Textos Históricos da Revolução

Organização e introdução de Orlando Neves


Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas


Introdução 4

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O Programa do Movimento das Forças Armadas constitui um documento básico da Revolução Portuguesa. Ele esteve na origem de todas as transformações e foi também o pretexto para todas as crises, em especial a crise Palma Carlos e o 28 de Setembro.

Anunciado ao País no dia seguinte à Revolução, ao que parece depois de ter sido submetido a uma leitura «expurgató- ria» do ex-general Spínola, durante muitos meses ele foi (é) a carta de libertação do Povo Português.

Pode dizer-se que o Programa é um resumo, sábio e actualizado, de todos os documentos que a oposição conseguira publicar durante o obscurantismo fascista. Conjugando uma estrutura teórica democrática o Programa vai mais além. E, ao ir mais além, permitia a juristas habilidosos (Palma Carlos) ou a sequiosos do Poder absoluto (Spínola) interpretações restrittivas que justificariam as suas tentativas de o delimitar a uma estrei- tismo táctico reaccionário.

Nele se liquida, em termos teóricos, um passado de 48 anos. Nele se abrem todas as perspectivas para um futuro abrangedor do mais avançado. Nele se expõe um presente temporário capaz de tais interpretações recuantes. Esta ambiguidade do Programa se, no que respeita ao passado era mais ou menos indiscutível, nos planos do presente e do futuro favorecia algumas margens de confusão. Sabedores disto os homens do MFA criaram paralelamente à Junta de Salvação Nacional, de composição pouco progressista, uma Comissão Coordenadora do Programa do MFA, Comissão essa que foi, sem dúvida, o embrião do actual Conselho de Revolução e, mais do que isso, a intérprete progressista do próprio Programa que não permitiu que ele fosse desviado mais para a direita do que o estritamente táctico a cada momento. É, aliás, esta Comissão Coordenadora a principal personagem política da Revolução Portuguesa até ao final do ano de 1974. Ela saberá, a cada momento, agir como se impunha em alturas de crise. Vê-lo-emos adiante.

Spínola, segundo se sabe, logo após o 25 de Abril pretendeu marginalizar o Movimento e com ele o seu Programa (no que foi apoiado por várias forças políticas). Mas o Programa era, sem dúvida, a Carta Constitucional do País a partir do 25 de Abril. E os capitães não iriam permitir (como de facto aconteceu) que se desse essa marginalização.

Aos oficiais do Movimento cabia a interpretação avançada do seu Programa, aquela que existia subjacente ao texto. Nesse sentido lutaram permanentemente, vencendo todas as resistências.

Essa interpretação progressiva, que se encontrava no espírito do Programa, encontrava-se, afinal, e também na própria letra.

O Programa do Movimento das Forças Armadas vai mais longe que a grande maioria dos tais documentos da Oposição (e compreende-se porquê). Timidamente ou, ao menos, tactica- mente, o mais importante do Programa está aflorado no texto. Referimo-nos a duas frases: «Uma nova política económica, posta ao serviço do Povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas» e «uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras».

Antecipadamente aos partidos que viriam a constituir-se, o Programa, nestas duas simples frases, tomava ostensivamente a defesa dos interesses das classes exploradas contra as classes exploradoras (o que era também confirmado numa outra frase: «estratégia antimonopolista»).

De um salto, o Programa trazia à ribalta o que o governo fascista (e, depois, vários partidos) pretendera sempre ocultar: a luta de classes. Ao atirá-la para o primeiro plano, o Programa assumia uma clara opção marxista que somente se poderia resolver numa opção socialista. Isso foi detectado por muitos, o primeiro dos quais Spínola; a partir daí os seus sucessivos golpes para fazer o Movimento recolher aos quartéis e pôr de lado o Programa. Não o conseguiu, como sabemos.

A Revolução dos Cravos seguia a sua marcha anticapitalista.

Programa

Considerando que, ao fim de treze anos de luta em terras do Ultramar, o sistema político vigente não conseguiu definir, concreta e objectivamente, uma política ultramarina que conduza à paz entre os Portugueses de todas as raças e credos;

Considerando que a definição daquela política só é possível com o saneamento da actual política interna e das suas instituições, tornando-se pela via democrática, indiscutidas representantes do Povo Português;

Considerando ainda que a substituição do sistema político vigente terá de processar-se sem convulsões internas que afectem a paz, o progresso e o bem-estar da Nação:

O Movimento das Forças Armadas Portuguesas, na profunda convicção de que interpreta as aspirações e interesses da esmagadora maioria do Povo Português e de que a sua acção se justifica plenamente em nome da salvação da Pátria, fazendo uso da força que lhe é conferida pela Nação através dos seus soldados, proclama e compromete-se a garantir a adopção das seguintes medidas, plataforma que entende necessária para a resolução da grande crise nacional que Portugal atravessa:

A — Medidas imediatas

1 — Exercício do poder político por uma Junta de Salvação Nacional até à formação, a curto prazo, de um Governo Provisório Civil.

A escolha do Presidente e Vice-Presidente será feita pela própria Junta.

2 — A Junta de Salvação Nacional decretará:

a) A destituição imediata do Presidente da República e do actual Governo, a dissolução da Assembleia Nacional e do Conselho de Estado, medidas que serão acompanhadas do anúncio público da convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal directo e secreto, segundo lei eleitoral a elaborar pelo futuro Governo Provisório;

b) A destituição de todos os governadores civis no continente, governadores dos distritos autónomos nas ilhas adjacentes e Govemadores-Gerais nas províncias ultramarinas, bem como a extinção imediata da Acção Nacional Popular.

1) Os Governos-Gerais das províncias ultramarinas serão imediatamente assumidos pelos respectivos secretários-gerais, investidos nas funções de encarregados do Governo, até nomeação de novos Govemadores-Gerais, pelo Governo Provisório;

2) Os assuntos correntes dos governos civis serão despachados pelos respectivos substitutos legais enquanto não forem nomeados novos governadores pelo Governo Provisório;

c) A extinção imediata da DGS, Legião Portuguesa e organizações políticas da juventude;

No Ultramar a DGS será reestruturada e saneada, organizando-se como Polícia de Informação Militar enquanto as operações militares o exigirem;

d) A entrega às Forças Armadas de indivíduos culpados de crimes contra a ordem política instaurada enquanto durar o período de vigência da Junta de Salvação Nacional, para instrução de processo e julgamento;

e) Medidas que permitam vigilância e controle rigorosos de todas as operações económicas e financeiras com o estrangeiro;

f) A amnistia imediata de todos os presos políticos, salvo os culpados de delitos comuns, os quais serão entregues ao foro respectivo, e reintegração voluntária dos servidores do Estado destituídos por motivos políticos;

g) A abolição da censura e exame prévio.

1) Reconhecendo-se a necessidade de salvaguardar os segredos dos aspectos militares e evitar perturbações na opinião pública, causadas por agressões ideológicas dos meios mais reaccionários, será criada uma comissão ad hoc para controle da imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema, de carácter transitório, directamente dependente da Junta de Salvação Nacional, a qual se manterá em funções até à publicação de novas leis de imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema pelo futuro Governo Provisório;

h) Medidas para a reorganização e saneamento das forças armadas militarizadas (GNR, PSP, GF, etc.);

i) O controle de fronteiras será das atribuições das Forças Armadas e militarizadas enquanto não for criado um serviço próprio;

j) Medidas que conduzam ao combate eficaz contra a corrupção e especulação.

B — Medidas a curto prazo

1 — No prazo máximo de três semanas após a conquista do Poder, a Junta de Salvação Nacional escolherá, de entre os seus membros, o que exercerá as funções de Presidente da República Portuguesa, que manterá poderes semelhantes aos previstos na actual Constituição.

a) Os restantes membros da Junta de Salvação Nacional assumirão as funções de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Yice-Chefes do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Chefe do Estado-Maior da Armada, Chefe do Estado-Maior do Exército e Chefe do Estado-Maior da Força Aérea e farão parte do Conselho de Estado.

2 — Após assumir as suas funções, o Presidente da República nomeará o Governo Provisório Civil, que será composto por personalidades representativas de grupos e correntes políticas e personalidades independentes que se identifiquem com o presente programa.

3 — Durante o período de excepção do Governo Provisório, imposto pela necessidade histórica de transformação política, manter-se-á a Junta de Salvação Nacional, para salvaguarda dos objectivos aqui proclamados.

a) O período de excepção terminará logo que, de acordo com a nova Constitução Política, estejam eleitos o Presidente da República e a Assembleia Legislativa.

4 — O Governo Provisório governará por decretos-leis, que obedecerão obrigatoriamente ao espírito da presente proclamação.

5 — O Governo Provisório, tendo em atenção que as grandes reformas de fundo só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte, obri- gar-se-á a promover imediatamente:

a) A aplicação de medidas que garantam o exercício formal da acção do Governo e o estudo e aplicação de medidas preparatórias de carácter material, económico, social e cultural que garantam o futuro exercício efectivo da liberdade política dos cidadãos;

b) A liberdade de reunião e de associação.

Em aplicação deste princípio será permitida a formação de «associações políticas», possíveis embriões de futuros partidos políticos, e garantida a liberdade sindical, de ocordo com lei especial que regulará o seu exercício;

c) A liberdade de expressão e pensamento sob qualquer forma;

d) A promulgação de uma nova Lei de Imprensa, Rádio, Televisão, Teatro e Cinema;

e) Medidas e disposições tendentes a assegurar, a curto prazo, a independência e a dignificação do Poder Judicial;

1) A extinção dos «tribunais especiais» e dignificação do processo penal em todas as suas fases;

2) Os crimes cometidos contra o Estado no novo regime serão instruídos por juizes de direito e julgados em tribunais ordinários, sendo dadas todas as garantias aos arguidos.

As averiguações serão cometidas à Polícia Judiciária.

6 — O Governo Provisório lançará os fundamentos de:

a) Uma nova política económica, posta ao serviço do povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia antimonopolista;

b) Uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade da vida de todos os Portugueses.

7 — O Governo Provisório orientar-se-á em matéria de política externa pelos princípios da independência e da igualdade entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos dos outros países e da defesa da paz, alargando e diversificando relações internacionais com base na amizade e cooperação:

a) O Governo Provisório respeitará os compromissos internacionais decorrentes dos tratados em vigor.

8 — A política ultramarina do Governo Provisório, tendo em atenção que a sua definição competirá à Nação, orientar-se-á pelos seguintes princípios:

a) Reconhecimento de que a solução das guerras no Ultramar é política, e não militar;

b) Criação de condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino;

c) Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz.

C — Considerações finais

1 — Logo que eleitos pela Nação a Assembleia Legislativa e o novo Presidente da República, será dissolvida a Junta de Salvação Nacional e a acção das forças armadas será restringida à sua missão específica de defesa da soberania nacional.

2 — O Movimento das Forças Armadas, convicto de que os princípios e os objectivos aqui proclamados traduzem um compromisso assumido perante o País e são imperativos para servir os superiores interesses da Nação dirige a todos os Portugueses um veemente apelo à pai ticipação sincera, esclarecida e decidida na vida pública nacional e exorta-os a garantirem, pelo seu trabalho convivência pacífica, qualquer que seja a posição socia que ocupem, as condições necessárias à definição, en curto prazo, de uma política que conduza à solução dos graves problemas nacionais e à harmonia, progresso e justiça social indispensáveis ao saneamento da nossa vida pública e à obtenção do lugar a que Portugal tem direito entre as Nações.

continua>>>


Inclusão 02/04/2019