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Eu morava perto do Largo do Carmo. No 25 de Abril, um colega do liceu telefona-me: “Eh pá, hoje não temos aulas, parece que há para aí um golpe de estado”. Fui encontrar-me com a minha namorada e resolvemos ir ver o que se passava.
No Carmo estava uma multidão enorme e não conseguimos sequer entrar no largo, porque as ruas de acesso estavam cheias de gente. Descemos em direcção à António Maria Cardoso, onde se tinham refugiado os pides. Quando estávamos quase a entrar no Chiado, começámos a ouvir disparos e vimos uma mole humana a correr em nossa direcção, vinda da António Maria Cardoso. Sem pensar, começámos a recuar, subindo de novo a Rua Nova da Trindade. Lembro-me de ouvir as balas a baterem na calçada e de correr por ali acima. Metemo-nos no primeiro vão de porta que encontrámos. Quando os tiros pararam, continuámos então a subir a rua. De vez em quando, sentia uma comichão na perna mas estava ocupado a ouvir os comentários (“são os pides”, “não são”, “há tiros”, “não há tiros”, etc.) e só passado um bocado, quando percebi que aquela comichão me incomodava, fui ver o que era. E vi a calça esburacada e a perna esfolada: uma bala tinha-me roçado sem me acertar. Durante muito tempo, tive aquelas calças guardadas como um troféu.
Continuei a minha vida normal, mas passei a andar atento. O facto de morar numa zona sempre bastante agitada fez-me participar em vários acontecimentos. Durante dias, ouviam-se disparos volta e meia, gritava-se “vai ali um pide” — presenciei várias perseguições desse tipo — e vi os gnrs a rastejarem no chão, os pides a serem detidos e metidos num chaimite, etc. Eu andava por ali e tomava nota destas coisas todas.
Estudava no Passos Manuel, onde iam parar todos os que saíam da linha: professores democratas castigados, alunos corrécios. etc. Havia de tudo. Depois do 25 de Abril, os alunos juntaram-se todos para fazerem um julgamento a um professor muito odiado, o “porco-científico”. Teve de sair do edifício escoltado pelo vice-reitor até ao portão, entre alas de alunos que o insultavam e lhe atiravam coisas. Deixou de dar aulas e desapareceu dali durante uns anos. Mais tarde voltou para lá.
Entretanto, encontrava-me com amigos no café, falávamos dos acontecimentos, mas era tudo muito tipo discussão académica, retórica para passar o tempo. Não estávamos indiferentes, mas um pouco a leste. Em Julho começa a sair a Voz do Povo, que o meu irmão mais velho me dava a ler. Quando já sentia uma certa identificação com aquilo, o meu irmão perguntou-me se queria ir vender o jornal ao bairro da Serafina. Era Inverno, tínhamos de ir muito cedo, ainda noite, antes de as pessoas saírem para o trabalho. Lá comecei a andar pelas tascas a falar com os homens, que me ofereciam copos de vinho que eu recusava mas, para não dizer sempre que não, fartava-me de beber águas minerais.
A certa altura, eu, o meu irmão mais novo e outros tipos resolvemos ir à sede da Voz do Povo na Graça para conversar e oferecer colaboração. Passei a ir todas as semanas à tipografia ajudar a limpar as gralhas. A seguir aprendi a trabalhar com a impressora.
A partir daí, comecei a entrar nas “catacumbas”. Fui recrutado por um dos grupos maoístas envolvidos no jornal. Fiquei como funcionário do aparelho técnico.
As coisas sucediam-se a um ritmo alucinante. A minha vida era quase só ir a casa dormir e comer, e passar o resto do tempo na tipografia. Na célula íamos tendo conhecimento das coisas que se passavam pelos materiais que imprimíamos, ao ritmo a que os comunicados iam sendo feitos.
O 25 de Novembro, passei-o eu em grande, a trabalhar na tipografia. Era ir para a máquina, dormir quando estava muito cansado — deitava-me na mesa de bater o papel, no meio do barulho das máquinas, — levantar e ir outra vez para a impressora. Foi nessa altura que publicámos a Voz do Povo clandestina. Trabalhávamos numa cave à porta fechada, com cobertores nas janelas para abafar o som. A certa altura, apareceu um dirigente para saber se estávamos todos bem e preparar a retirada de máquinas para um local mais seguro. Ainda não se sabia a evolução do contragolpe e era preciso mantermos a autonomia do aparelho técnico. Lá se montou um plano diabólico de desmontagem e transporte do material.
Entregava-me ao trabalho sem reservas. Ganhava pouco, mal dava para as despesas, andava desaparecido, saía de casa de manhã cedo e voltava às tantas da noite, só me cruzava com as pessoas quando ia a casa almoçar. Tinha chatices com os meus pais, que queriam que eu continuasse a estudar, mas aguentava aquilo bem. Não me custava nada ficar ali dentro para outros poderem ir à manifestação, ao comício, etc. Era a minha contribuição para a causa.
★★★
“Foram presos cerca de 200 militares progressistas que se colocaram ao lado do povo nas justas lutas, enquanto 300 pides e outros fascistas da pior espécie, responsáveis pelos muitos crimes contra o nosso povo, são postos em liberdade como normais cidadãos, com o argumento de não haver qualquer processo contra eles.
É de mais evidente o contraste entre a libertação de assassinos e a prisão de revolucionários, postos em cadeias sem condições mínimas, sujeitos a interrogatórios, enquanto os poucos fascistas ainda presos estão instalados em prisões que são autênticos hotéis, sendo-lhes permitida a saída de fim-de-semana”.
(A luta continua nº 4, órgão do Comité Albertino Bagagem, dias depois do 25 de Novembro)
Inclusão | 23/11/2018 |