MIA> Biblioteca> Temática > Novidades
No 25 de Abril estava colocada em Beja, como técnica de orientação profissional. O filho dos donos da casa onde eu tinha alugado um quarto bate à porta, aos berros: «Houve uma revolta militar!» Cumpriam-se as minhas expectativas. Já se sentia qualquer coisa no ar que estava para estoirar, além de que já tinha havido o golpe das Caldas.
Nesse dia, comecei a ouvir as notícias e fui trabalhar. No centro, as pessoas estavam já muito exaltadas. Não fizemos nada além de ouvir a rádio. A directora tinha vindo para Lisboa, para a inauguração de umas jornadas de emprego. Portanto, nem sequer tínhamos chefe, o que foi óptimo. As tantas recebo um telefonema de Lisboa — quem substituía a responsável na sua ausência era eu — do director do Centro Nacional de Emprego, que era um tipo de esquerda, a perguntar se estava tudo bem.
«Olhe, se as pessoas quiserem ir para casa, que vão.» Mas as pessoas estavam ali muito bem. Dias depois, fui a Lisboa, já para o 1º de Maio, para a manifestação. Voltei para Beja, mas não estava organizada, apenas tinha alguns contactos com malta do PRP. Passado pouco tempo, apareceram-me uns operários, da construção civil e também da metalomecânica, que pertenciam a uma organização m-1, o CMLP — tinham sabido da minha estada em Beja — e integrei-me nessa organização, num estatuto entre o de militante e o de simpatizante. Não eram muitos — Beja é pouco industrializada — e lembro-me de ser eu a única mulher.
Ocupámos uma casa, que passou a ser a sede — antes tinha havido uma garagem, onde a malta se reunia para pinturas e colagens. Sob o pretexto de eu ser burguesa — facto de que me culpabilizava estavam-me atribuídas as tarefas mais mesquinhas. E hoje, a esta distância, penso que também por ser mulher... Nas reuniões, havia momentos em que me sentia completamente de fora.
A intervenção desses operários fazia-se sobretudo a nível do local de trabalho e do sindicato; embora houvesse contactos, não tinham intervenção a nível do distrito. Nem grande influência de massas, pois era o PCP que dominava.
Quando da realização pelo PCP de um comício comemorativo da Revolução de Outubro — aliás, foi assim que fui lançada pela organização, cuja actividade, no fundo, consistia em aproveitar as realizações de outros para lançar uma perspectiva diferente sobre as questões —, pediram-me para colaborar na distribuição de um comunicado que pretendia dar uma outra visão da Revolução Bolchevique. Ainda entregámos alguns, eu e outro fulano, mas a tarefa acabou por ser boicotada pelos caciques do PC.
Participei em ocupações, algumas de nossa iniciativa, outras espontâneas. Estive ligada a uma comissão de moradores em que se punha o problema da falta de casa. E também houve saneamentos, mas não participei. No centro não houve ninguém saneado, embora muitos andassem assustados. Em 75, houve em Beja um comício da organização a que eu pertencia e, simultaneamente, outro do PCP, o que acabaria por dar origem a confrontos. Foi na sequência desses confrontos que se deu o assalto à nossa sede: o objectivo era destruir tudo o que lá existisse, mobiliário, máquinas... Foi mesmo feita uma fogueira para queimar a madeira.
Recordo-me do julgamento popular, à porta do Tribunal de Beja, do agrário que tinha estado envolvido no caso do Zé Diogo e que tinha sido morto. Alguns dos promotores da iniciativa acabaram por ser presos e vir para Monsanto.
No 25 de Novembro estava em Lisboa e fui com amigos à sede da UDP, no Campo de Santana, saber o que se estava a passar. Quando lá chegámos, havia grande confusão, porque as informaçãoes eram muitas, mas desencontradas. Disseram-nos que a sede podia ser invadida a qualquer momento e que era preciso organizar a defesa. Então, fomos mandados cá para fora, de plantão, colocados a uma certa distância do edifício, com a incumbência de darmos o alerta quando se aproximassem as forças de ocupação. Eu tinha que estar atenta aos sinais que um tipo que estava à minha frente me faria. Só que, para mim, que já nessa altura era bastante míope foram momentos de verdadeira tortura, porque não conseguia detectar se ele fazia sinais ou não. Ao lusco-fusco, voltei à sede e disse: «Ponham lá outra pessoa que eu não sirvo.» Na altura tinha 27 anos, estava muito crua em muitas coisas... Tive imensas ilusões de que era possível transformar isto tudo... Os acontecimentos pareciam suceder-se à medida dos nossos desejos, mas era só fantasia. Pelo meio, houve muito folclore, nada se consolidou verdadeiramente. Mas, embora as nossas conquistas fossem provisórias, foi uma época extremamente rica.
★★★
ZÉ DIOGO
Os trabalhadores de Castro Verde
Do grande agrário Columbano Monteiro
Trabalhavam de manhã até à noite
Horas a mais sem receberem mais dinheiro
Como todos trabalhava na herdade
O operário Zé Diogo do tractor
Trabalhava todo o dia sem parar
Desde manhã até que chegasse o sol-pôr
Mas isto um dia havia de acabar
O operário trabalha é para receber
Oito horas de trabalho e nada mais
Todos unidos souberam vencer
O patrão que só queria ter escravos
Atacou o povo trabalhador
E para dar o exemplo a quem lutasse
Despediu o Zé Diogo do tractor
Refrão
Dum lado quem trabalha a terra
E enche os bolsos ao patrão
Do outro quem se enriquece
De quem da terra arranca o pão!
Sem trabalho e o dinheiro a acabar
Com tanta coisa de lado por fazer
E em casa os filhos p’ra sustentar
O Zé Diogo pouco tinha p'ra perder
Foi por isso o tractorista perguntar
Qual a razão por que o patrão o despedia
O canalha foi-se a ele ao pontapé
Respondeu-lhe que fazia o que bem queria
Ai o Zé Diogo então não hesitou
Perante a sem-vergonha do patrão
À morte os exploradores do trabalho
Duas picadas e ferrou com ele no chão!
Vieram depois os doutores lá da terra
Que de leis dizem tudo entender
Leis burguesas feitas pelos patrões!
Leis que mandaram o Zé Diogo prender!
Refrão
Camarada operário José Diogo
O lugar que ocupaste na prisão
Há-de ficar guardado para ser um dia
P’rós fascistas como era o teu patrão
Mas isso não virá só do teu braço
Não é p’ra já nem é de repente
Só com os operários e os camponeses
Organizados numa única frente
Uma só luta sob uma só bandeira
A Paz o Pão, a Terra Livre e Independente
De Norte a Sul o Povo de Portugal
Fazendo fogo duro sobre o capital
Porque só da nossa luta nascerá
Tudo quanto é justo e quanto é novo
E a justiça só será popular
Quando o Governo e o Poder forem do Povo!
Refrão
Dum lado quem se enriquece
De quem da terra arranca o pão
Do outro quem se organiza
E marcha em frente p’la Revolução!
Inclusão | 23/11/2018 |