História da Revolução Russa

Léon Trotsky


Apêndices


1 Particularidade do desenvolvimento da Rússia

A questão das particularidades do desenvolvimento histórico da Rússia e, em função desse problema, dos destinos futuros do país, colocava-se na base de todos os debates que tiveram lugar, de todos os grupos que se formaram entre os intelectuais russos durante quase todo o século XIX. «Eslavófilos» e «Zapadniki» (partidários das influências ocidentais) davam ao problema soluções opostas, mas igualmente categóricas. Depois se substituíram a eles os «narodniki» (populistas) e os marxistas. O «populismo» antes de ser definitivamente descolorido sob a influência do liberalismo burguês, defendeu muito tempo e obstinadamente a ideia de uma Rússia evoluindo numa via completamente original, evitando por um caminho desviado o capitalismo. Nesse sentido, o «populismo» continuou a tradição dos eslavófilos, tendo mesmo excluindo o que comportava de espírito monárquico, clerical e pan-eslavista, para lhe dar um carácter revolucionário-democrático.

No fundo, a concepção eslavófila, a despeito das suas fricções reaccionárias, e a concepção populista, apesar de tudo o que ele tinha de ilusório nas suas tendências democráticas, não eram de forma alguma vãs especulações; elas apoiavam-se sobre indubitáveis e, além disso, profundas particularidade da evolução da Rússia, compreendidas somente de uma maneira unilateral e inexactamente apreciadas. Na sua luta contra o populismo, o marxismo russo, que demonstrou a identidade das leis da evolução para todos os países, caiu frequentemente nos lugares comuns dogmáticos, como se ele tivesse vontade de lançar a criança com a água do banho. Esta inclinação se manifestou particularmente em numerosas obras do conhecido professor Pokrovsky.

Em 1922, Pokrovsky atacou-se ao conceitos históricos do autor do presente livro, conceitos que formavam a base da teoria da revolução permanente. Julgamos útil, pelo menos para os leitores que se interessam não somente à marcha dramática dos acontecimentos, mas também à doctrina da revolução, de citar aqui algumas passagens essenciais da nossa réplica ao professor Pokrovsky, réplica publicada em dois número da Pravda, órgão central do partido, no 1 e 2 de Julho de 1922.

Sobre as Particularidades ou Desenvolvimento Histórico da Rússia

Pokrovsky publicou, sobre o meu livro «1905» um artigo – infelizmente! — mostrando como é complexo aplicar os métodos do materialismo histórico à história da humanidade e quais banalidade a História é frequentemente trazida por homens tão profundamente informados como Pokrovsky.

O livro que Pokrovsky criticou tinha por objecto imediato de pesquisa as bases teóricas e a justificação teórica da palavra de ordem: «conquista do poder pelo proletariado»; essa palavra de ordem sendo oposta tanto à fórmula de uma república democrática burguesa que a de um governo democrático operário e camponês … Esta forma de pensamento suscitou a maior indignação, do ponto de vista teórico, entre um bom número de marxistas, ou então, mais exactamente, na sua grande maioria. Esta indignação foi traduzida não somente pelos mencheviques, mas por Kamenev e o historiador Rojkov. Eis qual era, no conjunto, o ponto de vista deles: o domínio político da burguesia de preceder o domínio político do proletariado; a república democrática burguesa deve, historicamente, ser uma longa escola para o proletariado; se se tenta saltar essa fase, é na aventura que nos lançamos; do momento que a classe operária, no Ocidente, não tenha sido capaz de conquistar o poder, como o proletariado russo se atribuiria uma tal tarefa? Etc, etc. Do ponto de vista de um certo pseudo-marxismo que se limita às banais constatações históricas, a analogias de pura forma, quem, nas épocas, não consente ver que a sucessão lógica das categorias rígidas sociais (feudalidade, capitalismo, socialismo, autocracia, república burguesa, ditadura do proletariado), — desse ponto de vista, a palavra de ordem de uma conquista do poder pela classe operária na Rússia devia parecer uma renúncia monstruosa do marxismo. Ora, uma análise empírica, mas séria, das forças socialistas que se tinham manifestado de 1903 a 1905 sugeria imperiosamente que havia toda vitalidade na luta pela conquista do poder pela classe operária. Estava aí uma particularidade, ou não era uma? Era preciso ter em conta as profundas singularidade de toda uma evolução histórica, ou então negligenciá-las? Era assim que o problema se colocava ao proletariado da Rússia, isto é (não desagrade a Pokrovsky) para o proletariado do país mais atrasado da toda a Europa?

E no quê a Rússia era atrasada? Seria porque, tardiamente, ela reproduzia a história dos países da Europa Ocidental? Nesse caso, poder-se ia falar de uma conquista do poder pelo proletariado russo? Portanto, esse poder (permitam nos lembrar), o proletariado russo conquistou-o. Como, portanto, se apresenta a questão? Ela põe-se assim: indubitavelmente, o incontestável atraso da evolução russa, sob a influência e a pressão de uma cultura ocidental mais elevada, não chegou a uma simples repetição do processo histórico da Europa ocidental, mas determina profundas particularidade que devem ser isoladamente um sujeito de estudo …

A profunda originalidade da nossa situação política, que levou à vitoriosa revolução de Outubro antes do início de qualquer revolução na Europa, procedia das particularidades das relações de força que existiam então entre diversas classes e o poder de Estado. Quando Pokrovsky e Rojkov discutiam com os populistas ou os liberais demostrando-lhes que a organização e a política do czarismo eram determinadas pela evolução económica e pelos interesses das classes possuidoras, eles tinham razão no essencial. Mas quando Pokrovsky tenta impôr-me esta mesma tese, ele visa simplesmente muito mal.

O resultado do nosso tardio desenvolvimento histórico, no cerco dos imperialismos, acontece que a nossa burguesia não teve tempo de derrubar o czarismo antes que o proletariado se tornasse uma força revolucionária autónoma.

Ora, para Pokrovsky não se coloca a mesma questão que é para nós o tema central deste estudo.

Pokrovsky escreve isto:

«É extremamente sedutor desenhar a Moscóvia do século XVI sobre o fundo geral das relações que existiam na Europa nessa época. Deveríamos recusar o preconceito dominante até hoje, mesmo nos meios marxistas, da ideia de uma base económica pretensamente «primitiva» sobre a qual ter-se-ia instaurado autoridade russa.»

Lê-se mais longe:

«Mostrar esta autocracia nas suas verdadeiras relações históricas como um dos aspectos do regime comercial-capitalista da Europa … — mostra ser uma tarefa extremamente interessante para o historiador, mas de uma alta importância par a educação dos leitores: não há meio mais radical para acabar com a legenda do processo histórico russo duma «originalidade particular».

Pokrovsky, como se vê, nega absolutamente o carácter primitivo e atrasado do nosso desenvolvimento económico e, para tal, reduz a ideia de um original processo histórico russo ao domínio das legendas. Ora, o ponto a marcar aqui é que Pokrovsky encontra-se completamente hipnotizado pelo desenvolvimento relativamente importante do comércio na Rússia do século XVI, cuja demonstração ele dá, tal como Rojkov. É difícil compreender como Pokrovsky se deixou levar por tal erro. Segundo ele, poder-se-ia acreditar, com efeito, que o comércio é a base da vida económica e fixa inegavelmente a medida.

O economista alemão Karl Bucher, há uma vintena de anos, tentou encontrar no comércio (via intermediária entre o produtor e o consumidor) o critério de todo o desenvolvimento económico. Strouve, bem entendido, apressou-se a introduzir esta «descoberta» na «ciência» económica russa. Do lado dos marxistas, a teoria de Bucher encontra, desde então, uma resistência completamente natural. Nós procuramos os critérios do desenvolvimento económico na produção – técnica e organização social do trabalho -, mas o caminho que percorre um produto entre o produtor e o consumidor é considerado por nós como um facto de ordem secundária cujas origens é preciso compreender nas próprias condições de produção.

A grande expansão, pelo menos na superfície, do comércio russo do século XVI, explica-se – tão paradoxal que possa parecer esta explicação com o critério dos Bucher e dos Strouve – precisamente pelo carácter extremamente primitivo e atrasado da economia russa. Na Europa ocidental, a cidade foi ocupada pelas corporações de artesãos e grémios de comerciantes. Ora, as cidades russas eram antes de tudo centros administrativos e militares, em consequência, centros de consumo e não de produção. As constituições corporativas do artesanado no Ocidente elaboraram-se a um nível relativamente elevado de evolução económica, enquanto que todos os processos essenciais da indústria transformadora tinham-se dissociado da agricultura, tinha encontrado sua autonomia de ofícios, tinham criado suas organizações, fixado seu centro, a cidade, mercado (provincial, regional) limitado no início, mas estável.

Na bas da cidade medieval europeia, existia todavia uma diferenciação económica relativamente elevada que determinou justas relações entre o centro-cidade e a sua periferia agrícola. Ora, o nosso atraso económico se manifestou antes de tudo nisto, que o artesanato não se desligava da agricultura, continuava no estádio dos pequenos oficios rurais (kustari). Aqui, aproximamos-nos mais da Índia que da Europa, do mesmo modo que as nossas cidades da Idade-Média deviam mais à Ásia que à Europa, assim como a nossa autocracia, colocada entre o absolutismo das monarquias europeias e os déspotas asiático, se aproximavam sob variados aspecto destes últimos.

Considerando a imensidade dos espaços que ocupamos e a baixa densidade populacional (não é também uma marca suficientemente objectiva do nosso estado atrasado?), a troca de produtos era subordinada ao papel intermediário dum capital comercial de maior envergadura. A expansão do nosso comércio era possível precisamente porque o Ocidente, se encontrando num maior grau de evolução, tendo necessidades complexas, enviava os seus intermediários, expedia suas mercadorias e, de tal maneira, dava um impulso ao movimento comercial entre nós, sobre bases económica bastante primitivas e mesmo consideradas bárbaras. Qualquer um não se apercebia desta particularidade muito importante do nosso desenvolvimento histórico não teria compreendido nada ao conjunto da nossa história.

Tive um patrão na Sibéria. Durante dois meses, coloquei nos seus livros de contabilidade pouds e archines de mercadorias. O homem chamava-se Iakov Andreiivitch Tchernykh. Isso não se passava no século XVI. Meu patrão gozava de uma autoridade quase ilimitada no distrito de Kirensk, graças à importância das suas operações comerciais. Ele comprava peles aos Tunguses, recolhia rendas sobre os religiosos dos cantões afastados e trazia das feiras de Ibit ou de Nijni-Novgorod algodão; mas o seu comércio principal era o do vodka (nessa época, o monopólio de Estado ainda não existia no governo de Irustsk). Iakov Andreievitch não sabia ler, mas era milionário (as filas de «zeros» de então eram dum peso diferente dos de hoje). A «ditadura» que ele exercia, como representante do capital mercantil, era incontestável. Quando ele falava dos Tunguses, não podia dizer de outro modo senão «os meus pequenos Tunguses». As cidades de Kirnsk, de Verkholensk, de Nijne-Ifimsk eram somente lugares de residência das autoridade policiais, de ricos comerciantes vivendo entre eles numa dependência hierárquica, de pequenos funcionários de toda a ordem, e enfim dum certo número de pobres artesãos. Quanto às organizações de ofícios constituindo as bases vivas de uma economia urbana, não encontrei nenhuma: nem corporações, nem festas corporativas, nem grémios, ainda se Iakov Andreievitch estava oficialmente inscrito no «2º grémio».

Na verdade, esta fatia de vida tomada da realidade da Sibéria nos induz a compreender as particularidades históricas do desenvolvimento da Rússia, muito mais profundamente que as explicações de Pokrovsky: as operações comerciais do meu Iakov Andreievitch se estendiam desde do curso médio do Lena com os seus afluentes do lado oriental até Nijni-Novgorod e mesmo até Moscovo. Pouco numerosas são as firmas comerciais do continente europeu que poderiam indicar sobra a carta um tal expansão dos seus negócios. Todavia, esse ditador do negócio, que fazia figura de potentado ao olhos dos camponeses siberianos, era a personificação mais acabada, a mais convincente da nossa economia atrasada, bárbara, primitiva, no meio de uma população pouco densa, numa região onde as urbes e aldeias se espalhavam, apenas ligadas por caminhos impraticáveis que, na primavera e em outono, com a fusão das neves ou com as chuvas, se transformavam em pântanos, bloqueando, durante dois meses, distritos, cantões e comunas; numa região enfim onde a grande ignorância era universal, sem contar com outras inferioridades. Se Tchernykh, como comerciante, pôde subir tal alto, apoiando-se na barbárie que reinava nessa região do Lena, foi graças ao desenvolvimento do Ocidente em ocurência da velha Rússia, da Moscóvia -que arrastava atrás de si a Sibéria: uma economia completamente primitiva de nómados acomodando-se dos despertadores fabricados em Varsóvia.

As corporações de artesãos constituem na Idade-Média a base da cultura urbana, e esta influenciava os campos. A ciência medieval, a escolástica, a Reforma influenciaram o terreno das corporações de artesãos. Não houve nada de igual entre nós. Certo que as formações embrionárias, síntomas, indícios podem ser assinalados; mas, no Ocidente, os indícios estavam fora de questão: existia aí uma potente formação económica e cultural cuja base estava nas corporações. Era sobre isso que se erguia, na Idade-Média, a cidade europeia, era sobre isso que, crescente, ela entrava em luta com a Igreja e os grandes feudais e, contra estes últimos, prestou a sua ajuda à monarquia. É ainda a cidade que criou uma técnica, as das armas de fogo, condição primeira da formação dos exércitos permanentes.

Onde se encontrava entre nós cidades cujo artesanato corporativamente organizado lembraria, mesmo de longe, o que existia na Europa ocidental? Onde se vê então que, entre nós, a cidade teria combatido o regime feudal? Era lutando contra esse regime que a cidade industrial e comercial teria lançado as bases favoráveis ao desenvolvimento da autocracia russa? Nenhuma luta desse género não se produziu entre nós, pelo carácter mesmo das nossas cidades, tal como não houve no nosso país Reforma religiosa. Será sim ou não isso uma particularidade?

O artesanato, entre nós, ficou no estado de ofícios aldeões (kustari), quer dizer que não se diferenciou da classe agrícola. A Reforma religiosa ficou no estado de seitas camponesas, não tendo encontrado direcção do lado das cidades. Tudo isso é primitivo, atrasado: são verdades gritantes.

Se o czarismo se ergueu em organização de Estado independente (relativamente independente, repitamos, nos limites da luta das forças históricas vivas sobre o terreno da economia) não foi com o concurso de potências citadas opondo-se aos potentes feudais; foi – apesar da completa penúria industrial das nossas cidades – graças a fraqueza da senhoria feudal no nosso país.

A Polónia, pela sua estrutura social marcava uma transição entre a Rússia e o Ocidente, tal como a Rússia ocupava um lugar intermediário entre a Europa e a Ásia. Nas cidade polacas, a organização corporativa dos ofícios era já muito mais propagado que entre nós. Mas as cidades polacas não se ergueram ao ponto de conseguir substituir o poder real para quebrar com ele os feudais. O poder de Estado ficou directamente sob o controlo da nobreza. Resultado: completa impotência do Estado e sua desagregação.

O que acabou de ser dito do czarismo concerne também o capital e o proletariado: não se compreende porquê Pokrovsky fulmina as suas cóleras unicamente num primeiro capítulo que trata do czarismo. O capitalismo russo não se desenvolveu partindo do artesanato para passar da manufactura à fábrica e é desse facto que o capital europeu, primeiro sob a forma de capital comercial, depois sob a forma de capital financeiro e industrial, caiu sobre nós num período onde o artesanato russo, na sua massa, ainda não se tinha dissociado da agricultura. Surge entre nós uma indústria capitalista, moderna no ambiente de economia primitiva: tal fábrica belga ou americana, mas, nos arredores, cabanas, aldeia erguidas em madeira, cobertas de colmo, que se consumia, cada ano, incendios, e outras misérias … Os elementos mais obsoletos ao lado das últimas realizações europeias. Daí o papel enorme que jogou o capital da Europa ocidental na economia russa. Daí a fraqueza política da burguesia russa. Daí a facilidade com a qual nós derrotámos a nossa burguesia. Daí as dificuldade que surgiram quando a burguesia europeia interveio nos nossos assuntos …

Que dizer do nosso proletariado ? Passou pela escola medieval das irmandades de aprendizagem? Existe entre eles tradições corporativas seculares? Nada disso. Deitaram-no direitinho no forno desde que lhe retiram o seu arado primitivo … Daí a ausência de tradições conservadoras, a ausência de castas no interior do mesmo proletariado, a frescura do espírito revolucionário; daí, com outras causas eficientes. Outubro e o primeiro governo operário que alguma vez existiu no mundo. Mas daí também o analfabetismo, uma mentalidade atrasada, a deficiência dos hábitos de organização, incapacidade de trabalhar sistematicamente, a falta de educação cultural e técnica. Nós ressentimos-nos a cada passo dessas inferioridades na nossa economia e na nossa edificação cultural.

O estado russo chocava com as organizações militares das nações ocidentais cujas bases económicas, políticas e culturais eram mais elevadas. Da mesma maneira, o capital russo, desde dos seus primeiros passos, chocou com o capitalismo muito mais desenvolvido e mais potente do Ocidente e foi assujeitado por este último. Da mesma maneira, a classe operária russa, desde dos seus primeiros passos, encontrou os instrumentos prontos, devido à experiência do proletariado da Europa ocidental: teoria marxista, sindicatos, partido político. Alguém explique a natureza e a política da autocracia unicamente em função dos interesses das classes possuidoras russas, esse esquece que, metendo de lado os exploradores atrasados, menos ricos e mais ignorantes, que existiam na Rússia, o país sofria a exploração de europeus mais ricos e mais potentes. As classes possuidoras na Rússia tinham conflitos com as classes possuidoras da Europa que lhes eram completamente ou meio hostis. Os conflitos rebentavam através das intervenções do Estado. Or, o Estado, era autocrático. Toda a estrutura e toda a história da autocracia teriam sido diferentes se as cidades europeias não tivessem existido, se a Europa não tivesse «inventado a pólvora» (porque esta invenção não é nossa), se a Bolsa europeia não tivesse agido.

No seu último período de existência, a autocracia não era somente o órgão das classes possuidoras da Rússia; ela servia também de Bolsa europeia para a exploração do nosso país. Esse duplo papel lhe assegurava ainda uma independência muito apreciável, que se manifestou nitidamente, em 1903, quando a Bolsa de Paris, para apoiar a autocracia lhe concedeu um empréstimo apesar dos protestos dos partidos da burguesia russa.

O czarismo se encontrou batido na guerra imperialista. Porquê? Porque o nível de produção que lhe servia de base era demasiado inferior («estado primitivo»). Sob a relação da técnica militar, o czarismo esforçava-se de se manter à altura dos últimos aperfeiçoamentos. Era ajudado, de todas as maneiras, pelos aliados mais ricos e instruidos. Graças a esta assistência, a czarismo dispôs, durante a guerra, de engenhos mais perfeitos. Mas ele não tinha e não podia ter a possibilidade de reproduzir em copiando esses engenhos, nem mesmo os transportar (tal como não chegava a enviar tropas) por via férrea ou por via marítima, com toda a rapidez desejável. Noutros termos, o czarismo defendia os interesses das classes possuidoras de Rússia na luta internacional em se apoiando sobre uma base económica mais primitiva que a dos seus inimigos e seus aliados.

Esta base económica foi explorada pelo czarismo, durante a guerra, sem precaução, isto é, o regime absorveu os fundos e o rendimento nacional numa proporção muito maior do que os recursos mobilizados pelos seus inimigos e aliados. O facto foi provado, por um lado, pelo sistema das «dívidas de guerra», e por outro, pela ruína completa da Rússia …

Todas as circunstâncias, que, antecipadamente, deviam determinar a revolução de Outubro, a vitória do proletariado e as dificuldades nas quais este se encontrava a seguir não podem de forma alguma ser explicadas pelos lugares comuns de Pokrovsky.

2 «O rearmamento do partido»

No diário nova-iorquino Novy Mir, destinado aos operários russos na América, o autor do presente livro tentava da uma análise e um prognóstico do desenvolvimento da Revolução, sobre a base das magras informações da imprensa americana. «A história íntima dos acontecimentos que se desenrolaram – escrevia o autor, 6 de Março (estilo antigo) – só nos é conhecida por fragmentos e alusões que deslizam nos telegramas oficiais.» A serie de artigos consagrados à Revolução começa no 27 de Fevereiro e pára no 14 de Março, do facto que o autor abandonava Nova York. Citamos abaixo, desta serie, na ordem cronológica, estratos que podem dar uma ideia das vistas sobre a revolução que tinha o autor ao chegar, no 4 de Maio, em Rússia.

27 de Fevereiro:

«Um governo desorganizado, comprometido, desarticulado, no alto; um exército definitivamente degradado; o descontentamento, a incerteza e o medo entre as classes possuidoras; uma profunda exasperação nas massas populares; um proletariado numericamente maior, temperado no fogo dos acontecimentos, — tudo isso nos dá o direito de dizer que somos testemunhos da segunda revolução russa. Esperemos que muitos entre nós sejam partidários.»

3 de Março

«É demasiado cedo e os Rodzianko e os Miliokov começaram a falar, e não é ainda amanhã que a calma se restabelecerá na Rússia desmontada. Camada após camada, o país se insurgirá agora – todos os oprimidos, os deserdados, espoliado pelo czarismo e as classes dirigentes – sobre toda imensidão das terras russas, prisão dos povos. Os acontecimentos de Petrogrado são somente o princípio. À cabeça da massas populares da Rússia, o proletariado revolucionário realizará a sua obra histórica: ele expulsará a reacção monarquica e aristocrática e dará a mão aos proletários da Alemanha e de toda a Europa. Porque é preciso liquidar não somente o czarismo mas também a guerra.»

«Já a segunda vaga da revolução vai passar por cima das cabeças dos Roziankos e dos Miliokov, preocupados em restabelecer a ordem e meterem-se de acordo com a monarquia. É do fundo dela própria que a revolução fará surgir o seu poder – órgão revolucionário do povo caminhando para a vitória. E as principais batalhas, e os mais pesados sacrifícios serão no futuro. E é somente após que virá a vitória completa e verdadeira.»

4 de Março:

«O descontentamento muito tempo contido das massas explodiu tão tarde, no 32º mês da guerra, não porque se opunham às massas um dique policial, fortemente perturbado no decurso da guerra, mais porque todas as instituições, todos os órgãos dos liberais, incluindo a sua criadagem, os sociais-patriotas, exerciam uma formidável pressão política sobre as camadas operárias as menos conscientes, persuadindo-os da necessidade da «disciplina patriótica e da ordem».

«Foi somente então (após a vitória da insurreição) que veio a vez da Duma. O czar tentou, no último minuto, dissolvê-la. E ela ter-se-ia dócilmente dispersado, «seguindo o exemplo dos anos precedentes», se ela tivesse tido a possibilidade. Mas na capital dominava já o povo revolucionário, o mesmo que, contra a vontade da burguesia liberal, descia à rua para combater. Com o povo armado estava o exército. E se a burguesia não tinha tentado organizar o seu poder, um governo revolucionário teria saído das massas operárias insurrectas. A Duma do 3 de Junho não se teria jamais resolvido a arrancar o poder ao czarismo. Mas ela não podia se dispensar de utilizar o interregno que se tinha estabelecido; a monarquia foi temporariamente varrida da superfície da terra e o poder revolucionário ainda não se tinha estabelecido.»

6 de Março:

«Um conflito declarado entre as forças da revolução à cabeça da qual se ergue o proletariado das cidades, e a burguesia liberal anti-revolucionária que provisoriamente tomou o poder, é absolutamente inevitável. Pode-se, bem entendido – e disto se ocuparão com zelo os burgueses liberais como os lastimáveis socialistas do tipo vulgar – juntar bem frases carinhosas sobra a grande superioridade da unidade nacional em relação da cisão das classes. Mas nunca ninguém conseguiu por tais exorcismos eliminar os antagonismos sociais e parar o desenvolvimento da luta revolucionária.»

«A partir de agora, imediatamente, o proletariado revolucionário deverá opor seus órgãos revolucionários, os sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, aos órgãos executivos do governo provisório. Nessa luta, o proletariado, unificando à volta dele as massas populares se erguem, deve atribuir-se como fim directo a conquista do poder. Só, um governo operários revolucionários possuirá a vontade e a capacidade, desde do tempo da preparação da assembleia constituinte, de proceder à purificação democrática radical no país, de reorganizar de alto a baixo o exército, de transformar numa milícia revolucionária e de demonstrar de facto às camadas inferiores do campo que a sua salvação está unicamente no apoio ao regime operário-revolucionário.»

7 Março:

«Enquanto se encontrasse no poder a clique de Nicolau II, a preponderância da política exterior estava dada aos interesses da dinastia e da nobreza reaccionária. É precisamente por isso que em Berlim e em Viena esperou-se constantemente concluir uma paz separada com a Rússia. Mas, agora, sobre a bandeira governamental, são os interesses do puro imperialismo que se inscrevem. «O governo czarista não existe mais, dizem ao povo os Gotchkov e os Miliokov; agora vocês devem verter o vosso sangue pelos interesses de toda a nação.» Ora, pelos interesses nacionais, os imperialistas russos compreendem o retomada da Polónia, a conquista da Galícia, de Constantinopla, da Arménia, da Pérsia. Noutros termos, a Rússia, actualmente, se perfila na linha geral dos imperialismos com os outros Estados europeus e, antes de tudo, com seus aliados: a Inglaterra e a França.»

«A passagem do imperialismo dinástico-aristocrático a um imperialismo puramente burguês não pode de forma alguma reconciliar com a guerra o proletariado da Rússia. A luta internacional contra a matança mundial e o imperialismo é actualmente, mais que nunca, a nossa tarefa.»

«A fanfarronice imperialista de Miliokov – que se gaba de esmagar a Alemanha, Áustria-Hungria e a Turquia – serve neste momento o Hohenzollern e le Habsburg. Miliokov jogará o papel de espantalho de quinta. O novo governo liberal-imperialismo, muito antes de ter empreendido as reformas no exército, ajuda o Hohenzollern a levantar o espírito patriótico e a reconstituir a «unidade nacional» do povo alemão, que se rasga em todas as suas costuras. Se o proletariado alemão pensasse que, por detrás do novo governo burguês da Rússia, se erguesse todo o povo e nesse número, a principal força da revolução, o proletariado russo – seria um golpe terrível para os nosso camaradas, os revolucionários sociais-democratas da Alemanha.»

«A primeira obrigação do proletário revolucionários da Rússia é de mostrar que as perfidias intenções imperialistas da burguesia liberal não têm força atrás dela, porque elas não são apoiadas pelas massas operárias. A revolução russa dever revelar ao mundo inteiro a sua verdadeira face, insto é a sua intransigência hostilidade e relação não somente da reacção dinástica aristocrática mas também do imperialismo liberal.»

8 de Março:

«Inscrevendo na sua bandeira 'a salvação do país', os burgueses liberais tentam reter entre suas mãos a direcção do povo revolucionário, e, com esse fim, rebocam não somente o trabalhista patriota Kerensky, mas, verosimilmente também, Tchkheidze, representante dos elementos oportunistas da social-democracia.»

«A questão agrária abrirá uma racha profunda no bloco actual dos nobres, burgueses e sociais-patriotas. Kerensky terá que escolher entre os «liberais» do 3 de Junho(1), que querem frustrar toda a revolução nos planos capitalistas, e o proletariado revolucionário que dará todo o seu ampleur ao programa da revolução agrária, a saber a confiscação, em proveito do povo, das terras do czar, dos proprietários nobres, apanágios, dos bens de raíz dos mosteiros e das igrejas. Qualquer que possa ser a escolha pessoal de Kerensky, isso não tem importância … Para as massas camponesas, para as camadas inferiores do campo isso é outro assunto. Levá-los à causa do proletariado constitui a tarefa mais urgente, a mais essencial.»

«Seria um crime tentar resolver esta tarefa (a conquista do campesinato) adaptando nossa política ao espírito limitado, nacional-patriota, da aldeia: o operários russo se suicidaria se ele pagasse a sua aliança com o camponês a ruptura com o proletariado europeu. Mas para isso, não há também nenhuma necessidade política. Temos nas mãos uma arma mais forte: enquanto que o governo provisório actual e o ministro Lvov—Gotchkov—MiliokovKerensky(2) são forçados – para conservar a sua unidade escamotar a questão agrária, nós podemos e devemos colocar em toda a sua amplitude diante das massas camponesas da Rússia.»

«— Do momento que a reforma agrária é impossível, nós somos pela guerra imperialista! — disse a burguesia russa após a experiência de 1905-1917.»

«Voltai as costas à guerra imperialista, oponham-lhe a revolução agrária! Diremos nós às massas camponesas mencionando a experiência de 1914-1917.»

«Esta mesma questão, a da terra, jogará um papel formidável na obra de unificação dos quadros proletários do exército com o grosso dos contingentes camponeses.» A terra do nobre, e não de Constantinopla!» dirá o soldado proletario ao soldado camponês, explicando-lhe em quê e a quem serve a guerra imperialista. E, do sucesso da nossa agitação e da nossa luta contra a guerra – antes de tudo nas massas operárias e, em segundo lugar, nas massas de camponeses e dos soldados – dependerá em breve que o governo liberal-imperialista possa ser substituido por um governo operários-revolucionário, apoiando-se directamente sobre o proletariado e sobre as camadas inferiores do campo que aí se ligam-»

«Os Rodzianko, os Gotchkov, Miliokov aplicarão todos os seus esforços para criar uma assembleia constituinte modelada à sua imagem. O mais forte trunfo que eles terão na mão será a palavra de ordem de uma guerra nacional contra o inimigo exterior. Agora, eles vão falar , bem entendido, da necessidade de defesa «as conquistas da revolução» contra um esmagamento vindo do Hohenzollern. E os sociais-patriotas em coro com eles.»

«Se houvesse qualquer coisa para defender! — nós respondemos-lhes. Em primeiro lugar, é preciso garantir a revolução contra o inimigo interior. É preciso, sem esperar a assembleia constituinte, varrer os vestígios da monarquia e da servidão. É preciso ensinar ao camponês russo a não se deixar levar pelas promessas de Rodzianko e e mentiras patrióticas de Miliokov. É preciso agrupar estreitamente milhões de camponeses contra os imperialistas liberais sob a bandeira da revolução agrária e da república. Para realizar essa tarefa integralmente, não pode ter aí, apoiando-so sobre o proletariado, que um governo revolucionário qua afastará do poder os Gotchkov e os Miliokov. Esse governo operário meterá todos os recursos do poder de Estado para erguer, esclarecer, agrupar as camadas mais atrasadas, as mais ignorantes, das massas laboriosas da cidade e do campo.»

«— Mas se o proletariado alemão não se insurgirá? Que faremos então?»

«— Você supõe que a revolução russa pode passar despercebida na Alemanha, mesmo quando, entre nós, esta revolução levará ao poder um governo operário? Então, é completamente inverossímil.»

«Ah! E se, todavia? …

«— … Se o inverossímil chegasse, se a organização social-patriota conservadora impedisse a classe operária alemã, no período que vem, de se erguer contra as classes dirigentes; — então, bem entendido, a classe operária russa defenderia a revolução pelas armas. O governo operário revolucionários levaria à guerra contra o Hohenzollern, apelando o proletariado irmão alemão a se dirigir contra o inimigo comum. Tal como o proletariado alemão, se ele se encontrasse, num próximo período, no poder, teria não somente «o direito», mas a obrigação de fazer guerra contra Gotchkov—Miliokov, para ajudar os operários russo a se desfazerem do seu inimigo imperialista. Nesses dois casos, a guerra levada por um governo proletário não seria senão uma revolução armada. Tratar-se-ia não somente de «defender a pátria», mas de defender a revolução e de a propagar por outros países.»

«Não é de forma alguma indispensável demonstrr que, nas grandes citações feitas acima tiradas de artigos populares destinados aos operários, o ponto de vista exposto sobre o desenvolvimento da revolução é aquele que se exprimiu nas teses de Lénine, data do 4 de Abril.

Sobre a crise pela qual passava o partido bolchevique nos dois primeiros meses da revolução de Fevereiro, não é inútil de citar um artigo escrito pelo autor do presente livro, em 1909, para a revista polaca de Rosa Luxemburgo:

«Se os mencheviques, partindo de um conceito abstracto: «nossa revolução é burguesa» chegam à ideia duma adaptação de toda a táctica do proletariado à conduta da burguesia liberal, incluindo a conquista para ela do poder de Estado, os bolcheviques, partindo dum ponto de vista também abstracto, «ditadura democrática e não socialista», chegam à ideia dum proletariado que detém o poder e se dá a ele próprio um limite burguês-democrático. É verdade que a diferença entre eles nesta questão é muito considerável: enquanto que os lados anti-revolucionários do menchevique se manifestam em toda sua força desde logo, os traços anti-revolucionários do bolchevismo não ameaçam com um formidável perigo senão no caso de uma vitória revolucionária.»

Essas palavras foram, após 1923, bastante utilizadas pelos epígonos na luta contra o ´trotskismo´. Ora, elas – oito anos antes dos acontecimentos – uma característica completamente exacta do comportamento dos epígonos actuais «no caso de uma vitória revolucionária».

O partido saiu da crise de Abril com honra, tendo-se libertado dos «traços anti-revolucionários da sua camada dirigente.» Foi por isso que autor acrescentou, em 1922, no texto acima citado a nata seguinte:

«Isto, como se sabe, não chega, dado que, sob a direcção de Lénine, o bolchevismo realizou (não sem luta interna) o seu rearmamento ideológico na questão extremamente importante, na primavera de 1917, isto é antes da conquista do poder.»

Lénine, na luta contra as tendências oportunistas da camada dirigente dos bolcheviques, escrevia em Abril de 1917:

«A palavra de ordem e as ideias bolcheviques no conjunto estão completamente confirmadas, mas concretamente as coisas não se apresentaram de outra forma que não se pudesse prever (o que foi feito), de uma maneira mais original, mais singular, mais variada. Ignorar, esquecer esse facto significaria que se assimilasse a esses «velhos bolcheviques», que já jogaram mais de uma vez um papel triste na história do nosso partido em repetindo uma fórmula desadaptada aprendida em vez de ter estudado a originalidade da nova e vivida realidade. Qualquer um fala agora do que «a ditadura revolucionária democrática do proletariado e dos camponeses», esse está atrasado na vida, esse aí, por consequência, rendeu-se efectivamente à pequena burguesia, está contra a luta da classe proletária, esse aí deve ser entregue aos arquivos das raridade «bolcheviques» de antes da revolução (pode-se dizer: aos arquivos «dos velhos bolcheviques»)».

3 O congresso dos sovietes e a manifestação de Junho

Carta ao professor A. Kahum, Universidade da Califórnia

É do seu interesse de saber em que medida Sokhanov contou exactamente o meu encontro, em Maio de 1917, com a redacção da Novaia Jizn (Vida Nova), à cabeça da qual se encontrava, pela forma, Maximo Gorki. Para que o seguimento seja compreensível, devo dizer algumas palavras sobre o carácter geral das Memórias sobre a Revolução, em sete volumes, de Sokhanov. Apesar de todas as imperfeições dessa obra (prolixidade, impressionismo, miopia política) que tornam por momentos a leitura insuportável, não nos podemos impedir de reconhecer a sinceridade do autor que faz da sua obra uma fonte preciosa para a História. Os homens de lei sabem, todavia, que a sinceridade de um testemunho não garante de forma nenhuma a veracidade das suas deposições: é preciso ainda tomar em consideração o nível intelectual da testemunha, sua faculdade oculares, auditivas, a sua memória, o seu estado de espírito no momento de tais incidentes, etc. Sokhanov é um impressionista do tipo intelectual e, como a maior parte desse tipo de pessoas, incapaz de compreender a psicologia política de homens de outra formação. Mesmo se ele próprio se tenha posicionado na extrema esquerda do campo dos conciliadores, por consequência completamente vizinho com os bolcheviques, pela sua mentalidade de Hamlet ele era e continuou a opor-se ao bolchevismo. Nele vive sempre o sentimento de hostilidade, de repulsão em relação aos homens inteiros, sabendo bem o que eles querem e para onde vão. Daí resulta que Sokhanov, nas suas Memórias, acumula conscientemente falta sobre falta, desde que ele tenta compreender os motivos da acção dos bolcheviques ou de desvendar suas intenções nos bastidores. Ele por vezes parece que confunde conscientemente questões simples e claras. Na realidade, ele é organicamente incapaz, pelo menos em política, de descobrir o caminho mais curto de um ponto a outro.

Sokhanov despensa bastantes esforços em opor a minha linha à de Lénine. Muito sensível à opinião dos corredores e aos rumores dos círculos intelectuais – nisto, seja dito a propósito, uma das qualidades das Memórias é de dar uma abondante documentação sobre a psicologia dos dirigentes liberais, radicais e socialistas – Sokhanov vivia naturalmente da esperança no nascimento de divergências entre Lénine e Trotsky, tanto mais que isso devia, pelo menos parcialmente, aliviar a sorte pouco invejável da Novaia Jizn entalada entre os sociais-patriotas e os bolcheviques. Nas suas Memórias, Sokhanov vive ainda na atmosfera dessas esperanças irrealizáveis, apresentadas sob o aspecto de lembranças políticas e de hipóteses à pós-facto. Ele esforça-se em interpretar as particulares do indivíduo, do temperamento, do estilo como um curso político particular.

Sobre a manifestação bolchevique prevista para o 10 de Junho, pois anulada, sobretudo das manifestação armadas dos dias de Julho, Sokhanov tenta, num certo número de páginas, demonstrar que Lénine tendia nesses dias a tomar imediatamente o poder, por meio de uma conspiração e de uma insurreição, que Trotsky, em contrapartida, teria procurado obter o poder efectivo dos sovietes na pessoa dos partidos que predominam então, a saber os socialistas-revolucionários e dos mencheviques. Sob isso, não há sombra de verdade. No 1º congreso dos sovietes, no 4 de Junho, Tseretelli, na sua arenga, tinha lançado esta frase: «Na Rússia, por momento, não há um partido político que diria: dêem-nos o poder.» Logo saiu do auditório uma exclamação: «Há um!» Lénine não gostava de interromper os oradores e não gostava de ser interrompido. Eram somente motivos sérios que, desta vez, podiam incitar a se desembaraçar da sua descrição habitual. Logicamente, segundo Tseretelli, resultava que, se um povo cai num conjunto complexo de grandes dificuldades, é necessário tentar antes de tudo passar o poder aos outros. Nisto, no fundo, estava toda a sabedoria dos conciliadores russos que, após a insurreição de Fevereiro, passaram o poder aos liberais. O pouco atraente medo das responsabilidades, Tseretelli dava a cor do desinteresse político e duma extrema providência. Para um revolucionário que acredita na missão do seu partido, uma tão cobarde fanfarronice é absolutamente intolerável. Um partido revolucionário capaz de, em circunstâncias difíceis, esquivar o poder só merece desprezo.

Num discurso pronunciado na mesma sessão, Lénine explicou a sua exclamação: «O cidadão ministro dos Correios e Telégrafos (Tseretelli) … disse que em Rússia não há partido político que se declarou pronto a se encarregar totalmente do poder. Eu respondo que há um; nenhum partido não pode renunciar a isso e o nosso partido não renunciará; a qualquer momento ele está pronto a tomar completamente o poder. (Aplausos e risos.) Vocês poder rir tanto quanto queiram, mas se o cidadão ministro nos põe esta questão … ele terá resposta como convém.» Pretende-se que o pensamento de Lénine não era transparente?

No mesmo congresso dos sovietes, falando depois o ministro da Agricultura, Pechekhonov, eu dizia o seguinte: «não pertenço ao mesmo partido que Pechekhonov, mas se me dizem que o ministério se compõe de doze Pechekhonov, eu responderia que é um formidável passo em frente …»

Não penso que então, no calor dos acontecimentos, as minhas palavras sobre um ministério composto de Pechekhonov tenha podido ser entendidas como a anti-tese da disposição de Lénine a tomar o poder. Como teórico desta anti-tese imaginária se apresenta com atraso Sokhanov. Comentando a preparação pelos bolcheviques da manifestação do 10 de Junho em proveito da autoridade dos sovietes como uma preparação da tomada do poder, Sokhanov escreve: «Lénine, dois ou três dias antes da «manifestação», dizia publicamente que estava pronto a tomar o poder. Mas Trotsky dizia então mesmo que ele queria encontrar no poder uma dúzia de Pechekhonov. Isso faz uma diferença. Portanto, suponho que Trotsky estava ligado ao assunto do 10 de Junho … Lénine, desde então, não estava disposto a lançar uma acção decisiva sem um duvidoso «interdistrital»(3). Porque Trotsky era o seu igual como colega monumental num jogo monumental, e, no seu próprio partido, após o próprio Lénine, não houve nada, muito tempo, muito tempo.»

Toda essa passagem está cheia de contradições. Segundo Sokhanov, Lénine teria efectivamente meditado no que Tseretelli o acusava: «a tomada imediata do poder pela minoria proletária». Inverossímil que isso pareça, Sokhanov vê a prova desse blanquismo nas palavras de Lénine anunciando que os bolcheviques estão prontos a tomar o poder, no 10 de Junho, conspirando, não era provável que, no 4 de Junho, em sessão plenária do Soviete, ele tivesse advertido os inimigos. É preciso recordar que, desde do primeiro dia da sua chegada a Petrogrado, Lénine inculcava no partido esta ideia que os bolcheviques não poderiam atribuir se atribuírem a tarefa de derrubar o governo provisório depois de ter conquistado a maioria nos sovietes? Durante as jornadas de Abril, Lénine se pronunciou resolutamente contra os que entre os bolcheviques lançavam a palavra de ordem: «Abaixo o governo provisório!» como o problema do dia. A réplica de Lénine, no 4 de Junho, tinha um significado muito preciso: nós, bolcheviques, estamos prontos a tomar o poder, mesmo hoje se necessário, se os operários e os soldados nos acordam a sua confiança; por aí, nós nos distinguimos dos conciliadores que, dispondo da confiança dos operários e dos soldados, não ousam tomar o poder.

Sokhanov opõe Trotsky a Lenine como um realista a um blanquista. «Não aceitando Lénine, poder-se-ia se ligar à maneira como Trotsky colocava a questão.» Ao mesmo tempo Sokhanov declara que «Trotsky esteve implicado no caso do 10 de Junho, isto é na conspiração para a tomada do poder». descobrindo duas linhas numa só para ter a possibilidade de me acusar, a mim também, de espírito aventureiro. É, no seu género, uma vingança bastante platónica para as esperanças desiludidas dos intelectuais de esquerda concernente uma cisão entre Lénine e Trotsky.

Nos cartazes que tinham sido preparado pelos bolcheviques para a manifestação anulada do 10 de Junho e que erguiam os manifestantes do 18, o principal motivo era: «Abaixo os ministros capitalistas!» Sokhanov admire como esteta a simplicidade expressiva dessa palavra de ordem, mas, como político, mostra que não compreendeu nada. O governo compreendia, além dos «dez ministros capitalista», seis ministros conciliadores. Os cartazes dos bolcheviques não atacavam estes últimos. Pelo contrário, os ministros capitalistas deviam ser, segundo o sentido da palavra de ordem, substituídos pelos ministros socialistas, representantes da maioria soviética. Foi precisamente esta ideia exprimida pelos cartazes bolcheviques que formulai diante do Congresso dos Sovietes: terminem o bloco com os liberais, eliminem os ministros burgueses e substituam eles pelos vossos Pechekhonov. Ao convidar a maioria soviética a tomar o poder, os bolcheviques, bem entendido, não atavam as mãos em relação aos Pechekhonov; pelo contrário, eles não escondiam que, no quadro da democracia soviética, eles lançavam contra estes últimos, uma luta sem descanso – pela maioria nos sovietes e pela tomada do poder. Tudo isso é, no fim de contas o A. B. C. Somente os traços indicados acima de Sokhanov, considerado não tanto como personalidade mas como tipo, explicam como esse participante e observador dos acontecimentos pode lançar uma irremediável confusão numa questão tão séria e ao mesmo tempo simples.

À luz do episódio político analizado aqui, é mais fácil compreender como é falsa a explicação que dá Sokhanov do meu encontre, interessante para vocês, com a redacção do Novaia Jizn. A moral do meu contacto com o círculo de Maximo Gorki exprimiu-se por Sokhanov numa frase de conclusão que ele me atribui: «Vejo agora que não me resta senão fundar um jornal com Lénine.» Resultaria daí que, não julgando possível entender-me com Gorki e Sokhanov, isto é com homens com os quais nunca considerei nem como políticos nem como revolucionários, eu teria sido forçado a encontrar a minha via até Lénine. Basta formular claramente este pensamento para mostrar a inconsistência disso.

Como característica, notava eu de passagem, esta frase de Sokhanov: «fundar um jornal com Lenine» — como se os problemas da política revolucionária se reduzissem à fundação de um jornal! Qualquer um dotado de um mínimo de imaginação criadora deve ver claramente que eu não podia pensar nem definir assim as minhas tarefas.

Para explicar que visitei o círculo jornalístico de Gorki, é preciso se lembrar que cheguei a Petrogrado no início de Maio, mais de dois meses depois da insurreição, um mês depois da chegada de Lénine. Entretanto, muitas coisas tiveram tempo de se arranjar e precisar. Eu necessitava uma orientação directa e por assim dizer empírica não somente sobre as forças essenciais da revolução, sobre o estado de espírito dos operários e dos soldados, mas sobre todos os grupos e nuanças políticas da sociedade ´cultivada`. Visitando a redacção da Novaia Jizn, eu realizava um pequeno reconhecimento político com a finalidade de esclarecer as forças de atracção e repulsa desse grupo de «esquerda», as oportunidade de separação de tais ou tais elementos. Um breve encontro me convenceu da completa impotência desse pequeno círculo de literários para os quais a revolução levaria a um editorial. E como eles acusavam, a propósito, os bolcheviques de «se terem eles próprios isolado», em lançando a culpa sobre Lénine e sobre as suas teses de Abril, eu não podia indubitavelmente não lhes dizer que, por todos os seus discursos, eles tinham-me, uma vez mais, demonstrado que Lénine tinha absolutamente razão em isolar deles o partido ou, mais exactamente, em os isolando do partido. Esta conclusão que tive de sublinhar com particular energia para impressionar os que participavam na entrevista, Riazanov e Lunatcharsky, adversários de uma união com Lénine, deu provavelmente pretexto à versão de Sokhanov.

Vocês têm, bem entendido, razão de exprimir esta hipótese que em nenhum caso eu não teria, durante o outono de 1917, consentido em falar no jubileu de Gorki, do alto da tribuna do soviete de Petrogrado. Sokhanov fez bem, dessa vez, em renunciando a uma das suas fantasias: arrastar-me, na véspera da revolução de Outubro, em festejar Gorki, que se mantinha no outro lado da barricada.


Notas de rodapé:

(1) Quer dizer os membros da Duma saída do golpe do 3 de Junho de 1907. (retornar ao texto)

(2) Pelo governo provisório, a imprensa americana compreendia designar o Comité provisório da Duma. (retornar ao texto)

(3) Sokhanov me disigna como um «duvidoso interdistrital» (membro da organização interdistritos) com a evidente intenção de indicar que na realidade eu era bolchevique. Esse último ponto, de qualquer modo, é justo. Só fiquei na organização interdistrital para o levar ao partido bolchevique, o que se realizou em Agosto. (retornar ao texto)

Inclusão