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O aspecto essencial e o mais constante de história da Rússia, é a lentidão da evolução do país, tendo como consequências uma economia atrasada, uma estrutura social primitiva, um nível de cultura inferior.
A população da planície imensa um clima rigoroso, aberto aos ventos de Este e às migrações asiáticas, estava condenada pela própria natureza à estagnação prologada. A luta contra os nómadas durou quase até ao fim do século XVII. A luta contra os ventos que trazem as geadas no Inverno e a seca no Verão não terminou nos nossos dias. A agricultura – base de todo o desenvolvimento – progredia pelas vias extensivas: no Norte, cortavam-se e queimava-se as florestas; no Sul, as estepes virgens eram transtornadas. Tomava-se posse da natureza no sentido da largura e não em profundidade.
Na época onde os Bárbaros do Ocidente se instalavam nas ruínas da civilização romana e utilizavam tanto as pedras antigas como materiais de construção, os Eslavos do Oriente não encontraram nenhuma herança nas suas planícies sem alegria : o nível de seus predecessores tinha sido ainda mais baixo. Os povos da Europa ocidental, em breve bloqueadas nas suas fronteiras naturais, criariam as aglomerações económica e culturais das cidades industriais. A população da planície oriental, começava a sentir-se apertada, penetrava nas florestas ou emigrava para a periferia, na estepe. Os elementos camponeses dotados de iniciativa e os mais empreendedores tornavam-se, do lado Oeste, citadinos, artesãos, comerciantes. No Este, certos elementos activos, audaciosos estabeleciam-se como comerciantes, mas, em maior número, tornavam-se cossacos, alfandegários ou colonos. O processo de diferenciação social, intensa no Ocidente, atrasava no Oriente e se diluía-se por extensão. “O czar de Moscóvia” – mesmo se cristão – governa as pessoas de espírito preguiçoso” escrevia Vigo, contemporâneo de Pedro I. O “espírito preguiçoso” dos moscovitas reflectia o ritmo lento da evolução económica, a amorfia das relações entre as classes, a indigência da história interior.
As antigas civilizações do Egipto, da Índia, e da China tinham um carácter suficientemente autónomo e dispunham de bastante tempo para elaborar, mesmo medíocres que fossem as suas possibilidades de produção, relaçõessociais tão completas em detalhe como as obras dos artesãos destes países. A Rússia ocupava entre a Europa e a Ásia uma situação intermediária não somente pela geografia mas pela sua vida social e história. Ela distinguia-se do Ocidente europeu, mas diferia também do Oriente asiático, aproximando-se em diversos períodos, por diversos aspectos, ora de um, ora de outro. O Oriente impôs o jugo tatar que entrou como o elemento importante na edificação do Estado russo. O Ocidente foi um inimigo ainda mais temível, mas ao mesmo tempo um mestre. A Rússia não teve a possibilidade de forma-se segundo os modelos do Oriente porque ela teve sempre que se acomodar face à pressão militar e económica do Ocidente.
A existência do feudalismo na Rússia, negada pelos historiadores de outrora, pode ser considerada como incontestavelmente demostrada pelos estudos mais recentes. Ainda mais: os elementos essenciais da feudalidade na Rússia eram os mesmos que existiam no Ocidente. Mas só por esse facto, para estabelecer a realidade de uma época feudal na Rússia foi preciso longas discussões científicas. Está suficientemente provado que a feudalidade russa nasceu antes do tempo, que era informe e pobre em monumentos da sua cultura.
Um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países avançados. Mas isso não significa que ela siga servilmente esses países reproduzindo todas as etapas de seu passado. A teoria da repetição dos ciclos históricos – a de Vico e, mais tarde dos seus discípulos – apoia-se na observação dos ciclos descritos pelos antigas culturas pré-capitalistas, em parte sobre as primeiras experiências do desenvolvimento capitalista. O carácter provincial episódico de todo o processo comporta efectivamente certas repetições das fases culturais nesses focos sempre novos. O capitalismo, porém, marca um progresso sobre tais condições. Ele preparou e, num certo sentido, realizou a universalidade e a permanência do desenvolvimento da humanidade. Por aí está excluída a possibilidade da repetição das formas de desenvolvimento das diversas nações. Forçado a meter-se a reboque dos países avançados, um país atrasado não se conforma com a ordem de sucessão: o privilégio de uma situação históricamente atrasada – esse privilégio existe – autoriza um povo, ou mais exactamente, força-o a assimilar tudo antes dos prazos fixados, saltando uma serie de etapas intermediárias. Os selvagens renunciam ao arco e flechas, para tomar logo o fuzil, sem percorrer a distância que separava, no passado, essas diferentes armas. Os Europeus que colonizaram a América não retomavam a história pelo início. Se a Alemanha ou os Estados-Unidos ultrapassaram a Inglaterra, foi justamente no seguimento de atrasos da sua evolução capitalista. Em contrapartida, a anarquia conservadora na indústria carvoeira britânica, como nos cérebros de MacDonald e dos seus amigos, é o resgato de um passado durante o qual a Inglaterra – demasiado tempo – possuiu a hegemonia sobre o capitalismo. O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada conduz necessariamente a uma combinação original de diversas fases do processo histórico. A curva descrita toma no seu conjunto um carácter irregular, complexo, combinado.
A possibilidade de saltar por cima dos graus intermediários, não é, compreende-se, completamente absoluta; ao fim das contas, ela está limitada pelas capacidades económicas e culturais do país. Um país atrasado, aliás, rebaixa frequentemente o que ele pede emprestado o pronto a usar no exterior para adaptar à sua cultura mais primitiva. O próprio processo de assimilação toma, nesse caso, um carácter contraditório. É assim que a introdução de elementos da técnica e do saber ocidentais, antes de mais a arte militar e a manufactura, sob Pedro I, agravou a lei da servidão, como forma essencial da organização do trabalho. O armamento à europeia e os empréstimos à Europa ao mesmo título – incontestavelmente resultados de uma cultura mais elevada – conduziram ao reforço do czarismo que, pelo seu lado, travou o desenvolvimento do país.
A lei racional da história não tem nada de comum com os esquemas pedantes. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processo histórico, manifesta-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob a força das necessidades exteriores, a vida retardatária é obrigada a avançar por saltos. Desta lei universal de desigualdade dos ritmos decorre uma outra lei que, falta de denominação mais apropriada, pode-se chamar lei do desenvolvimento combinado, no sentido da reaproximação das diversas etapas, da combinação de fases distintas, da amalgama de formas arcaicas com as mais modernas. Na falta desta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conteúdo material, é impossível compreender a história da Rússia, como, em geral, de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.
Sob a pressão da Europa mais rica, o Estado russo absorvia em comparação com o Ocidente, uma parte relativa da riqueza pública muito mais forte, e não somente condenava assim as massas populares a uma miséria dupla, mas enfraquecia também as bases das classes possuidoras. O Estado, tendo porém necessidade do apoio destas últimas, pressionava e regulava a sua formação. Resultado, as classes privilegiadas, burocratizadas, nunca mais puderam levantar-se com todo o seu peso e o Estado russo aproximava-se ainda mais dos regimes despóticos da Ásia.
A autocracia bizantina que os czars moscovitas se apropriaram oficialmente desde do início do século XVI submeteu os grandes feudais, os boiardos, com a ajuda dos nobres da Corte (dvoriane) e sujeitou estes últimos subjugando-lhes o campesinato para se transformar em monarquia absoluta, a dos imperadores de Petersburgo. O atraso do conjunto do processo é suficientemente caracterizado pelo facto que o direito de servidão nascendo no fim do século XVI, estabelecido no XVII, atingiu o seu desenvolvimento no XVIII e foi juridicamente abolido somente em 1861.
O clérigo, depois da nobreza, jogou na formação da autocracia czarista um papel não negligenciável, mas unicamente o de um funcionalismo. A Igreja nunca se elevou na Rússia ao grau de potência dominante que o catolicismo teve no Ocidente: ela contentou-se com um estado de domesticidade espiritual junto dos autocratas e ela fazia-o com uma humildade meritória. Os bispos e os metropolitas dispunham de um certo poder somente a título de subalternos da autoridade civil. Havia mudança de patriarca quando sucedia um novo czar. Quando a capital foi estabelecida em Petersburgo, a dependência da Igreja em relação ao Estado tornou-se ainda mais servil. Duzentos mil padre e monjes constituíram, em suma, uma parte da burocracia, uma especie de polícia confessional. Em recompensa, o monopólio do clérigo ortodoxo nos assuntos da fé, as suas terras e rendimentos, encontraram-se sob a protecção da polícia geral.
A doutrina eslavista, messiânica de um país atrasado, edificava a sua filosofia sobre esta ideia que o povo russo e a sua Igreja são profundamente democratas, enquanto que a Rússia oficial teria sido uma burocracia alemã, implantada por Pedro I. Marx notou sobre esse sujeito:
“Foi portanto assim que os burros da Alemanha fazem recair a responsabilidade do despotismo de Frederico II sobre os franceses, como se os escravos atrasados não tivessem sempre necessidade da ajuda dos outros escravos mais civilizados para aprender.”
Esta breve nota atinge o fundo não somente da velha filosofia eslavista, mas também as descobertas contemporâneas dos “racistas”.
A indigência, aspecto assinalável não somente da feudalidade russa, mas de toda a história da antiga Rússia, encontra a sua expressão mais intolerável na falta de cidades do verdadeiro tipo medieval, como centros de artesãos e de comerciantes. O artesanato na Rússia não conseguiu destacar-se da agricultura e conservou o carácter das pequenas indústrias locais. As cidades russas dos antigos tempos eram centros comerciais, administrativos, militares, residências de proprietários nobres, em consequência centros de consumo e não de produção. Mesmo Novgorod, que estava em relações com a Liga Hanseática e nunca conheceu o jugo tatar, era unicamente uma cidade de comércio, e não um centro de indústria. É verdade que dispersão das pequenas indústrias rurais nas diversas regiões do país pedia serviços intermediários de uma actividade comercial alargada. Mas os comerciantes nómadas não podiam de forma nenhuma ocupar na vida social um lugar análogo ao que no Ocidente detinha a pequena e média burguesia das corporações de artesãos, comerciantes, industriais, burgueses indissoluvelmente ligadas à sua periferia rural. Além disso, as linhas magistrais do comércio russo conduziam ao estrangeiro, assegurando desde séculos um papel dirigent ao capital comercial do exterior e dando um carácter semi-colonial a todo o movimento de negócios no qual o comerciante russo era intermediário, entre as cidades do Ocidente e a aldeia russa. Tais relações económicas continuaram a desenvolver-se na época do capitalismo russo e encontraram a sua expressão suprema na guerra imperialista.
A importancia insignificante das cidades russas contribuiu mais à elaboração de um Estado de tipo asiático e excluía, em particular, a possibilidade de uma Reforma religiosa, isto é da substituição da ortodoxia feudal e burocrática por uma variedade mais moderna do cristianismo, adaptada às necessidades da sociedade burguesa. A luta contra a Igreja do Estado não se coloca acima da formação de seitas de camponeses, cuja força era a dos Velhos Crentes.
Quinze anos aproximadamente antes da grande Revolução francesa, eclodiu na Rússia um movimento de cossacos, de camponeses e operários servos no Ural – o que se chamou a revolta de Pougatchev. O que faltou a esse terrível levantamento popular para que ele se transformasse em revolução? Um terceiro estado. Na falta de uma democracia industrial das cidades, a guerra camponesa não podia transformar-se em revolução, assim como as seitas religiosas dos campos não podiam erguer-se até à Reforma. O resultado da revolta de Pougatchev foi, ao contrário, consolidar o absolutismo burocrático, protector dos interesses da nobreza, que mostrou de novo o que ele valia na hora difícil.
A europeização do país, começou formalmente sob Pedro I, tornava-se cada vez mais, no decurso do século seguinte, uma necessidade para a classe dirigente, isto é para a nobreza. Em 1825, os intelectuais desta casta, generalizando num sentido político essa necessidade, chegaram à conspiração militar com o objetivo de restringir a a autocracia. Sob o impulso da burguesia europeia que se desenvolvia, os elementos avançados da nobreza experimentaram substituir um terceiro estado que faltava. Contudo, a intenção deles era de combinar o regime liberal com as bases da sua dominação de casta, e era por isso que eles temiam sobretudo o levantamento dos camponeses. Não é de espantar que esta conjura tivesse sido obra de um grupo brilhante mas isolado, de oficiais que quebraram a espinha quase sem terem combatido. Tal foi o sentido da revolta dos dezembristas.
Os nobres donos de fábricas foram os primeiros, da sua casta, a opinar a substituição do trabalho dos servos pelo livre salariado. Eles foram nisso empurrados pela exportação crescente do trigo russo. Em 1861, a burocracia nobre, apoiando-se sobre os proprietários liberais, efectuou a sua reforma camponesa. Impotente, o liberalismo burguês assistiu a esta operação na qualidade de coro dócil. Inútil de dizer que o czarismo resolveu o problema essencial da Rússia – a questão agrária – de uma maneira mais sovina e velhaca que aquela utilizada pela monarquia prussiana, nos dez anos que seguiram, para resolver o problema essencial da Alemanha – a sua unificação nacional. Que uma classe se encarregue de dar uma solução às questões que interessem a uma outra classe, é uma das combinações que são naturais aos países atrasados.
Porém, a lei da evolução combinada mostra-se a mais incontestável na história e no carácter da indústria russa. Esta, nascida tardiamente, não voltou a percorrer o ciclo dos países avançados, mas ela inseriu-se, acomodando ao seu estado atrasado os resultados mais modernas. Se a evolução económica da Rússia, no seu conjunto, saltou as épocas do artesanato corporativo e da manufactura, vários desses ramos industriais também saltaram certas etapas da técnica que tinham exigido, no Ocidente, dezenas de anos. Seguidamente, a indústria russa desenvolveu-se, em certos períodos, com uma extrema rapidez. Da primeira revolução até à guerra, a produção industrial da Rússia tinha pouco mais ou menos duplicado. Isso parece a alguns historiadores russos um motivo suficiente para concluir que seria necessário abandonar a legenda de um Estado atrasado e do progresso lento do país. (Nota. Esta afirmação é do professor M. N. Pokrovsky. Ver Apêndice I no fim do 2º volume.) Na realidade, a possibilidade de um progresso tão rápido era precisamente determinada por um estado atrasado que, infelizmente, não somente subsistiu até a liquidação do antigo regime, mas como herança deste último, manteve-se até hoje.
O nível económico de uma nação é medido, essencialmente, pela produtividade do trabalho, a qual, pelo seu lado, depende da densidade da indústria na economia geral do país. Na véspera da guerra, quando a Rússia dos czares tinha chegado ao apogeu da sua prosperidade, o rendimento público era, por pessoa, de oito a dez vezes inferior àquele que se atingia nos Estados-Unidos, e não é de espantar se considerarmos que os quatro quintos da população russa trabalhando para ela própria compunha-se de cultivadores, enquanto que nos Estados-Unidos, para um cultivador havia 2,5 trabalhadores industriais. Acrescentemos que na véspera da guerra, na Rússia, contavam-se 400 metros de vias férreas por 100 Km2 , enquanto que a Alemanha contava 11,7 Km pela mesma extensão, e que a Austria-Hungria, 7 Km. Os outros coeficientes comparativos são da mesma ordem.
Mas é precisamente no domínio da economia, como já foi dito, que a lei da evolução combinada se manifesta com mais vigor. Enquanto que a agricultura camponesa ficava a maior parte, até à revolução, quase ao nível do século XVII, a indústria russa, pela sua técnica e estrutura capitalista, encontrava ao nível dos países avançados, e mesmo, em certos aspectos, deixava-os para trás. As pequenas empresas cuja mão de obra não ultrapassava as cem pessoas ocupavam em 1914 nos Estados Unidos, 35% do efectivo total de operários industriais, enquanto que na Rússia a proporção era somente de 17,8%. Admitindo um peso específico aproximadamente igual das médias e grandes empresas, ocupando de cem a mil trabalhadores as empresas gigantes que ocupavam mais de mil operários cada uma empregava nos Estados-Unidos somente 17,8% da totalidade dos operários, enquanto que na Rússia a proporção era de 41,4%! Assim, para as principais regiões industriais, a percentagem era mais elevada : para a região de Petrogrado, 44,4% e mesmo, para a região de Moscovo, 57,8%. Chegar-se-à aos mesmos resultados se estabelecer-mos uma comparação entre a indústria russa e a indústria britânica ou alemã. Ese facto, estabelecido pela primeira vez por nós em 1908, inseria-se difícilmente na representação banal que se dá de uma economia russa atrasada. Portanto, ele não contesta o carácter atrasado, dá somente o complemento dialéctico.
A fusão do capital industrial com o capital bancário efectuou-se na Rússia, também, de maneira tão completa que não se viu igual em nenhum outro país. Mas a indústria russa, ao subordinar-se aos bancos, mostrava efectivamente que ela submetia-se ao mercado monetário da Europa ocidental. A indústria pesada (metais, carvão, petróleo) estava quase completamente sob o controlo da finança estrangeira que tinha constituido para seu uso, na Rússia, uma rede completa de bancos auxiliares e intermediários. A indústria ligeira seguia o mesmo caminho. Se os estrangeiros possuíam, no conjunto, pouco mais ou menos 40% de todo o capital investido na Rússia, essa percentagem nos ramos industriais directores era nitidamente mais elevada. Pode-se afirmar sem exagero que a bolsa de controle das acções emitidas pelos bancos, fábricas e companhias russas encontravam-se no estrangeiro, e a participação dos capitais da Inglaterra, da França e da Bélgica duplicava comparativamente à Alemanha.
As condições nas quais se constituía a indústria russa, a estrutura mesmo de esta indústria, determinaram o carácter social da burguesia do país e a sua fisionomia política. A alta concentração da indústria marcava já ela própria que entre as esferas dirigentes do capitalismo e as massas populares, não havia nenhuma hierarquia intermediária. Ao que se juntava as mais importantes empresas industriais, da banca e dos transportes eram propriedade de estrangeiros que, não somente acumulavam lucros na Rússia, mas firmavam a sua influência política nos parlamentos de outros países, e que, longe de favorecer a luta pelo regime parlamentar na Rússia, opunham-se muitas vezes. Basta aqui lembrar o papel abominável que jogou a França oficial. Tais foram as causas elementares e irredutíveis do isolamento político da burguesia russa e da sua atitude contrária aos interesses populares. Se, na aurora da sua história, ela mostrou-se demasiado pouco madura para efectuar uma Reforma, ela estava demasiado quando veio o momento de dirigir a revolução.
No conjunto da evolução do país, a reserva donde saía a classe operária russa não foi o artesanato corporativo: foi o meio rural; não a cidade, mas a vila. Note-se aqui que o proletariado russo formou-se não pouco a pouco, no decurso dos séculos, arrastando o fardo do passado, como na Inglaterra, mas que ele procedeu por saltos, por mudanças bruscas de situações, de ligações, de relações, e por rupturas violentas com o que existia na véspera. É precisamente assim – sobretudo no regime de opressão concentrada do czarismo – que os operários russos tornaram-se acessíveis às deduções mais ousadas do pensamento revolucionário, assim que a indústria russa atrasada encontrou-se capaz de ouvir a última palavra da organização capitalista.
O proletariado russo voltou sempre ao início da história da sua origem. Enquanto que, na indústria metalúrgica, sobretudo em Petersburgo, se cristaliza o elemento do proletariado de raíz autêntica, aquele que tinha definitivamente rompido com a aldeia – no Ural predominava ainda o tipo de meio proletário, ele próprio meio camponês. O afluxo anual da mão de obra que fornecia o campo a todos os distritos industriais restabelecia o contacto entre proletariado e a reserva social donde ele tinha saído.
A incapacidade política da burguesia foi determinada directamente pelo carácter das suas relações com o proletariado e os camponeses. Ela não podia arrastar consigo os operários que se lhe opunham odiosamente na vida cotidiana, e que, cedo, aprenderam a dar um sentido mais geral às suas ambições. Por outro lado, a burguesia foi igualmente incapaz de arrastar a classe camponesa, porque foi apanhada nas malhas dos interesses comuns com os dos proprietários de terras, e que temia uma ameaça à propriedade, de qualquer maneira que fosse. Se a revolução russa tardou a desencadear, não foi somente uma questão de cronologia: a causa deve-se também à estrutura social da nação.
Quando a Inglaterra realizou a sua revolução puritana, a população do país não excedia cinco milhões quinhentos mil almas, cujo meio milhão em Londres. A França, quando a ela fez a sua revolução contava em Paris com meio milhão de habitantes sobre vinte cinco milhões do conjunto da sua população, a Rússia, no início do século XX contava cerca cento e cinquenta milhões de habitantes, com mais de três milhões em Petrogrado e Moscovo. Esses números, comparados cobrem além disso diferenças sociais da mais alta importancia. Não somente a Inglaterra do século XVII, mas a França do século XVIII ignoravam ainda o proletariado que conhece a nossa época. Ora, na Rússia, a classe operária, em todos os domínios do trabalho, nas cidades e nos campos, contava já, em 1905, pelo menos dez milhões de pessoas, o que representava mais de vinte e cinco milhões – famílias incluídas – quer dizer mais que a população da França na época da sua grande Revolução. Partido dos rudes artesãos e dos camponeses independentes que formaram o exército de Cromwell, tomando seguidamente os sans-culottes de Paris, para chegar aos proletários das indústrias de Petersburgo, a revolução modificava profundamente o seu mecanismo social, os seus métodos, e, por consequência, as suas desígnios.
Os acontecimentos de 1905 foram o prólogo das duas revoluções de 1917 – a de Fevereiro e a de Outubro. O prólogo continha já todos os elementos do drama, que, porém, não estavam afinados. A guerra russo-japonesa fez tremer o czarismo. Utilizando o movimento de massas como contraste, a burguesia liberal alarmou a monarquia pela sua oposição. Os operários organizavam-se independentemente da burguesia, opondo-se mesmo a ela, quando nasceram os sovietes (ou conselhos) pela primeira vez. A classe camponesa insurgia-se sobre uma imensa extensão de território, pela conquista de terras. Da mesma forma que os operários agrícolas, os efectivos revolucionários no exército foram atraídos pelos soviets, os quais, no momento onde o desenvolvimento revolucionário era mais forte, disputaram abertamente o poder à monarquia. Todavia, todas as forças revolucionárias se manifestaram pela primeira vez, elas não tinham experiência, faltava-lhes firmeza. Os liberais afastaram-se ostensivamente da revolução quando se tornou evidente que não bastava fazer tremer o trono, mas que era necessário o derrubar. A brutal ruptura da burguesia com o povo – tanto mais que a burguesia arrastava desde então consideráveis grupos de intelectuais democratas – facilitou à monarquia a sua obra de desagregação no exército, de escolha de contingentes fiés e de repressão sangrenta contra os operários e camponeses. O czarismo, mesmo tendo algumas costelas quebradas, saía vivo, suficientemente vigoroso, das dificuldades de 1905.
Quais foram então, nas relações de força, as modificações que a evolução histórica provocou, no decurso dos onze anos, entre o prólogo e o drama? O regime czarista, nesse período, chegou a colocar-se ainda mais em contradição com as exigências da história. A burguesia tornou-se económicamente mais poderosa, mas, como já vimos, a potência repousava sobre uma concentração mais forte da indústria e do crescimento do papel do capital estrangeiro. Influenciada pelas lições de 1905, a burguesia fez-se mais conservadora e desconfiada. O peso específico da pequena e média burguesia, antes já insignificante, diminui ainda mais. Os intelectuais democratas não tinham geralmente base social estável. Eles podiam exercer provisoriamente uma certa influência política mas não jogavam um papel independente: a submissão dos intelectuais em relação ao liberalismo burguês tinha-se agravada extraordinariamente. Nessas condições, só o jovem proletariado pode dar à classe camponesa um programa, uma bandeira, uma direcção. Os grandes problemas que se colocavam assim diante dele necessitaram a criação sem demora de uma organização revolucionária especial, que poderia englobar de uma só vez as massas populares e as tornar capazes de uma acção revolucionária sob a direcção do operariado. Foi assim que os sovietes de 1905 conheceram um desenvolvimento formidável em 1917. Note-se que os sovietes não são simplesmente uma produção devida ao estado históricamente atrasado da Rússia, mas resultam de um desenvolvimento combinado; a tal ponto que o proletariado do país mais industrial, a Alemanha, não encontrou, na época do desenvolvimento revolucionário de 1918-1919, outra forma de organização que os sovietes.
A revolução de 1917 tinha por objetivo imediato derrubar a monarquia burocrática. Mas ela diferenciava-se das antigas revoluções burguesas no que respeita o elemento decisivo que se manifestava agora era uma nova classe, constituida na base de uma indústria concentrada, porvida de uma nova organização e de novos métodos de luta. A lei do desenvolvimento combinado mostra-se aqui na sua expressão mas extrema: começando por derrubar o edifício medieval podre, a revolução levou ao poder, em alguns meses, o proletariado com o partido comunista à cabeça.
Assim, segundo as suas tarefas iniciais, a revolução russa foi democrática. Mas ela colocava de uma maneira nova o problema da democracia política. Enquanto os operários cobriam todo o país de sovietes, juntando-lhe os soldados, et, parcialmente, os camponeses, a burguesia continuava a negociar, questionando-se se ele convocaria ou não a Assembleia constituinte. No decurso dos acontecimentos, esta questão apresenta-se-nos de maneira concreta. Aqui, não queremos senão marcar o lugar dos sovietes na sucessão histórica das ideias e das formas revolucionárias.
No meio do século XVII, a revolução burguesa, em Inglaterra, desenrolou-se sob a cobertura de uma Reforma religiosa. A luta pelo direito de czar segundo um certo livro de horas identificou-se à luta travada contra o rei, a aristocracia, os principes da Igreja e Roma. Os presbiterianos e puritanos estavam convencidos de ter colocado seus interesses terrestres sob a égide firme da divina providência. Os objetivos pelos quais combatiam as novas classes confundiam-se indissoluvelmente, na sua mentalidade, com os textos da Bíblia e com os ritos eclesiásticos. Os que emigraram levaram com eles esta tradição confirmada no sangue. Daí a excepcional vitalidade das interpretações do cristianismo dadas pelos Anglo-saxões. Vemos ainda hoje ministros “socialistas” da Grande Bretanha basear a sua cobardia sobre textos mágicos nos quais as pessoas do século XVII justificavam a sua coragem.
Em França, país que tinha saltado por cima da Reforma, a Igreja católica, na sua qualidade de Igreja do Estado, conseguiu viver até à revolução que encontrou, não nos textos bíblicos, mas nas abstracções democráticas, uma expressão e uma justificação para os desígnios da sociedade burguesa. Qualquer que seja o ódio dos regentes actuais da França pelo jacobismo, é um facto que, precisamente graças à acção rigorosa de um Robespierre, eles têm ainda a possibilidade de dissimular a sua dominação de conservadores sob formulas que, outrora, fizeram saltar a velha sociedade.
Cada revolução marcou uma nova etapa da sociedade burguesa e novos aspectos da consciência das suas classes. Da mesma maneira que a França saltou por cima da Reforma, a Rússia ultrapassou com um salto a democracia de simples forma. O partido revolucionário da Rússia que devia selar sobre uma época completa procurou uma formula para os problemas da revolução não na Bíblia nem no cristianismo secularizado duma “pura” democracia, mas nas relações materiais existentes entre as classes. O sistema dos sovietes deu a essas relações a mais simples expressão, a menos disfarçada, a mais transparente. A dominação dos trabalhadores pela primeira vez realizou-se no sistema dos sovietes, que, qualquer que tenham sido as peripécias históricas mas próximas, entrou na consciência das massas de forma tão inextirpável que nos outros tempos da Reforma ou a pura democracia.
Inclusão | 11/04/2010 |
Última alteração | 14/04/2014 |