao kantismo.

O tecido gasto da disciplina rasgava-se num lado e noutro, em diferentes momentos, nas diferentes guarnições e diversos corpos da tropa. Tal comando, frequentemente, imaginava que, no seu regimento ou na sua divisão, tudo corria bem até à chegada dos jornais ou de um agitador do exterior. Na realidade cumpriam-se o trabalho das forças mais profundas e mais irresistíveis.

O deputado liberal Ianochkevitch relatou da frente esta ideia geral que a desorganização se manifestava sobretudo nas tropas chamadas «verdes», tropas de mujiques. «Nos contingentes mais revolucionários, entendiamo-nos bem com os oficiais.» De facto, a disciplina mantém-se há muito tempo nos dois polos: na cavalaria privilegiada, composta de camponeses abastados, e na artilharia: em geral, nos efectivos técnicos apresentam uma percentagem elevada de operários e de intelectuais. A resistência mais duradoura foi a dos cosacos-proprietários, que temiam uma revolução agrária na qual a maior parte deles tinham somente a perder e nada a ganhar. Certos elementos das tropas cossacas, mais de uma vez, mesmo após a insurreição, executaram tarefas de repressão. Mas para o conjunto, a diferença não consistia nada nos graus de rapidez e os prazos da decomposição.

Na luta surda, houve fluxos e refluxos. Os oficiais tentaram adaptar-se. Os soldados recomeçaram a esperar. Mas, após acalmias temporárias, após dias e semanas de tréguas, o ódio social, que decompunha o exército do antigo regime, a tensão crescia cada vez mais. Cada vez mais vezes ela brilhava com reflexos trágicos. Em Moscovo, num circo, foi convocada uma reunião de inválidos, soldados e oficiais. Um orador, mutilado, do alto da tribuna, falou com vigor para os oficiais. Uma barulheira de protestos surgiu: um ruído de pés, bengalas, muletas. «Há muito tempo, senhores oficiais, que vocês ofendem os soldados à vergastada, a soco?» Feridos, estropiados, homens erguiam-se como muralhas, uns diante dos outros, os soldados mutilados diante dos oficiais mutilados, maioria contra maioria, muletas contra muletas. Nesta cena de pesadelo na arena de um circo, anunciava-se já os furores da guerra civil.

Em todas as relações e contradições, no exército como no país, persistia uma questão que definia uma breve palavra: a guerra. Do Báltico ao mar Negro, do mar do Norte ao Cáspio, mais longe, até à Pérsia, uma imensa frente, mantinham-se sessenta e oito corpos de infantaria e nove de cavalaria. Qual era o seu futuro? E a guerra?

Do ponto de vista do abastecimento da guerra, o exército, no começo da revolução, tinha sido reforçada. A produção interior para as necessidades da frente tinha aumentado: ao mesmo tempo aumentavam as produções de material de guerra, sobretudo da artilharia, vindo dos aliados por Mormansk e Arkhangel. Espingardas, canhões, munições, havia tudo isso numa quantidade infinitamente grande principalmente nos primeiros anos da guerra. Procedia-se à formação de novas divisões de infantaria. Desenvolviam-se as tropas de engenharia. Na base disso, alguns dos infelizes grandes capitães tentaram mais tarde demonstrar que a Rússia encontrava-se na véspera da vitória e que o único impedimento tinha sido a revolução. Doze anos antes, Koropatkine e Linevitch afirmavam, com razão, que Witte os tinha impedido de esmagar os japoneses. Na realidade, a Rússia, no início de 1917, estava mais longe que nunca de vencer. Enquanto que as munições da guerra aumentava, constatou-se no exército, cerca do fim de 1916, uma grande insuficiência de produtos alimentares: a tifus e o escorbuto causavam mais vítimas que os combates. O desespero dos transportes estorvava cada vez mais os movimentos da tropa, o que reduzia a zero as combinações estratégicas ligadas aos importantes deslocações da massas militares. Para cúmulo, uma grande insuficiência da recuperação de cavalos condenava frequentemente a artilharia à imobilidade.

Mas o essencial não estava aí: não se podia contar sobre a moral da tropa. O que se pode formular assim: o exército, como tal, já não existia. As derrotas, as retiradas, as ignomínias cometidas pelos dirigentes tinham completamente abalado o espírito da tropa. Não se podia remediar isso por medida administrativas, tal como não se podia modificar o sistema nervoso do país. O soldado considerava agora uma pilha de projecteis com tanto desgosto que um monte de carne podre: tudo isso parecia-lhe superfluo, inutilizável, era um engano, uma vigarice. E o oficial não podia dizer-lhe nada de convincente e já não ousava partir-lhe a cara. O oficial considerava-se ele próprio enganado pelo alto comando e, ao mesmo tempo, acontecia-lhe muitas vezes sentir-se responsável dos seus superiores diante do soldado. O exército estava irremediavelmente doente. Ele ainda tinha a sua palavra a dizer na revolução. Mas, para a guerra, ele já não existia. Ninguém acreditava na vitória, nem oficiais nem soldados. Ninguém aceitava mais as hostilidades – nem o exército, nem o povo.

Na verdade, as altas chancelarias onde se vivia à parte de si, falava-se ainda, por inércia, das grandes operações, de uma ofensiva na Primavera, da tomada dos estreitos da Turquia. Preparava-se mesmo, na Crimeia, para esse fim, um grande contingente. Os boletins anunciavam que para desencadear uma operação, designava-se os melhores elementos do exército. Foram enviados de Petrogrado homens da Guarda. Todavia, segundo a narração de um oficial que tinha começado a mandar fazer o exercício no 25 de Fevereiro, isto é dois dias antes da insurreição, os efectivos do complemento encontravam-se abaixo de toda a crítica. Não se via vontade de guerrear nos indiferentes olhos azuis, castanhos, cinzentos... «Todos os pensamentos, todos os desejos tendiam somente e exclusivamente para a paz.»

Este tipo de testemunhas não são numerosas. A revolução só manifestou o que se tinha preparado antes dela. A palavra de ordem: «Abaixo a guerra» tornou-se por consequência um dos principais gritos de unidade nos dias de Fevereiro. Ela vinha das manifestações de mulheres, dos operários do bairro de Vyborg e dos quartéis da Guarda.

Quando os deputados percorreram a frente no início de Março, os soldados, sobretudo os mais idosos, perguntavam invariavelmente: «E sobre a terra?» Os deputados respondiam evasivamente que a questão agrária seria resolvida pela Assembleia constituinte. Então elevou-se uma voz que traía o pensamento secreto de todos: «Para que serve a terra? Quando eu morrer, já não precisarei mais dela.» Tal é o ponto de partida do programa revolucionário dos soldados: primeiro a paz, a seguir a terra.

Na conferência pan-russa dos sovietes, no fim de Março, onde se ouvia bastante palavreado patriota, um dos delegados, representante directo dos soldados das trincheiras, expunha com muita exactidão como a frente se tinha comportado em relação à nova revolução: «Todos os soldados disseram: graças a Deus, talvez a paz seja para breve.» As trincheiras tinham encarregado esse delegado de dizer à conferência: «Estamos prontos a sacrificar a nossa vida pela liberdade, mas, todavia, camaradas, nós queremos que termine a guerra.» Era a voz viva da realidade, sobretudo na segunda parte desta reivindicação. Se for necessário aguentar, nós aguentamos, mas apressem-se, lá em cima, a fazer a paz.

As tropas do czar em França, isto é, num meio que lhes era completamente estrangeiro, eram animadas pelos mesmos sentimentos e passavam pelas mesmas etapas de decomposição que o exército que tinha ficado no país. «Quando ouvimos dizer que o czar tinha abdicado – explicava, em terra estrangeira, a um oficial, um soldado de idade madura, camponês iletrado – pensámos aqui que então a guerra ia acabar... Porque é o czar que nos enviou para a guerra... E o que é que faço com a liberdade se devo apodrecer nas trincheiras?» Tal é a autêntica filosofia do soldado, que foi dictada pelo exterior: palavras simples e persuasivas não poderiam ser inventadas por nenhum agitador.

Os liberais e os socialistas meio liberais tentaram logo representar a revolução como um levantamento patriótico. No 11 de Março, Miliokov explicou assim diante dos jornalistas franceses: «A revolução russa foi feita para afastar os obstáculos que se erguiam no caminho da Rússia para a vitória.» Aqui a hipocrisia combina-se com a ilusão, ainda se, devemos pensar, a hipocrisia vence o resto. Francos reaccionários viam isso com mais clareza. Von Struve, paneslavista de raça alemã, ortodoxo de origem luterana e monárquico de formação marxista, definia, ainda se na linguagem do ódio reaccionário, mais exactamente as fontes reais da insurreição. «Na medida que tomaram parte na revolução as massas populares, e particularmente as massas de soldados – escrevia – o movimento não foi uma explosão de patriotismo, foi uma desmobilização espontanea e desastrosa, expressamente dirigida contra a continuidade da guerra, isto é feita para parar as hostilidades.»

Ao mesmo tempo que uma ideia justa, essas palavras inseriam também uma calúnia. A desmobilização desastrosa provinha na realidade da guerra. Não foi uma revolução que a criou – pelo contrário, ela parou-a por um momento. As deserções, extremamente numerosas na véspera da revolução, diminuíram nas primeiras semanas que seguiram a insurreição. O exército mantinha a perspectiva. Esperando que a revolução daria a paz, o soldado não recusa apoiar a frente: de outro modo, o novo governo não poderia portanto concluir a paz.

«Os soldados exprimem esta opinião clara – declarou, no seu relatório do 23 de Março, o chefe de uma divisão de granadeiros – a qual mantemos a defensiva, e não tomar a ofensiva.» Os relatórios militares e as relações políticas reproduzem de diversas maneiras o mesmo pensamento. O alferes Krylenko, velho revolucionário e futuro comandante em chefe dos exércitos bolcheviques, testemunha que, para os soldados, a questão da guerra resolvia-se, nesse tempo, pela formula: «manter a frente, não marchar para a ofensiva». Numa linguagem mais solene e portanto sincera, isso significava defender a liberdade.

«Não plantar as baionetas na terra!» sob a influência de opiniões turvas e contraditórias, os soldados, nesse tempo, recusavam muitas vezes ouvir os bolcheviques. Parecia-lhes talvez, sob a impressão de certos discursos desajeitados, que os bolcheviques não se preocupavam com a defesa da revolução e podiam impedir o governo de concluir a paz. Mais se avançava, mais os soldados estavam convencidos pelos jornais e os agitadores sociais patriotas. Mas, sem permitir por vezes aos bolcheviques falar, os soldados, desde dos primeiros dias da revolução, recusavam firmemente a ideia de uma ofensiva. Os políticos da capital viam aí uma especie de malentendido que se podia afastar se convenientemente pressões fossem exercidas sobre os soldados.

A agitação para a continuidade da guerra aumentou até ao último grau. A imprensa burguesa, com milhões de exemplares, apresentava as tarefas da revolução à luz da guerra até à vitória. Os conciliadores apoiavam esta agitação, primeiro em voz baixa, depois ousadamente. A influência dos bolcheviques, muito fraca no momento da insurreição, diminuiu ainda mais quando os milhares de operários, expedidos para a frente para actos de greve, deixaram as fileiras do exército. A tendência para a paz não encontrava por assim dizer expressão franca e clara precisamente aí onde ela era mais intensa. Os comandantes e comissários que procuravam ilusões consoladoras, encontravam nesta situação a possibilidade de exagerar sobre a realidade das coisas. Nos artigos e discursos dessa época, não é raro afirmar que os soldados teriam recusado tomar a ofensiva unicamente porque eles não compreendiam exactamente a formula «sem anexações nem contribuições». Os conciliadores não se pouparam em explicar que uma guerra defensiva podia comportar também a ofensiva, e mesmo muitas vezes exigi-la. Como se se tratasse de escolástica! Uma ofensiva, era a retoma da guerra. A expectativa sobre a frente, era uma trégua. A teoria e a prática da guerra defensiva, entre os soldados, constituía uma forma de acordo tácito primeiro, mais tarde confessada, com os alemãs: «Não nos toquem e nós não vos tocaremos.» O exército não dá mais à guerra.

Os soldados cediam tanto menos às exortações bélicas que, sob o pretexto de preparar a ofensiva, a oficialidade reaccionária tentava evidentemente retomar as rédeas. Umprovérbio habitual entre os soldados: «A baioneta contra os alemãs, a coronha contra o inimigo interno.» A baioneta de qualquer modo estava destinada à defensiva. Os soldados das trincheiras não pensavam de forma nenhuma na conquista de territórios. O desejo de paz formava uma poderosa corrente subterrânea que devia brevemente surgir na superficie.

Sem negar que, antes da revolução, «notava-se» no exército fenómenos negativos, Miliokovesforçou-se portanto, muito após esta insurreição, provar que o exército teria sido capaz de realizar as tarefas que lhe atribuíam a Entente. «A propaganda bolchevique – escreveu na qualidade de historiador – esteve longe de penetrar o conjunto da frente. Durante um mês ou seis semanas após o início da revolução, o exército continuou são.» Toda a questão é vista aqui sobre o plano da propaganda, como se esgotasse assim o processo histórico. Sob a aparência de combater, com atraso, os bolcheviques aos quais ele atribui uma força mística, Miliokov lutou contra os factos. Já vimos como o exército se apresentou na realidade. Vejamos agora como os próprios chefes avaliavam a sua capacidade combativa nas primeiras semanas e mesmo os primeiros dias que seguiram a insurreição.

A 6 de Março, o general Roussky, comandante da frente Norte, informou o comité executivo que os soldados recusam completamente obedecer à autoridade: é necessário que venham da frente homens populares para restabelecer pelo menos alguma calma no exército.

O chefe do estado-maior da frota do mar Negro conta nas suas Memórias: «Desde dos primeiros dias da revolução, era claro para mim que não se podia continuar a guerra e que a partida está perdida.» Tal foi também a opinião de Koltchak segundo os seus próprios termos, e se ele continuou no seu posto de comandante em chefe da frota, era unicamente para proteger a oficialidade contra os actos de violência.

O conde Ignatiev, que ocupava um posto elevado no comando da Guarda, escrevia, em Março, a Nabokov: «É preciso tomar nota disto que a guerra acabou, que nós não podemos continuar e não a continuaremos. Os homens inteligentes devem imaginar um meio de liquidar a guerra sem dor: ou então produzir-se-à uma catástrofe.» Gotchkov, na mesma época, dizia a Nobokov que recebia tais cartas em grandes quantidades.

Certos julgamentos, aparentemente mais favoráveis, extremamente raros, são habitualmente aniquilados pelos comentários que os acompanham. «Nas tropas, o desejo de vitória subsiste – relata Danilov, comandante do segundo exército – e mesmo, em certos efectivos, aumentou.» Mas, logo depois, esta nota: «A disciplina caiu...É desejável que se adie as operações ofensivas até ao momento de acalmia da situação crítica se acalme (de um a três meses).» Seguidamente este acréscimo inesperado: «Os reforços chegam na proporção de 50%: se continuam a fundir da mesma maneira e se mostram sempre tão indisciplinados não se pode contar sobre o sucesso de uma ofensiva.»

«A divisão é inteiramente capaz de agir pela defensiva», relata o valoroso comandante da 51ª divisão de infantaria. E logo acrescenta: «É indispensável afastar o exército da influência dos deputados soldados e operários.» Portanto, não era assim tão simples!

O chefe da 182ª divisão relata ao comandante do exército: «Cada dia, cada vez mais, manifestavam-se mal-entendidos sobre as coisas que, no fundo, eram bagatelas, mas com um carácter perigoso: os soldados, cada vez mais, enervavam-se assim como os oficiais.»

Até agora, trata-se de testemunhos dispersos, ainda se numerosos. Mas eis que, no 18 de Março, teve lugar, no Grande Quartel General, uma conferência das autoridades supremas sobre a situação do exército. As conclusões das direcções centrais são unanimes.» Nos meses que seguirão, é impossível enviar para a frente efectivos complementares na medida das necessidades, porque se produz a fermentação em todos os contingentes da reserva. O exército está doente. Não se conseguirá provavelmenteacomodar os relatórios entre oficiais e soldados senão em dois ou três meses. (Os generais não compreendiam que a doença só poderia progredir.) Pelo momento, nota-se o desencorajamento na oficialidade, a fermentação nas tropas, um considerável movimento de deserção. A combatividade do exército baixou e é muito difícil contar com ela, presentemente, para caminhar em frente. Conclusão: «É inadmissível executar actualmente operações activas projectadas para a Primavera.»

Nas semanas que seguiram, a situação continuou a piorar rápidamente, e os testemunhos multiplicaram-se interminavelmente.

No fim de Março, o comandante da 5º exército, o general Dragomirov, escreveu ao general Rossky: «O espírito combativo caiu. Não somente os soldados não têm vontade de retomar a ofensiva, mas mesmo a simples perseverança na ofensiva é minimizada a um ponto perigoso para a conclusão da guerra...A política, que se amparou largamente de todas as camadas do exército... determinou toda a massa da tropa adesejar só uma coisa – o fim das hostilidades e o regresso ao lar.»

O general Lukomsky, um dos pilares do Grande Quartel General reaccionário, descontente com os novos costumes, trocou no início da revolução para o comando de um corpo do exército e constatou, segunda a sua narração, que a disciplina não subsistia senão na artilharia e em engenharia, onde se contava muitos oficiais do quadro e soldados readmitidos. «No que respeita as divisões de infantaria, todas as três estavam na via de uma completa decomposição.»

A deserção que tinha diminuído após a insurreição por razões de esperanças suscitadas, retomou com força no seguimento de decepções. Numa semana, do primeiro ao 7 de Abril, desertaram, segundo um comunicado do general Alexeiev, cerca de 8 000 soldados das frentes Norte e Oeste. «É com grande espanto – escrevia ele a Gotchkov – que li os relatórios irresponsáveis sobre a «excelente» moral do exército. Para quê? Nós não enganaremos os alemãs e, para nós, é uma fanfarronada fatal.»

Convém notar que, até aí, quase nunca se faz alusão aos bolcheviques: a maior parte dos oficiais apenas tinha assimilado esta estranha denominação. Se, nos relatórios, trata-se das causas da decomposição do exército, alega-se os jornais, os agitadores, os sovietes, sobretudo a «política», numa palavras, a Revolução de Fevereiro.

Ainda se encontravam alguns chefes optimistas que esperavam que tudo se arranjaria. Mais numerosos eram os que, intencionalmente, fechavam os olhos sobre os factos, temendo causar inconvenientes ao novo poder. E, em contrapartida, um número considerável de oficiais, sobretudo no alto comando, exageravam conscientemente os sintomas de decomposição para obter do governo medidas decisivas que eles próprios, todavia, não se atreviam a dar nome. Mas, no essencial, o quadro é indiscutível. Encontrando diante dela um exército doente, a revolução envolveu o processo com a sua irresistível dissolução nas formas políticas que, em cada semana, era de uma nitidez cada vez mais implacável. A revolução levava até ao fim não somente o ardente desejo da paz, mas também a hostilidade da massa dos soldados em relação ao comando e às classes dirigentes em geral.

Em meados de Abril, Alexeiev fez um relatório pessoal ao governo sobre a moral da tropa, e sem poupar nas cores. «Lembro-me muito bem – escreveu Nabokov – do sentimento de angústia e de desespero que me tomou.» Admita-se que na leitura desse relatório, o qual não dizer respeito senão às primeiras seis semanas da revolução, assistia também Miliokov: é provável que ele fizesse aceitar a Alexeiev na intenção de alarmar os seus colegas e, por seu intermédio, os amigos socialistas. Gotchkov teve efectivamente, após esse relatório, uma entrevista com os representantes do comité executivo. «Não chegamos a catastróficas fraternizações, - gemia. Registou-se casos de completa insubordinação. As ordens dadas são previamentediscutidas nas organizações do exército e nas reuniões políticas. Em tal ou tal contingente, nem se quis ouvir falar de operações activas... Quando homens esperam que a paz será amanhã – observava não somente sem razões Gotchkov – não se pode forçar hoje a sacrificar a vida.» Seguidamente, o ministro da Guerra concluía: «É necessário deixar de falar da paz em voz alta». Mas, como precisamente a revolução tinha aprendido às pessoas a falar em voz alta de tudo que antes guardavam para si, isso significava: é preciso acabar com a revolução.

O soldado, com certeza, desde do primeiro dia da guerra, não tinha vontade nenhuma de morrer, nem de combater. Mas repugnava-o da mesma maneira que um cavalo da artilharia deseja muito de puxar um pesada peça na lama. Tal como o cavalo, o soldado não acreditava poder desembaraçar-se do fardo que lhe tinha caído em cima. Entre a sua vontade e os acontecimentos da guerra, não havia nenhuma relação. Para milhões de soldados, significava o direito a uma melhor existência, antes de tudo, mais geralmente, o direito à vida, o direito de se proteger das balas e dos obuses, como também de preservar o rosto dos socos que aplicavam os oficiais. Nesse sentido, já dissemos que o processo psicológico essencial no exército consistia num despertar da personalidade. Na erupção vulcânica do individualismo que tomava frequentemente as formas anárquicas, as classes cultivadas viam uma tradição em relação à nação. Ora, na realidade, nas tumultuosas manifestações de soldados, nos seus protestos desenfreados, mesmo nos seus excessos sanguinários, era somente a nação que se formava com materiais brutos, impessoais, pré-históricos. O transbordamento, tão detestável para a burguesia, do individualismo das massas, era provocado pelo carácter da Revolução de Fevereiro, precisamente porque era uma revolução burguesa.

Mas aí não era o seu único conteúdo. Porque, independente do camponês e do seu filho soldado, o operário participava na revolução. Há muito tempo o operário tinha a sua dignidade pessoal, tinha entrado na guerra não somente com ódio por esta, mas com a ideia de a combater, e a revolução significava para ele não somente o simples facto de uma vitória, mas também um triunfo parcial das suas ideias. O derrube da monarquia foi para ele a primeira etapa, e não parava aí, apressando-se para outros objectivos. Toda a questão era para ele saber em que medida seria apoiado pelo soldado e camponês. «Para que serve a terra, quando eu abalar?» perguntava o soldado. «Para que me serve a liberdade, dizia ele como o operário, diante das portas do teatro inacessíveis para ele – se as chaves da liberdade estão nas mãos dos mestres?» Assim, através do caos indescritível da Revolução de Fevereiro, brilhava já os contornos de aço de Outubro.


Inclusão 01/06/2010