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O 25 de Novembro foi, à sua maneira, tão original como o 25 de Abril. Se a "Revolução dos cravos" se distinguira por ter derrubado o fascismo sem combates e sem vítimas, o golpe militar que lhe pôs termo pareceu não querer ficar-lhe atrás em cavalheirismo. A repressão, restrita à área militar, foi relativamente branda, o Conselho da Revolução manteve-se em funções, a legalidade democrática foi prontamente restabelecida, o PCP, alvo de acusações de ter tentado uma insurreição, permaneceu no governo. Cinco meses após o golpe, o país era dotado com uma Constituição avançada, "a caminho da sociedade sem classes"... Tudo funcionou como se a uma meia revolução devesse corresponder uma meia contra-revolução, a uma comédia, outra comédia.
Esta singularidade não se explica, naturalmente, pela "índole pacifica" dos portugueses. Os povos africanos podem atestá-lo. Elas tem a ver com o equilíbrio original entre as classes criado durante a crise revolucionária, o qual deu lugar, na sugestiva expressão de Boaventura Sousa Santos, a uma dualidade de impotências em vez de uma dualidade de poderes(2). O 25 de Novembro foi brando porque a contra-revolução não tinha muita energia, mas também porque não havia muita revolução para destruir.
Durante longos meses, o movimento popular, impulsionado pela classe operária e pelo proletariado rural, e o movimento conservador da burguesia tinham-se esgotado em escaramuças incertas, incapazes de fazer pender a balança decisivamente para um dos lados. Se no auge do "Verão quente" a revolução parecia prestes a ganhar a partida, a vantagem era ilusória porque o aparelho de estado, embora paralisado, se mantinha intacto e as massas não dispunham de forças para o assaltar.
Os três meses finais da crise, entre o pronunciamento de Tancos e o 25 de Novembro, tiveram como pano de fundo precisamente a disputa das tropas por parte da corrente popular. Mas, mesmo nessa fase clássica de desenlace de todas as crises revolucionárias, a impotência foi o traço marcante de parte a parte. Até que a burguesia, enquadrada pelo PS, PPD, CDS e ELP, e estimulada pelos americanos e alemães, reuniu forças para pôr ponto final ao confronto.
Em que se radicava a impotência da "esquerda" no Outono de 75? Esta é talvez a questão mais importante que os marxistas portugueses têm para responder. Quanto a nós, ela nascia da divisão que dilacerava a corrente revolucionária popular. O proletariado, verdadeiro motor dos acontecimentos, estava tão estreitamente entrelaçado com a pequena burguesia democrática que não conseguia desenganchar-se da sua direcção política. Ora, os interesses de um e da outra eram nesse momento abertamente antagónicos. O proletariado precisava, para realizar os seus objectivos, de se lançar na disputa armada do poder; a pequena burguesia de "esquerda" oferecia-lhe, em nome da evolução, uma grande variedade de tácticas, que tinham todas um traço comum: manter o poder fora do seu alcance. Daqui, a impotência.
Que isto não é uma tese "dogmática" marxista mostra-o o jogo dos conflitos e alianças, nesses três meses de agonia do PREC, entre os protagonistas da esquerda: PCP, os “gonçalvistas”, o grupo do COPCON, a extrema- esquerda.
A queda do V Governo, primeiro dobre a finados pela revolução, pôs em relevo as diferenças tácticas entre o PCP e o "gonçalvismo", diferenças que o PS e a direita persistem em ignorar por conveniência e a esquerda "marxista-leninista" por miopia.
Era missão atribuída ao V Governo, segundo o testemunho insuspeito de um seu membro, tomar medidas económicas de emergência, as quais "implicando sacrifícios para os próprios trabalhadores, tornar-se-iam necessariamente impopulares. Só um Governo, portanto, que merecesse a confianca dos trabalhadores poderia conseguir que estes as aceitassem sem forte reacção."(3) Tratava-se de amainar o descontentamento da burguesia à custa dos trabalhadores e, a este respeito, não havia divergências entre V. Gonçalves e o PCP.
O cálculo ficou porém prejudicado à partida pela brusca aparição do Documento dos Nove. A partir desse momento, começou a definir-se um desacordo, discreto, mas cada vez mais profundo, entre V. Gonçalves e Cunhal. O primeiro acreditava, com a sua impulsividade um pouco obtusa, poder fazer frente ao desafio de Melo Antunes e avançar com o "poder revolucionário". Mas o secretário-geral do PCP, para quem a unidade dos "militares democratas" era matéria de fé, entendeu desde logo que era preciso abandonar a trincheira.
Assim, enquanto V. Gonçalves obtinha do Conselho da Revolução a suspensão dos nove "rebeldes", o CC do PCP fazia votos por “recomposições, reajustamentos, ou reconsiderações que possam aumentar a eficiência governativa e alargar a base de apoio social e político do poder.”(4)
A calorosa e “inabalável” adesão do PCP ao governo durante o turbulento mês de Agosto era em parte forçada — a base proletária do partido não entenderia outra atitude — e em parte calculada — com esse apoio o partido colocava-se em melhores condições para regatear uma plataforma com os Nove.
As motivações do PCP nesta conjuntura foram expressas com franqueza só um ano mais tarde, no relatório do CC ao VIII Congresso: “O PCP repetidas vezes chamou a atenção para os perigos da formação de um tal Governo sem se resolver a situação no MFA.”
Formado este, o PCP insistiu na necessidade de uma “viragem na atitude da Esquerda militar [isto é, os “gonçalvistas”] no sentido da reaproximação e entendimento dos vários sectores do MFA, particularmente a Esquerda e os Nove”.(5)
Por fim, a 28 de Agosto, perante a iminência de um desastre que V. Gonçalves se obstinava em não admitir, o PCP decide-se a desautorizá-lo, renegando a FUR e lançando uma proposta pública de negociação ao PS e aos Nove. A proposta — é ainda Cunhal que o diz — "não foi bem recebida. A Esquerda militar, preocupada então numa aproximação com os esquerdistas, achou incorrecto admitirem-se conversações com os Nove e com o PS, que os esquerdistas acusavam de fascistas".(6)
Com esta oferta de capitulação ficou traçada a sorte da Assembleia de Tancos, donde V. Gonçalves saiu dias depois, amargurado pela derrota mas sobretudo pela traição do aliado.
Como chegara Vasco Gonçalves a colocar-se à esquerda do PCP? O que há de curioso no seu pensamento político e que o separa de Cunhal é que ele levou muito a sério o mito da "transição para o socialismo" no Verão de 75. Com a cabeça esquentada por leituras revisionistas mal digeridas, o "companheiro Vasco” acreditava piamente que se a aliança Povo/MFA se mantivesse firme na sua rota conseguiria levar de vencida todas as oposições, ganhando pedagogicamente a burguesia para o seu lado.
Como expusera com patética ingenuidade no discurso de Almada, abria-se "à pequena e sectores da média burguesia" a perspectiva de "por uma via pacífica, ascenderem progressivamente à sociedade sem classes, na qual gozarão exactamente dos mesmos direitos que o resto da população." (...) "Assim o queiram compreender.(7) Ascender à sociedade sem classes! — não havia melhor forma de pôr os patrões, os proprietários e os quadros em pé de guerra. Cunhal não tinha esta ingenuidade. Os caminhos do PCP e da "Esquerda militar" podem ter parecido idênticos, nesse Outono febril de manifestações e proclamações. Mas correspondiam a duas tácticas em disputa: a de uma fracção pequeno-burguesa inexperiente, que pretendia impor o "socialismo militar" em confronto com todos os sectores da burguesia; e a de um corpo pequeno-burguês amadurecido em largas batalhas políticas, considerando-se a si próprio como o condutor natural da classe operária e que se dispunha a procurar uma via mais prudente.
Naturalmente, para uns e para outros o objectivo era desviar o curso dos acontecimentos dos dois desenlaces extremos que os espreitavam: fascismo ou revolução proletária. Por isso, o PCP e os "gonçalvistas" se encontraram unidos, apesar das suas divergências, na luta contra a direita e na luta contra a esquerda.
Não podia ser mais arrasador o juízo que Cunhal fez do "esquerdismo" no VIII congresso do seu partido. "Força complementar e aliado efectivo da reacção", "procurou sempre agudizar os conflitos, provocar as forças armadas e militarizadas, a fim de que estas se voltassem contra o povo", procurou "desviar as massas dos seus objectivos e levá-las a adoptarem formas extremas de luta que conduzem a becos sem saída", "monumental provocação da UDP e outras forças esquerdistas" no assalto à embaixada de Espanha, "grande provocação diante do Patriarcado", "contribuição sinistra para o enfraquecimento político e militar do MFA", etc.(8)
Este rol de acusações desenha melhor os contornos da "Revolução Democrática e Nacional" do que todos os textos programáticos do PCP. Na perspectiva de Cunhal, não havia caminho para a frente — logo, tudo o que fosse no sentido de agudizar os conflitos era provocatório. E com este tipo de raciocínio que o progressista dos tempos de paz se transforma em capitulador e mesmo em reaccionário, nos momentos de crise revolucionária.
Em 40 anos de luta abnegada pela Democracia, Álvaro Cunhal sonhara com um grande PCP legal, representado no parlamento e no governo, respeitado pela sua força nos sindicatos, nas câmaras, na intelectualidade. Mas, no momento em que tudo isso fora alcançado, até para além das suas melhores expectativas, o mundo parecia ruir e uma agitação imprevista, poderosa e incontrolável, punha tudo em questão. Palavras de ordem inacreditáveis eram aclamadas em comícios e plenários — revolução socialista, controle operário, soldados ao lado do povo, tribunais populares, milícias! Mário Soares era apupado como fascista, oficiais democratas eram desfeiteados, tudo era subvertido. Esta subversão parecia-lhe produto da acção malfazeja dos "esquerdistas". Recusava-se a reconhecer nela uma criação do movimento operário, subindo trabalhosamente, um a um, os degraus que o levariam ao confronto com a burguesia. Por isso, via como única política possível em Setembro-Outubro tentar a todo o preço regressar a uma fase ultrapassada do movimento, abrindo caminho entre as tendências extremas da revolução e da contra-revolução: desligar os Nove da direita, mesmo à custa de concessões, desligar os gonçalvistas dos esquerdistas e voltar a colar as duas metades em que se partira o MFA democrático.
Mas, precisamente porque era um recuo, esta posição não era fácil de defender no Outono de 75. As massas operárias deslocavam-se ao encontro das palavras de ordem "esquerdistas", que penetravam por mil canais nas fileiras do PCP. Toda a dinâmica da luta empurrava a base proletária do partido a aproximar-se da extrema-esquerda para poder dar batalha à direita. Esses "esquerdistas" que ninguém levara a sério tinham adivinhado que o MFA não era de confiança, que a burguesia democrática iria passar-se para o outro lado da barricada, que era preciso pensar em tomar o poder.
O PCP foi sacudido por uma onda "sectária", como Cunhal confessaria mais tarde: "Registou-se em certos momentos e em certos sectores um grande sectarismo e uma cedência à pressão esquerdista", "houve palavras de ordem e formas de luta que não correspondiam às condições existentes", "obreirismo", "triunfalismo", "a influência esquerdista fez-se sentir no cerco ao VI Governo pelos deficientes das Forças Armadas e pelos trabalhadores da construção civil", etc.(9)
A duplicidade de que o PCP foi acusado nesses meses, pelo facto de permanecer no VI Governo fazendo apelos à concórdia, ao mesmo tempo que "se decidira a fazer uma aliança com a extrema-esquerda" para a tomada do poder(10), tinha um sinal contrário ao que se lhe atribuía: Cunhal era forçado a lutar em duas frentes, negociando com o PS e os Nove para evitar um confronto, mas sendo suficientemente duro para não deixar os operários irem para os braços dos "esquerdistas".
Até ao último momento, a direcção do PCP continuou a jogar com o pau de dois bicos. Para não perder contacto com o movimento, teve que esbater as críticas ao "esquerdismo" e foi radicalizando as palavras de ordem: saída do PPD do governo, reforço da representação da esquerda no poder civil e militar(11) e, por último, "formação de um governo de defesa da Revolução" (manifesto do PCP a 22 de Novembro). Mas a sua estratégia permaneceu inalterada — impedir as massas de tomarem em mãos a solução do confronto (era isso que visava com o dramático "não à guerra civil") e usar as manifestações como pressão sobre o CR e o PR para conseguir a "reunificação do MFA". A rua ao serviço das instituições.
Nesses dias, a corrente de esquerda dizia muitas coisas acertadas e tomava iniciativas não menos acertadas. Desagregar a hierarquia do Exército, constituir os SUV ("Soldados unidos vencerão") e trazê-los à rua, manter a mobilização e vigilância das massas através de sucessivas manifestações, reunir armas, assaltar a embaixada de Espanha, manter a funcionar a Rádio Renascença, cercar o governo em S. Bento, denunciar o CR como "Conselho da contra-revolução" — tudo isto era indiscutivelmente correcto — e é preciso reafirmá-lo hoje — porque servia a acumulação de forças revolucionárias pelo proletariado. O problema com esta agitação não era ela ser "excessiva" ou "provocatória", como acusava o PCP na esteira do campo da ordem. Era precisamente o oposto — ela era insuficiente.
Para a iniciativa revolucionária das massas se tornar avassaladora, seria preciso descolar a base proletária do PCP do seu aparelho dirigente. A táctica da extrema esquerda era incapaz disso porque não se apercebia da iminência de uma ruptura interna no PCP.
Na FUR, entrelaçada com o grupo do COPCON, prevalecia uma imagem do PCP como "o partido potencialmente revolucionário", pelo facto de agrupar o grosso do movimento operário. Esperava-se que a pressão de esquerda acabasse por levar as bases a exigir da cúpula uma viragem política. Não se compreendia que um reagrupamento da classe operária em posições decididamente revolucionárias passava pela desagregação do PCP.
O outro ramo da esquerda (a corrente "marxista-leninista") fazia grande alarde do seu corte "definitivo" com o revisionismo mas era igualmente incapaz de lhe arrancar a direcção do movimento. A sua denúncia da "sede de poder dos cunhalistas, ao serviço do social-imperialismo russo" confundia-se com a crítica social-democrata. Os seus ataques indiscriminados aos militantes do PCP como "caciques" favoreciam a coesão em vez da desagregação.
Seria preciso, com propostas de acção operária comum, obrigar Cunhal a revelar o seu reformismo diante da classe; mostrar aos operários que a estabilização unitária por que Cunhal lutava era inviável e só dava trunfos à reacção; criticar o PCP, não como "social-fascista", mas como o partido reformista por excelência, que confiscava as aspirações revolucionárias dos operários e as fazia reverter, sob a bandeira do comunismo, em benefício da democracia pequeno-burguesa.
A extrema esquerda não sabia explorar o conflito latente entre proletariado e pequena burguesia nas fileiras do PCP porque receava encarar a grande batalha entre proletariado e pequena burguesia que estava em curso na "esquerda" e no país. Não via que o suporte social para as maquinações dos Nove, os atentados do ELP e as provocações intoleráveis do VI Governo era dado pela adesão massiva de uma pequena burguesia exasperada que acorria aos comícios e manifestações do PS, PPD e CDS, reclamando a restauração da ordem.
De etapa em etapa, a luta chegara ao ponto de clarificação — dum lado, o proletariado, as grandes massas assalariadas, os camponeses pobres, que precisavam de expropriar a burguesia e, para isso, desmantelar o Estado; do outro lado, a burguesia, atirando a pequena burguesia para a frente, em defesa da propriedade, da ordem e da integridade do Exército; no meio, a servir de tampão, travando lutas de retardamento, a "caldeirada" operária/pequeno-burguesa do PCP, dos "gonçalvistas", do MDP, etc.
A extrema esquerda recuava diante da agudeza desta luta de classes. A UDP navegava entre duas águas. A partir de Outubro, retomou do PCP a palavra de ordem "não à guerra civil", alegando que o essencial era ganhar tempo para recuperar o atraso da esquerda. Ora, no ponto a que chegara a luta de classes, a única forma de ganhar tempo não era com o papão desmobilizador da guerra civil mas impelindo mais audaciosamente a luta dos operários, soldados e assalariados para desorganizar e atrasar o golpe reaccionário em preparação. Com o seu capitulador "não à guerra civil", temperado com impropérios contra o PCP, a UDP só conseguiu desmobilizar os seus próprios aderentes.(12)
Os grupos da FUR, pela sua parte, viviam a vertigem insurreccionista, que era a outra face da mesma incapacidade revolucionária. O MES escondia sob a palavra de ordem de "unificar e armar o poder popular" a esperança de que os quartéis revolucionários conduzissem as comissões populares no derrubamento do VI Governo e na formação de um "governo de unidade revolucionária". O PRP ultrapassou-o com o apelo à insurreição armada, que não era mais do que o apelo ao golpe militar de esquerda.
O melhor revelador das indecisões da extrema esquerda era a sua atitude quanto à questão do partido. Sem o seu partido próprio, a vanguarda operária estava em desvantagem irremediável perante as diversas fracções da burguesia e da pequena burguesia, todas organizadas em partidos fortes. Havia que organizá-lo, em corrida contra o tempo.
Aparentemente, os grupos "m-l" estavam mais avançados do que os outros nesta questão e colocavam a "reconstrução do verdadeiro Partido Comunista" na ordem do dia. Mas que partido era esse que preparavam e que veio a surgir tarde de mais, semanas após o 25 de Novembro? Era um partido inspirado numa deturpação "popular" do marxismo, que iludia as tarefas revolucionárias do proletariado atrás de uma pretensa etapa prévia: a "revolução democrática e popular", conduzida por uma frente popular em embrião, a UDP, sob palavras de ordem de "unidade do povo". Onde era preciso um partido de tipo bolchevique, leninista, enxertava-se um partido centrista de colaboração "revolucionária" de classes. Mesmo que tivesse nascido a tempo, o PCP(R) não teria alterado o curso dos acontecimentos.
A ala semi-anarquista agrupada na FUR proclamava à boca cheia a necessidade da revolução socialista, mas opunha-se à criação do estado-maior político para essa revolução. Encarava o partido como uma ameaça às comissões de base, a que atribuía o valor miraculoso de "parcelas de poder" e de únicos representantes genuínos da vontade das massas. Não via que, na ausência do partido, a vanguarda proletária não conseguia imprimir uma linha política coerente às comissões e que estas, com toda a sua "autonomia", se tornavam joguetes de uma política precisa — a da pequena burguesia radical e do seu inevitável golpe desesperado.
A 20 de Novembro, o governo suspendeu funções, num claro convite ao Exército para assumir todo o poder. A multidão que acorreu a Belém nesse dia a exigir um governo revolucionário e gritando "ninguém arreda pé" recebeu o duche frio de mais um discurso contemporizador de Costa Gomes. O secretariado da cintura industrial de Lisboa foi o primeiro a dar ordem para voltar para casa.
Teria sido a última oportunidade para tomar decisões que bloqueassem o golpe de direita: proclamar a greve geral, constituir uma direcção de luta, colocar as empresas sob o controlo das CTs. Mas o PCP nem queria ouvir falar em desafios desses e a esquerda não tinha forças para o fazer.
E, naturalmente, a batalha que se escamoteou no terreno político de massas foi transferida em caricatura para a conspiração de quartel. Os oficiais do COPCON e da FUR, aliados de ocasião dos "gonçalvistas" e do sector militar do PCP(13), decidiram-se a travar o "combate decisivo" à sua maneira.
"Chegou o momento do avanço decisivo para o socialismo", proclamava a 21 o manifesto dos oficiais do COPCON. "O poder dos trabalhadores tem que ser armado". O objectivo era ganhar o apoio popular para um pronunciamento que impedisse a destituição de Otelo e demitisse os chefes de direita da Força Aérea. A insubordinação dos paraquedistas e o mini-putsch esquerdista foram o triste desenlace a que se reduziu o grande movimento revolucionário de 74/75, o maior da história moderna portuguesa. Os operários que no dia 25 de Novembro se agruparam junto dos quartéis pedindo armas já se sabiam derrotados. Os chefes do PCP mandaram-nos para casa, com "confiança no futuro". O golpe militar da social-democracia, longamente amadurecido, ia inaugurar uma nova era de estabilidade. Cunhal acolheu-se como refém submisso à protecção de Melo Antunes. Tudo acabara em bem: nem fascismo nem revolução.
Notas de rodapé:
(1) Este texto reproduz um artigo publicado em 1985 na revista Política Operária, nº 2. (retornar ao texto)
(2) Boaventura Souza Santos, ibid., pág. 21. (retornar ao texto)
(3) J. J. Teixiera Ribeiro, introdução aos Discursos, conferências, entrevistas de Vasco Gonçalves. Ed. Seara Nova, 1977, pág. 10. (retornar ao texto)
(4) Documentos políticos do CC do PCP, 3º vol. Ed. Avante, 1976, pág. 71 (retornar ao texto)
(5) Álvaro Cunhal, A Revolução portuguesa — o passado e o futuro, Ed. Avante, 1976, pág. 165. (retornar ao texto)
(6) id., pág. 161. (retornar ao texto)
(7) Vasco Gonçalves, obra citada, pág.367. (retornar ao texto)
(8) Álvaro Cunhal, ob. cit., págs. 171-176. (retornar ao texto)
(9) Álvaro Cunhal, ob. cit., págs 168 e 383-384. Ver também Documentos políticos do CC do PCP, 3º vol, págs 302-303. (retornar ao texto)
(10) Melo Antunes, em entrevista ao Nouvel Observateur, 24 de Novembro de 1975. (retornar ao texto)
(11) Entrevista de A. Cunhal ao Diário Popular, 6/11/75 (retornar ao texto)
(12) "A aventura de Cunhal e de todos os reaccionários e fascistas — dizia a UDP em comunicado, uma semana antes do golpe — pode ser impedida pela união de todo o povo, do Norte e do Sul, contra a guerra civil''. (retornar ao texto)
(13) O responsável militar do PCP em 1975, Jaime Serra, viria a sofrer severa crítica por ter dado "luz verde" ao apoio aos pára-quedistas. (retornar ao texto)
Inclusão | 23/11/2018 |