MIA > Biblioteca > Trotsky > Lenine ... > Novidades
"É difícil fazer o seu retrato", declara Gorki ao falar de Lenine. É verdade, o que Gorki escreveu sobre Lenine é muito fraco. A textura da sua descrição parece feita dos elementos mais diversos. Distingue-se, por vezes, um traço mais brilhante que os outros, discerne-se uma certa penetração artística. São contudo muito mais numerosos os traços duma banal análise psicológica e apercebemo-nos constantemente do moralista pequeno-burguês. No seu conjunto, o produto não é lá muito belo. Mas como o responsável é Gorki, a obra será examinada ainda durante muito tempo. Eis o motivo por que é necessário falar dela. Talvez encontremos a oportunidade de pôr em evidência ou de observar certos traços, grandes ou pequenos, da imagem de Lenine.
Gorki tem razão ao dizer que Lenine "é uma encarnação da vontade dirigida para o objectivo com uma extraordinária perfeição". A tensão para o objectivo de Lenine, eis a sua característica essencial; já a mencionámos e voltaremos a mencioná-la; mas quando Gorki, um pouco mais adiante, coloca Lenine no número dos "justos", etc., isso soa falso e é de mau gosto. Esta expressão "justo", pedida emprestada à Igreja, à linguagem dos sectários religiosos, cheirando a carisma e ao azeite das lâmpadas sagradas, não convém de modo algum a Lenine. Era um grande homem, um gigante magnífico, e nenhuma coisa humana lhe era estranha. Num congresso dos Sovietes, viu-se subir à tribuna um representante bastante conhecido duma seita religiosa, um comunista cristão (ou algo parecido), muito despachado e matreiro, que entoou imediatamente um louvor em honra de Lenine, considerando-o "paternal" e "protector).
Recordo-me que Vladimir Ilitch, sentado à mesa do bureau, ergueu a cabeça, quase assustado, voltando-se depois ligeiramente e dizendo-nos a meia voz, num tom furioso, a nós, seus vizinhos mais próximos:
- Que novas porcarias são estas?
A palavra "porcarias" escapou-lhe duma forma completamente inesperada, contra vontade, mas por isso mesmo muito verdadeira. Sentia-me abalado por um riso interior e deliciava-me com esta apreciação incomparável de Lenine, tão espontânea, acerca dos louvores do orador muito cristão. Pois bem, o "justo" de Gorki tem algo de comum com o "pai protector" do homem da igreja. É, se me permitis, ,e numa medida muita atenuada, "uma porcaria".
O que se segue é ainda pior:
"Para mim, Lenine é um herói de lenda, um homem que arrancou do peito o coração escaldante para o elevar como um facho e iluminar o caminho dos homens..."
Brr... Como é mau! Lembra exactamente a velha Izerghil (é este, parece-me, o nome dessa feiticeira que interessou a nossa juventude), é do mesmo género da sua história sobre o cigano Danko. Julgo não me enganar nas minhas recordações: nesse conto vê-se também um coração que se transforma em facho. Mas, isto é outra história, trata-se de ópera... Sim, de ópera, digo bem, com cenários inspirados nas paisagens do Sul, com uma iluminação de fogos de Bengala e uma orquestra de ciganos.
Ora na pessoa e na figura de Lenine não há nada que lembre uma ópera e menos ainda o romantismo dos Boémios nómadas. Lenine é um homem de Simbirsk, de "Piter"(2), de Moscovo, do mundo inteiro - um realista rude, um revolucionário profissional, um destruidor do romantismo, da falsidade teatral, da boémia revolucionária; não pode ter qualquer parentesco com o cigano Danko, esse herói da fábula. Os que têm necessidade de modelos de espírito revolucionário roubados aos romances de ciganos devem ir procurá-los na história do partido dos socialistas-revolucionários!
E Gorki afirma ainda três linhas mais adiante:
"Lenine era simples e recto como tudo o que dizia."
Se assim era, porquê imaginá-lo arrancando do peito o coração inflamado? Não haveria em tal gesto nenhuma simplicidade, nenhuma franqueza... Porém estas palavras "simples e recto" não foram muito bem escolhidas; há na verdade ingenuidade a mais, sinceridade a mais. Fala-se assim dum rapaz honesto, dum bravo soldado, que diz simplesmente a verdade, tal qual ela é. Esses são termos que não convêm a Lenine, tome-mo-los do modo que quisermos.
Ele era, sem dúvida, duma simplicidade genial nas decisões, nas conclusões, nos métodos, nos actos: sabia rejeitar, afastar, pôr em segundo plano tudo o que não tinha uma importância real, tudo o que era apenas acessório ou fogo de vista; sabia dissecar uma questão, reduzi-la aos seus justos termos, sondar-lhe o fundo.
Mas isso não quer dizer que fosse unicamente "simples ,e recto". E ainda menos deveria significar que o seu pensamento se movia "em linha recta" como, aliás, afirma Gorki: expressão esta das mais lamentáveis, em tudo digna de um pequeno-burguês de um menchevique.
Recordo-me subitamente, a este respeito, da definição do jovem escritor Babel: "A curva complexa descrita pela linha recta de Lenine."
Esta é, apesar das aparências, apesar da antinomia e da subtileza um tanto ou quanto rebuscada dos termos agrupados, uma explicação verdadeira. Vale, em todo o caso, muito mais do que a tão sumária "linha recta" de Gorki.
O homem unicamente "simples e recto" dirige-se sem desvio para o seu objectivo. Lenine dirigia-se e conduzia para um objectivo sempre igual através de uma estrada cheia de complicações, através de caminhos por vezes muito desviados.
Finalmente, essa ligação dos termos "simples e recto" não exprime de modo algum a incomparável malícia de Lenine, a sua habilidade rápida e brilhante, a paixão de virtuoso que sentia ao derrubar o adversário com uma rasteira ou ao atraí-la a uma armadilha.
Mencionámos a tensão de Lenine para atingir o objectivo: convém insistir neste ponto. Um crítico julgou descobrir um ponto de vista profundo ao explicar-me que Lenine não se distinguia unicamente pela tensão ,para atingir o objectivo, mas também pela sua habilidade de manobra; este crítico censurava-me por ter dado, na imagem que tracei de Lenine, uma rigidez de pedra ao grande homem, em ,detrimento da sua maleabilidade.
Aquele que assim pretendeu admoestar-me, embora fazendo-o de um modo diferente de Gorki... não compreendeu o valor relativo dos termos empregados.
Deveria, com efeito, meter bem na cabeça que "a tensão para o objectivo" não indica necessariamente uma conduta "em linha recta".
E que preço poderia custar a maleabilidade de Lenine sem essa tensão que não afrouxava um minuto
É possível encontrar-se no mundo tanta maleabilidade política quanta se quiser: o parlamentarismo burguês é uma escola excelente onde os políticos se treinam constantemente a dobrar a espinha dorsal. Embora Lenine tenha troçado com frequência da "linha recta dos doutrinários", também exprimiu não menos frequentemente o seu desprezo pelas pessoas demasiado maleáveis que se inclinam nem sempre e necessariamente perante um mestre burguês, nem sempre com um objectivo interesseiro mas digamos: perante a opinião pública, perante uma situação difícil - procurando a linha de menor resistência.
Toda a essência de Lenine, todo o seu valor íntimo, consiste no facto de ter perseguido incansavelmente um objectivo único, cuja importância o impregnava a tal ponto que parecia incarná-lo e não o distinguir dele próprio. Não considerava e não podia considerar as pessoas, os livros, os acontecimentos senão em função deste objectivo único da sua existência.
É muito difícil definir um homem com uma só palavra; afirmar que foi "grande" ou que foi "genial" nada nos diz. Mas se fôssemos forçados a explicar Lenine muito sucintamente diríamos que em primeiro lugar ele se esforçava para atingir o seu objectivo.
Gorki aponta o encanto sedutor do riso de Lenine. "Riso de um homem que, discernindo admiravelmente o peso da estupidez humana e as manobras acrobáticas da razão, sabia também fazer as delicias da ingenuidade pueril dos simples de espírito."
Embora expressa com um certo requinte, a observação é verdadeira na sua essência.
Lenine gostava de rir dos imbecis e dos espertos que procuravam fazer espírito; e ria com uma indulgência que a sua formidável superioridade justificava. Na intimidade de Lenine as pessoas riam por vezes com ele, sem que se rissem pelo mesmo motivo... Porém, o riso das massas concordava sempre com o dele. Amava os simples de espírito, se nos quisermos servir da expressão evangélica. Gorki conta-nos como, em Capri, Lenine aprendeu com os pescadores italianos a servir-se da linha de pesca (segura com os dedos); essa boa gente explicou-lhe que deveria "puxar" logo que a linha fizesse "drine-drine"; assim que apanhou o primeiro peixe e o sentiu aproximar-se preso ao anzol, gritou com uma alegria infantil, com um entusiasmo de verdadeiro amador:
- Ah! Ah! "drine-drine!"
Eis uma boa imagem! Eis verdadeiramente uma parcela viva de Lenine. Essa paixão, esse entusiasmo, esse esforço ,do homem para atingir o seu objectivo, para "puxar", para apanhar a presa - ah! ah! drine-drine! aí estás tu, minha rica - tudo isso é bem diferente desse "justo" de quaresma, desse "pai protector" de que nos falaram; é Lenine em pessoa, numa parte dele próprio. Quando ao apanhar um peixe evidencia o seu entusiasmo, adivinhamos o seu amor à natureza, como a tudo o que estava próximo da natureza, as crianças, os animais, a música. Esta poderosa máquina pensante estava muito próxima do que existe para além do pensamento, para além duma procura consciente; estava muito próxima do elemento primitivo e indefinível. Esse maravilhoso indefinível exprime-se pelo "drine-drine". Penso que, devido a este pequeno pormenor significativo, nos é permitido perdoar a Gorki um quarto das banalidades que semeou no seu artigo. Veremos adiante o motivo por que não lhe podemos perdoar nada mais...
"Afagava as crianças com doçura - diz-nos Gorki - sendo os gestos duma leveza, duma delicadeza muito especiais,"
Também isto foi bem expresso; demonstra essa ternura de homem que respeita a pessoa física e moral da criança; poderia falar-se igualmente do aperto de mão de Lenine: era forte e doce.
Recordo-me do seguinte episódio relativamente ao interesse que os animais despertavam em Lenine: reuníramo-nos em Zimmerwald, numa comissão destinada a elaborar ,um manifesto. Realizávamos a nossa sessão ao ar livre, à volta duma mesa redonda de jardim, numa aldeia de montanha. Não longe de nós encontrava-se um grande barril de água debaixo de uma torneira. Pouco tempo antes da reunião (que teve lugar a uma hora matinal), vários delegados tinham vindo lavar-se a essa torneira. Eu tinha visto Fritz Platten mergulhar a cabeça e o corpo até à cintura na água, como se quisesse afogar-se, com grande estupefacção dos membros da conferência.
Os trabalhos da comissão avançavam com dificuldade. Verificavam-se atritos em várias direcções, mas sobretudo entre Lenine e a maioria. Apareceram então dois belos cães: de que raça não sei; nessa época eu não sabia nada disso. Pertenciam, sem dúvida, ao proprietário da habitação, pois puseram-se tranquilamente a brincar na areia, sob o sol matinal. Vladimir Ilitch levantou-se bruscamente da cadeira, pôs um joelho no chão e, rindo, começou a fazer cócegas na barriga aos dois animais, com gestos leves, delicadamente atenciosos, segundo a expressão de Gorki. Esta atitude foi completamente espontânea da sua parte; quase apetecia dizer que se tratava de um miúdo, e o seu riso era despreocupado, pueril. Lançou um olhar à comissão, como se quisesse convidar os camaradas a tomar parte nesse belo divertimento. Parece-me que era olhado com um certo espanto: cada um estava ainda preocupado com a grave discussão havida. Lenine continuou a fazer festas aos animais, agora mais calmamente, voltou depois para a mesa e declarou que não assinaria um tal manifesto. A disputa recomeçou com nova violência. Digo hoje a mim próprio ser muito possível que esta "diversão" lhe tenha sido necessária para resumir no seu pensamento os motivos de aceitação e de recusa e para tomar uma decisão. Contudo, não agira por cálculo: o subconsciente trabalhava nele em plena harmonia com o consciente.
Gorki admirava em Lenine "esse entusiasmo juvenil que infundia a tudo quanto fazia". Tal entusiasmo era disciplinado, dominado por uma vontade de ferro, do mesmo modo que uma torrente impetuosa é controlada pelo granito da montanha; Gorki não no-lo diz, muito embora a sua definição continue a ser verdadeira: havia precisamente em Lenine um entusiasmo juvenil. E nele se reconhecia, com efeito, "essa excepcional vivacidade espiritual que só é própria de um homem inabalavelmente convencido da sua vocação".
Aqui temos, de novo, algo de verdadeiro e profundo. Porém, essa linguagem antiquada, débil, que ouvíramos há pouco, esse estado de santidade de que nos falaram, ou então esse "ascetismo" (!), esse "heroísmo monástico" (!!) que foi questão noutra passagem, não estão de modo algum de acordo com o entusiasmo juvenil: opõem-se um ao outro como o fogo à água. "O estado de santidade", o "ascetismo" manifestam-se quando um homem se põe ao serviço de "um princípio superior, dominando as suas inclinações, as suas paixões pessoais. O asceta é interesseiro; faz os seus cálculos, espera uma recompensa. Na sua obra histórica, Lenine realizava-se completamente e até ao fim.
"Os olhos de omnisciente do espertalhão" - não está mal, embora formulado de modo grosseiro. Mas como conciliar esse olhar de omnisciente com a "simplicidade" e a "franqueza" e, sobretudo, com a "santidade"?
"Ele gostava das coisas divertidas - conta Gorki - e ria com o corpo todo, verdadeiramente "inundado" de alegria, por vezes até às lágrimas."
É verdade, e todos aqueles que tiveram conversas com ele se aperceberam disso. Em certas reuniões com um número de participantes reduzido, acontecia-lhe ter um ataque de riso, e isto não apenas nas épocas em que tudo corria bem mas até em períodos extremamente difíceis. Procurava reprimir-se tanto tempo quanto lhe era possível, mas, no fim de contas, rebentava de riso e o seu rir era contagioso; procurava não chamar a atenção, não fazer barulho, escondendo-se quase sob a mesa a fim de evitar a desordem.
Esta hilariedade louca apoderava-se dele sobretudo quando estava fatigado. Com um gesto habitual, a mão cortando o ar de cima para baixo, parecia afastar para longe a tentação. Mas baldadamente. E apenas conseguia retomar o controlo de si mesmo olhando fixamente para o relógio, retesando todas as suas forças interiores, desviando-se prudentemente de todos os olhares, afectando um ar de severidade, restabelecendo com uma rigidez forçada a ordem que um presidente deve manter.
Em casos destes, os camaradas tinham como ponto de honra surpreender à sucapa o olhar do "speaker" e provocar com uma graça uma recidiva de alegria. Se a tentativa era coroada de êxito, o presidente zangava-se simultaneamente contra o responsável pela desordem e contra si próprio.
É evidente que estas diversões não se produziam com muita frequência: sucediam principalmente no fim das sessões, após quatro a cinco horas de trabalho intenso, quando todos se encontravam esgotados. De um modo geral, Ilitch conduzia as deliberações com estrito rigor: único método capaz de permitir que inúmeras questões fossem resolvidas numa sessão.
"Tinha uma maneira muito dele de dizer "hum hum!" - continua Gorki - e sabia proferir esta interjeição expressiva ao longo de uma gama infinita de cambiantes que se estendiam desde a ironia sardónica à dúvida circunspecta; frequentemente, este "hum! hum!" traduzia um humor picante cuja malícia ,era apenas sensível a um homem muito perspicaz conhecendo bem as loucuras diabólicas da existência."
É verdade, está certo. O "hum! hum!" desempenhava com efeito um papel importante nas conversas intimas de Lenine, aliás do mesmo modo que nos seus escritos de polemista. Ilitch pronunciava o seu "hum! hum!" muito nitidamente e, como observa Gorki, com uma infinita variedade de cambiantes. Encerrava-se nisso uma espécie de código de sinais que empregava para exprimir os estados de alma mais diversos. No papel, o "hum! hum!" não diz nada; na conversa ,era muito expressivo, valia pelo timbre da voz, pela inclinação da cabeça, pelo jogo das sobrancelhas, pelo gesto ,das mãos eloquentes.
Gorki descreve-nos também a atitude favorita de Lenine: "Deitava a cabeça para trás e, seguidamente, inclinando-a sobre o ombro, metia os dedos nas cavas do colete, sob as axilas. Havia neste gesto algo de surpreendentemente divertido e encantador, dir-se-ia o de um galo triunfante e nesses momentos ficava radioso."
Tudo isto é dito de uma forma perfeita, exceptuando o "gajo triunfante" que não se adapta nada à imagem de Lenine. Porém a atitude está bem descrita. Mas, ai de nós! lê-se um pouco mais adiante:
"Criança grande deste mundo maldito, homem excelente que tinha necessidade de se oferecer como vítima à hostilidade e ao ódio para realizar uma obra de amor e de beleza..."
Piedade, piedade, Alexis Maximovitch!
"Criança de um mundo maldito!...", a expressão cheira a impostura que tresanda! Lenine assumia, sem dúvida, uma pose extraordinariamente insinuante, por vezes talvez um pouco maliciosa, mas não havia aí qualqu!er espécie de impostura. A expressão "oferecer-se como vítima" é falsa, insuportável como o raspar de um prego sobre o vidro! Lenine de modo algum se sacrificava, antes vivia uma vida plena, criadora, desenvolvendo completamente a sua personalidade ao serviço do objectivo que escolhera em completa liberdade. E a sua obra não era, de maneira nenhuma, "de amor e de beleza": eis aqui dois termos duma generalidade demasiado comum, duma redundância desfocada; só lhe faltam, de facto, as maiúsculas: Amor e Beleza! A tarefa de que Lenine se encarregou foi a de despertar e de unir os oprimidos a fim de abater o jugo da opressão; esta causa dizia respeito a noventa e nove por cento da humanidade.
Gorki fala-nos das atenções de Lenine para com os seus camaradas, da preocupação que sentia com a saúde deles. E acrescenta: "Jamais pude surpreender neste sentimento a preocupação interessada que manifesta um patrão inteligente relativamente a Operários honestos e hábeis."
Pois bem! Gorki engana-se por completo; deixou escapar precisamente um dos traços essenciais de Lenine. As suas atenções pessoais para com os camaradas nunca estavam desligadas da preocupação do bom patrão, inquieto com o trabalho que havia a fazer. Não há dúvida que é impossível falar-se neste caso de um sentimento "interessado", uma vez que a própria obra não é apenas pessoal; mas é indiscutível que Lenine subordinava a sua solicitude para com os camaradas aos interesses da causa - dessa causa que agrupava justamente em torno dele os seus companheiros. Esta aliança de preocupações de ordem geral e individual não diminuía em nada a humanidade dos seus sentimentos; pelo contrário, a tensão de todo o seu ser para atingir o fim político só a tornava mais forte e mais plena.
Gorki não se apercebeu disso, não compreendeu certamente o destino que teve um grande número dos seus pedidos a favor de pessoas que "tinham sofrido" com a revolução, pedidos esses que dirigia directamente a Lenine.
É sabido que as vítimas da revolução foram muito numerosas e as diligências de Gorki também não foram raras: algumas foram até totalmente absurdas. Basta lembrarmo-nos da intervenção prodigiosamente enfática do escritor a favor dos socialistas-revolucionários, na época do famoso processo de Moscovo. Diz-nos Gorki:
"Não me lembro de caso algum em que Ilitch tenha recusado um dos meus pedidos. Se aconteceu, por vezes, as decisões de Lenine não serem executadas, a culpa não era sua: isso pode ser provavelmente explicado por esses malditos "defeitos de funcionamento" que sempre foram profusamente numerosos na nossa pesada máquina governamental. Também é de admitir que tenha havido por vezes má vontade da parte de não sei quem, quando se tratava de minorar o destino de certas pessoas, de lhes salvar a vida..."
Confessemos que estas linhas nos chocaram mais do que todo o resto.
O que se poderá, com efeito, concluir? O seguinte: como chefe do Partido e do Estado, Lenine perseguia implacavelmente os inimigos da revolução; mas bastaria a Gorki interceder e não haveria caso algum em que Lenine recusasse o pedido do escritor? Deveria então admitir-se que, para Lenine, o destino das pessoas se decidia de acordo com a intervenção dos amigos. Esta afirmação seria totalmente incompreensível se o próprio Gorki não pusesse as suas reservas: não foram satisfeitas todas as diligências que fez. Mas nesse caso ele acusa os defeitos do mecanismo soviético...
Será mesmo assim? Seria Lenine verdadeiramente impotente para superar os defeitos do mecanismo numa questão tão simples como a da libertação de um prisioneiro ou a comutação de pena de um condenado? É bastante duvidoso. Não seria mais natural admitir que Lenine, após ter lançado sobre o requerimento e o requerente "o olhar omnisciente do espertalhão", evitava discutir o assunto com Gorki, deixando seguidamente ao mecanismo soviético, com todos os seus defeitos pretensos ou reais, a tarefa de executar o que exigiam os interesses da revolução? Com efeito, Lenine não era assim tão "simples" e tão "recto" quando se via obrigado a enganar o sentimentalismo pequeno-burguês. As atenções de Lenine para com a personalidade humana eram infinitas, mas estavam inteiramente subordinadas às atenções que devia, em primeiro lugar, à humanidade inteira, cujo destino se confunde, na nossa época, com o do proletariado. Se Lenine não tivesse sido capaz de subordinar o particular ao geral teria sido "um justo" que "se oferece como vítima em nome do amor e da beleza", mas não seria certamente o Lenine que conhecemos, o chefe do Partido bolchevique, o autor da Revolução de Outubro.
É preciso acrescentar ao que acima se descreve o relato de Gorki sobre "a extraordinária obstinação" de que Lenine deu prova quando, durante mais de um ano, exortou o escritor a seguir um tratamento no estrangeiro.
"Na Europa, num bom sanatório, você poderá tratar-se e trabalhará três vezes mais. Hé! Hé!...Parta, cure-se...Não se obstine em ficar aqui, peço-lhe."
É conhecida de todos, e indiscutível, a ardente simpatia que Lenine sentia por Gorki, tanto pelo homem como pelo escritor. Não há dúvida que a saúde de Gorki preocupava Lenine. No entanto, na "extraordinária obstinação" com que Lenine queria enviar Gorki para o estrangeiro havia também um certo cálculo político: na Rússia, nesses anos difíceis, o escritor desorientava-se de forma deplorável, arriscando perder-se definitivamente; no estrangeiro, perante a civilização capitalista, poderia recuperar. Poderia despertar nele o estado de alma que outrora o tinha forçado a "cuspir no rosto" da França burguesa.
Sem dúvida, não era indispensável para Gorki repetir esse "gesto" que em si era bem pouco persuasivo; mas a disposição de espírito que o inspirara prometia ser muito mais fecunda do que as piedosas diligências a favor de trabalhadores intelectuais, cuja única infelicidade provinha do facto de não terem conseguido, pobres deles, lançar no devido tempo um nó corredio sobre o proletariado revolucionário.
Sim, Lenine preocupava-se com Gorki, desejava sinceramente ver melhorar a sua saúde, ver o escritor trabalhar; tinha contudo necessidade de um Gorki recuperado e é por isso que insistia tanto em enviá-lo para o estrangeiro; é por isso que o exortava a ir cheirar um pouco os odores da civilização capitalista. Mesmo aqueles que não se encontravam nos bastidores desta questão podem, baseados no gesto de Gorki, adivinhar os motivos de Lenine: agia precisamente como um bom patrão que jamais e em circunstância alguma esquece os interesses da causa que lhe foi confiada pela História.
Não foi como revolucionário, foi como pequeno-burguês moralizador que Gorki nos retratou a imagem de Lenine; e eis o motivo por que esta figura, esculpida num só bloco de uma unidade tão excepcional, se encontra desagregada no texto.
Mas o caso piora ainda quando Gorki passa à política propriamente dita. Neste campo existem apenas mal-entendidos ou erros deploráveis.
"Homem de uma vontade extraordinariamente forte, era no restante o tipo exacto do intelectual russo."
Lenine - tipo de intelectual! Não é curioso ouvir isto? Não se tratará duma brincadeira, duma inconveniência monstruosa? Lenine - tipo de intelectual!
Porém, isto não basta a Gorki. Com efeito, segundo ele, ficamos a saber que Lenine "possuía no mais alto grau uma qualidade que é apanágio da elite intelectual russa - a renúncia levada até ao tormento, até à mutilação do próprio ser...
Vejam só isto! Que disparate! Um pouco mais atrás Gorki desenvolvia tanto quanto lhe era possível a ,ideia de que o heroísmo de Lenine "é o ascetismo modesto, muito frequente na Rússia, do honesto intelectual revolucionário que acredita sinceramente na possibilidade de haver justiça sobre a terra", etc. É fisicamente impossível descrever esta passagem por tão falsa e desoladora... "O intelectual honesto que crê na possibilidade de justiça sobre a terra!" Como se se tratasse simplesmente de um pequeno funcionário provinciano, de um radical que leu as Cartas históricas de Lavrov ou então a falsificação que delas nos deu, mais tarde, Tchernov...
Recordo-me a propósito que um dos velhos tradutores marxistas de outrora chamou a Karl Marx "o grande carpidor da desgraça popular".
Há vinte anos, na vila de Nijne-linsk, divertia-me francamente com este Karl Marx provinciano. Todavia, é preciso constatar que, hoje em dia, nem Lenine escapou ao seu destino: um Gorki, um homem que viu Illitch, que o conhecia bem, que se contava entre os seus íntimos, que por vezes colaborou com ele, representa-nos este atleta do pensamento revolucionário não só como um piedoso asceta, mas, e o que é pior, como o tipo do intelectual russo.
Isto é uma calúnia, e tanto mais perniciosa quanto é feita de boa fé, com grande benevolência e quase que num transporte de entusiasmo.
Lenine encontrava-se certamente impregnado da tradição do radicalismo intelectual revolucionário; contudo, tinha-o superado e ultrapassado e só a partir desse momento se tornou Lenine.
O intelectual russo "típico" é terrivelmente limitado; ora Lenine é precisamente um homem que ultrapassa todos os limites, sobretudo os limites dos intelectuais.
Se é verdade afirmar-se que Lenine se encontrava impregnado da tradição secular dos intelectuais revolucionários, será ainda mais verdadeiro afirmar que ele concentra em si o impulso multi-secular do elemento camponês: revive nele o mujique com o seu ódio à classe senhorial, com o seu espírito calculista, a inteligência viva de dono da sua casa. Porém, o que há de limitado, de tacanho no mujique, foi superado, ultrapassado por Lenine através de um imenso impulso do pensamento e do domínio da vontade.
Finalmente, em Lenine - e é o que há de mais sólido, de vigoroso nele - encontra-se incarnado o espírito do jovem proletariado russo. Não nos apercebermos disso, vemos apenas o intelectual, é não vermos absolutamente nada. O que torna genial a obra de Lenine é o facto de, através dele, o jovem proletariado russo se emancipar, sair da sua situação extremamente limitada e elevar-se à universalidade histórica. É por isso que a natureza de Lenine, profundamente ligada ao solo, se desenvolve organicamente, se revela em poder criador, se torna invencivelmente internacional. O seu génio consiste, antes de mais nada, em ultrapassar todos os limites.
O traço essencial do carácter de Lenine é definido por Gorki de forma muito precisa, quando lhe atribui "um optimismo combativo".
Acrescenta, porém: "Nele, esta faceta não tinha nada de russo..."
Que ideia! Mas vejamos: então este intelectual típico, este asceta de província, não constitui o que há de mais russo, de mais local? Não é ele um dos homenzinhos de Tambov? Como é possível que Lenine, com traços essenciais de carácter que "não são russos", com uma vontade de ferro e um optimismo combativo, não seja ao mesmo tempo o tipo do intelectual russo? Não haverá aqui uma forte calúnia contra o homem russo em geral? O talento de conduzir pulgas pela trela é, na verdade, indiscutivelmente russo; mas, graças à dialéctica isso não vai durar sempre, vai mudar. A política socialista-revolucionária, que coroou o regime de Kerenski, constituiu a expressão mais elevada dessa velha arte nacional que consiste em conduzir as pulgas pela trela. Mas Outubro, não vos esqueceis, Alexis Maximovitch, teria sido impossível se, muito tempo antes, não se tivesse acendido no homem russo uma nova chama, se o seu carácter não se tivesse transfigurado.
Lenine interveio, não apenas na época em que a História russa muda de direcção, mas também no momento em que o "espírito" nacional se transforma devido a uma crise. Pretendeis que os traços essenciais de Lenine não são "russos"... Mas permitireis que vos perguntemos se o Partido bolchevique é um fenómeno russo autêntico ou, digamos: holandês? O que diríeis então desses proletários actuando clandestinamente, desses combatentes, desses Uralianos duros como um rochedo, desses franco-atiradores, desses comissários do exército vermelho que, dia e noite, mantêm o dedo no gatilho duma pistola e, hoje em dia, desses directores de fábricas, desses organizadores de trusts que estariam prontos a arriscar a cabeça pela emancipação do "coolie" chinês? Aqui está uma raça, um povo, uma das grandes "categorias" da humanidade! E não serão feitos da mesma massa que se fabrica na Rússia? Permitireis que vos contradiga.
E que dizer também de toda a Rússia do século XX (e de outrora): já não é o país provinciano das épocas longínquas; é uma Rússia nova internacional, com um carácter de aço. O Partido Bolchevique é constituído por uma selecção desta nova Rússia e Lenine é o seu maior mestre e educador.
Contudo, estamos a entrar aqui no domínio da confusão absoluta: Gorki, não sem um assomo de vaidade, declara-se um "marxista duvidoso", que não acredita de forma alguma na razão das massas em geral e das massas camponesas em particular. Julga que as massas precisam de ser governadas de fora.
"Eu sei - escreve - que ao exprimir ideias destas, me exponho mais uma vez à troça dos políticos. Sei igualmente que os mais inteligentes e os mais honestos de entre eles se rirão de mim sem convicção e, por assim dizer, por dever de ofício."
Não sei quais são os políticos "inteligentes e honestos" que partilham do cepticismo de Gorki relativamente às massas. Mas esse cepticismo parece-nos bem medíocre. O facto das massas terem necessidade de serem dirigidas "de fora", já Lenine, parece-nos, tinha adivinhado. Talvez Gorki tenha ouvido dizer que, precisamente para dirigir as massas, Lenine tinha gasto toda a sua vida consciente na criação de uma organização especial: o Partido bolchevique. Ele não encorajava, de modo algum, uma fé cega na razão das massas. No entanto, desprezava ainda mais a arrogância desses intelectuais que acusavam as massas de não serem feitas à sua imagem e semelhança. Lenine sabia que a razão das massas se deve adaptar à marcha objectiva das coisas. O Partido deveria facilitar essa adaptação e, como o prova a História, desempenhou a tarefa com um certo sucesso.
Gorki, assim no-lo diz, está em desacordo com os comunistas no que se refere ao papel dos intelectuais. Pensa que os melhores de entre os antigos bolcheviques educaram centenas de operários precisamente "num espírito de heroísmo social e de uma alta intelectualidade" (!!). De um modo mais simples e mais exacto, Gorki apenas aceitava os bolcheviques numa época em que o bolchevismo se encontrava ainda em ensaios de laboratório, preparando os primeiros quadros intelectuais. Sentia-se muito próximo do bolchevique de l903-l905. Mas o homem de Outubro, amadurecido, formado, aquele que, com uma mão inflexível, executa aquilo que apenas se começava a entrever há quinze anos, esse é estranho e antipático a Gorki.
O próprio escritor, com a sua constante orientação no sentido de uma cultura mais elevada, de uma mais completa intelectualidade, encontrou no entanto a forma de se deter a meio caminho. Não se trata de um laico, nem de um pope: ele é o poeta da cultura.
Deriva daí a sua atitude altiva, o seu desdém em relação à razão das massas e, ao mesmo tempo, ao marxismo, se bem que este, como já foi afirmado, sendo muito diferente do subjectivismo, se apoie não sobre a fé na razão das massas, mas sobre a lógica do processo material que, afinal, submete à sua lei "a razão das massas".
É verdade que a via que aí nos conduz não é muito simples, e que ao percorrê-la se parte muita louça; partem-se até alguns utensílios da "cultura". :Eis o que Gorki não pode tolerar! Segundo ele, deveríamos contentar-nos em admirar a bela louça, sem nunca a partirmos.
Para aproximar Lenine da sua pessoa, para se consolar, Gorki afirma que Ilitch "teve, sem dúvida, por mais de uma vez, de meter a sua alma pelas asas", por outras palavras, de contrariar a sua vontade: implacável quando lhe era necessário esmagar determinada resistência, Lenine estaria assim sujeito a lutas interiores, devendo vencer o seu amor ao homem, o seu amor à cultura; isto constituía para ele um verdadeiro drama. Numa palavra, Gorki XXX pg 208 inftige a Lenine esse desdobramento que caracteriza os intelectuais, essa "consciência doentia" que outrora se prezava tanto, esse precioso abcesso do velho radicalismo intelectual.
Mas tudo isso é falso. Lenine era feito de uma só peça. Objecto de alta qualidade, de estrutura complexa, mas sólida em todos os sentidos, e no qual todos os elementos se adaptavam. admiravelmente uns aos outros.
A verdade é que Lenine evitava muitas vezes contactar com os solicitadores, os defensores e as pessoas desta espécie.
"Que fulano o receba, dizia ele com um risinho evasivo, senão serei mais uma vez demasiado bom."
Sim, muitas vezes ele tinha medo de ser "demasiado bom", pois conhecia a perfídia dos inimigos e a beata estupidez dos intermediários, considerando, em suma, como insuficiente qualquer medida de severa prudência. Preferia atirar sobre um inimigo invisível, em lugar de se deixar distrair por contingências e de ser "demasiado bom". Manifestava-se aí, mais uma vez, o cálculo político e não essa "consciência doentia" que acompanha necessariamente os caracteres desprovidos de vontade, choramingas - a natureza húmida do "típico inttelectual russo".
E ainda não é tudo. Gorki - ele próprio o diz - censurava Lenine por "compreender o drama da existência de uma forma muito simplificada" (hum! hum!) e dizia-lhe que esta compreensão simplificada "ameaçava de morte a cultura" (hum! hum!).
Durante os dias críticos do final de l9l7 e início de l9l8, quando em Moscovo se atirava sobre o Kremlin, quando os marinheiros (o facto deve ter sucedido mas não com tanta frequência como o pretendeu a calúnia burguesa) apagavam os cigarros esmagando-os sobre os Gobelins, quando os soldados -afirmava-se - talhavam calças bastante incómodas e pouco práticas nas telas de Rembrandt (eram estes os motivos de queixa apresentados a Gorki pelos representantes consternados "duma ana intelectualidade" XXX pg 209 -durante esse período, Gorki ,ficou completamente desorientado, cantando requiens desesperados por alma da nossa civilização. Terror e barbárie! Os bolcheviques preparavam-se para partir todos os vasos históricos, os vasos de flores, os vasos domésticos, os vasos de noite!
E Lenine respondia-lhe: "Partiremos tantos quantos for necessário e se partirmos demais a culpa será dos intelectuais que continuam a defender posições insustentáveis." - Não era isto proveniente dum espírito estreito? Não se veria através disto - piedade, piedade, Senhor! - que Lenine simplificava demasiadamente "o drama da existência"?
Não sei, mas repugna ao meu espírito raciocinar com base em considerações deste tipo. O interesse da vida de Lenine não consistia em gemer sobre a complexidade da existência, mas em reconstruí-la de forma diversa. Para tal, era preciso considerar a existência no seu conjunto, nos seus elementos principais, discernir as tendências essenciais do seu desenvolvimento e subordiná-las a todo o resto.
É precisamente por se ter tornado mestre na concepção criadora desses vastos conjuntos que considerava o "drama da existência" como se fosse seu dono: partiremos isto, demoliremos aquilo e sustentaremos provisoriamente aqueloutro.
Lenine distinguia tudo quanto era honesto, tudo quanto era individual, notava todas as particularidades, todos os pormenores. E se "simplificava", isto é, se rejeitava certos elementos secundários, não era por não os ter notado, mas porque conhecia com certeza as proporções das coisas...
Vem-me à memória, neste momento, um proletário de Petersburgo chamado Vorontsov que nos primeiros tempos a seguir a Outubro foi destacado para junto de Lenine a fim de o proteger e ajudar.
Como nos preparássemos para evacuar Petrogrado, Vorontsov disse-me com uma voz soturna:
Se por desgraça eles tomassem a cidade, iriam encontrar imensas coisas. Seria preciso enfiar dinamite por baixo de Petrogrado e fazê-la explodir completameme.
- E não teria pena de Petrogrado, camarada Vorontsov? perguntei, admirando-me da ousadia deste proletário.
- Ter pena de quê? Quando voltarmos, reconstruiremos algo de melhor.
Não inventei este breve diálogo, nem o estilizei. Permaneceu tal e qual, gravado na minha memória. Pois bem, é essa a boa maneira de considerar a cultura! Não se encontra aqui qualquer vestígio de choraminguice, nem se trata de um requiem. A cultura é obra das mãos humanas. Não se encontra, de facto, nos vasos decorados que a História conserva para nós, mas sim numa boa organização do trabalho dos cérebros e das mãos. Se no caminho desta boa organização se elevam obstáculos, é preciso ,afastá-los. E se então formos obrigados a destruir certos valores do passado, destruamo-los sem lágrimas sentimentais; voltaremos mais tarde para edificar, para criar valores novos, infinitamente mais belos do que os antigos. Eis o modo como Lenine considerava as coisas, reflectindo o pensamento e os sentimentos de milhões de homens. A sua opinião era boa e justa, tendo muito para ensinar aos proletários de todos os países.
Kislovodsk, 28 de Setembro de l924.
Notas:
(1) O artigo de Gorki sobre Lenine que Trotski
critica neste texto, encontra-se no tomo l7 das Obras Completas do escritor (Sobranie
socineni, tomo l7, Moscovo, l952).
O texto de l952 difere do que foi publicado em francês em l925;
nesta data, Gorki põe na boca de Lenine a propósito de Trotski: "Apontem-me
outro homem capaz de organizar no espaço de um ano um exército quase exemplar
e de, ainda por cima, conquistar a estima dos especialistas militares. Temos
esse homem. Temos tudo. E também faremos prodígios!" (Clarté, nº 7l, l de
Fevereiro de l925). Em l952, esta passagem passa a ser: "...Soube formar
especialistas militares. - Depois de um silêncio acrescentou muito baixo e
tristemente: - E, contudo, não é dos nossos, está connosco, mas não é dos
nossos; ambicioso, há nele algo de mau, do socialista Lassale." Estas aliterações
falam por si e tornam inútil que se busquem mais motivos para criticar as
falsificações estálinienas dos textos e da História. (Nota de M. B.) (retornar ao texto)
(2) Petersburgo. (retornar ao texto)
Inclusão | 06/02/2003 |
Última atualização | 03/03/2003 |