O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


O “Che” a falar na praça, pendurado num eléctrico
Paulo Esperança, funcionário público, 39 anos


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A rapaziada a que eu estava ligado na altura, do Grito do Povo, estava a preparar uma série de coisas para o 1º de Maio de 74. Como era o meu primeiro grande 1º de Maio no fascismo, confesso que foi frustrante, entre aspas, ter andado a ajudar a preparar aquela coisa toda e, de um momento para o outro, cai-te a democracia em cima!

Eu era estudante e tinha feito 19 anos no dia anterior. Vindo da festa do meu aniversário, nessa madrugada, apercebi-me, pela rádio, que alguma coisa se passava. Às 7 da manhã, fui para o liceu, que na altura se chamava D. Manuel II. Aí, era a grande confusão. A rapaziada tinha aí uma estrutura organizada, simpatizante do Grito do Povo — os grupos sindicais — e tratou logo de ocupar as salas. “Não há aulas para ninguém”. Nesses oito dias até ao fim do mês de Abril, passaram-se algumas coisas engraçadas. Pendurámos as bandeiras dos movimentos de libertação africanos na fachada do liceu. Mudámos o nome do liceu não sei quantas vezes. Quando de lá saí, chamava-se Liceu Amílcar Cabral, creio. Antes disso, chamou-se também Samora Machel. Entretanto, no fim do mês de Abril, fizemos a primeira grande assembleia lá no ginásio. Houve discussão política, obviamente, e foi decidida a reintegração moral de uma série de professores e alunos expulsos pelo anterior regime.

Entretanto, saio do liceu e vou para o ISCAP mas mantenho os contactos que tinha e quando em Outubro é criada a FEC (m-l), eu faço trabalho de zona, em Cedofeita. No Porto, as freguesias de Cedofeita e Paranhos foram aquelas em que houve maior movimento de ocupação de casas.

Havia muita participação popular em todo o processo, que começava com reuniões na sede e seguia depois, em autênticas manifestações, pela Rua de Cedofeita, pela Rua dos Bragas, pela Rua da Boavista, etc.. Depois, acompanhávamos também um pouco os casos, na perspectiva da legalização. Na altura, havia uns editais da Câmara com as casas devolutas. Aquelas que eram para demolição, tentávamos evitá-las. Numa ocasião, gloriosamente, abalançámo-nos até ao coração do capitalismo e ocupámos um prédio de quatro andares, novinho em folha, na Rua Álvares Cabral. Deu prisão.

Em termos da estudantada, eu estava organizado na UJEC (m-l), a organização da juventude da OCMLP que editava um jornal chamado Viva a Revolução. Na altura havia coisas com piada nas lutas estudantis, nomeadamente a ligação às lutas operárias. No Porto, o sector mais avançado a nível reivindicativo era o STCP [Serviço de Transportes Colectivos do Porto] que tinha como figura principal o “Che”, regressado de França após o 25 de Abril e dirigente da OCMLP. Eles faziam manifestações que desembocavam na Praça da Liberdade e nós tentávamos fazer com que as lutas estudantis ali desembocassem também. Não imaginam as saudades que tenho dos tempos em que o “Che” falava na Praça, pendurado num “eléctrico”, e os operários e a malta estudante gritava o seu ódio ao capitalismo!

Entretanto, a OCMLP criou então um outro tipo de estruturas, os GAF. Eu pertenci ao secretariado do GAF de Cedofeita. Aí, acompanhei a planificação do boicote ao congresso do CDS. A malta, nos GAF, dedicava-se fundamentalmente a acompanhar manifestações fascistas e da Igreja que culminavam de um modo geral com atentados às sedes do PC e da UDP. Mais do PC, até. Recordo-me de ir a Viseu e Coimbra. Não houve assalto nenhum nesses sítios. Em Braga houve, violentíssimo.

Antes disso, houve o 28 de Setembro, claro. A malta com quem eu estava organizado foi para a Ponte da Arrábida. O que nós fazíamos aí era avaliar a olho. Víamos um carro mais imponente e, pronto, este gajo é fascista. O que me recordo bem é da questão da sede do Partido do Progresso ou do Partido Liberal. Já não sei qual delas era, naquela casinha na esquina da Rua da Restauração. Aí sim, sacámos enorme quantidade de propaganda fascista. Livros, montes de coisas da “maioria silenciosa”, uma brochura recente dedicada ao Salazar. Enfim, delapidámos-lhes suficientemente o património para não terem veleidades de continuarem com essa sede.

Aquando da ocupação do RASP, enquanto estávamos lá a distribuir comunicados à população, a gente do PPD passou por nós pela ponte de baixo e foi atacar a sede do Grito do Povo, no antigo edifício do Jornal de Noticias. Saquearam a sede, que estava muito mal defendida, e agrediram alguns companheiros nossos. Depois tentaram assaltar a sede da UDP na Praça D. João I, mas esta foi brilhantemente defendida, pois até às 6 da manhã ninguém lá entrou. Entrou depois a polícia para evacuar o local. Lembro-me também de nos termos mobilizado para defender uma sede da FEC de uma manifestação de apoio ao Pires Veloso junto ao Quartel-General. A manifestação acabou por passar sem nos incomodar. Nós tínhamos feito uns cocktails-molotov à pressa e, no dia seguinte, à noite, fomos experimentá-los para a praia do castelo do Queijo. Nenhum funcionou.

★★★

Pode-se ter calma e paciência quando se vive tantos anos nesta miséria, quando estamos à beira de ficar sem tecto para nos abrigar? Nós achamos que não. Só tem calma quem não tem destes problemas. Nós temos direito à habitação, porque somos trabalhadores, produzimos a riqueza da sociedade, e são os trabalhadores que constroem os prédios. Mas para alcançarmos esse direito temos de lutar muito pois esse direito é-nos negado.

Isto não é democracia, é fascismo porque as leis não nos protegem. Sendo assim, fazemos a nossa lei e impomos o nosso direito”.

(A Voz da Lapa, Porto, Novembro de 1974)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018