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Telefonaram-me a dizer que havia um golpe e lá fui para o jornal a correr. Pensei: “Mais uma macacada de oficiais descontentes”. Quando vi o Spínola metido naquilo, ainda mais me convenci de que era uma daquelas mudanças para ficar tudo na mesma. Onde me apercebi que as coisas tinham mudado de facto foi naquele rio de gente do 1º de Maio. Impressionou-me imenso a multidão.
No dia seguinte, no Diário Popular, que era o meu local de trabalho, vi-me em cima duma mesa a pedir a expulsão do director. Se me tivessem dito uma semana antes que isso iria acontecer, teria achado anedota. Jornalistas e tipógrafos (estes de forma nada espontânea, pois estavam organizados pelo PCP) uniram-se para sanear o director e o administrador, que eram o rosto visível da censura e da repressão internas. Ninguém se lembrou de propor a expulsão do dono do jornal, o banqueiro Quina, e isto mostra a enorme carga de candura e de espontaneidade daquilo tudo.
Nesse primeiro plenário, introduzi, de forma espontânea, guiado pelo instinto, esta ideia de que me honro bastante: “O que é preciso mudar são as estruturas do jornal, não as caras. Não vamos instituir uma nova repressão”. Devido a isso, não se sanearam colegas de trabalho, fossem quais fossem as suas tendências, o que contribuiu para a unidade interna com que o Popular conseguiu resistir à ofensiva da direita e manter a direcção colegial até 79.
Ali mesmo, criámos uma comissão de trabalhadores eleita pelo pessoal todo. E o primeiro conselho de redacção, por anedótico que pareça, também foi eleito ali por todos, inclusive pelos tipógrafos, serventes, mulheres de limpeza e motoristas...
Os meus contactos na altura eram com malta das colónias, estudantes de Moçambique sobretudo. Nesse primeiro período, quem liderava as manifestações radicais era o MRPP, e eu ia a todas. Assim que apareceu a palavra de ordem “Nem mais um só soldado para as colónias”, aderi de imediato. Hoje acredito que teria sido do interesse dos próprios países uma transição mais serena, que talvez lhes tivesse poupado as guerras civis que vieram depois. Mas na altura, depois de treze anos de guerra, era impossível ponderar isso; a vanguarda queria provas dum corte radical com o passado.
Durante meses, não entrei em partido nenhum; custava-me mesmo ver as divisões entre os trabalhadores por causa das opções políticas. Mas na manifestação de 7 de Fevereiro aderi à UDP. Estava a ver passar toda aquela gente e achei piada ao ar das pessoas — jovens e velhos, operários e estudantes, um radicalismo alegre que me agradou. Aderi. E como não disse que era jornalista, nos primeiros dois meses a minha tarefa era ir alcear a Voz do Povo; quando descobriram, passaram-me para outras tarefas.
Foi uma revolução que se viveu com uma enorme alegria. Não se estava naquilo por dever ou só pela razão, era pelo coração, pelos sentidos, de corpo inteiro. Foram meses de alegria colectiva, os únicos que tive na minha vida, depois da greve universitária de 1962. Lutava-se por uma causa, acreditava-se em poder mudar as coisas.
Nunca me esquece do episódio das costureiras. Fui convocado para fazer a notícia de mais uma ocupação. Era um atelier com meia dúzia de mulheres. Quando me viram chegar puseram-se em cima das mesas a gritar “As costureiras unidas jamais serão vencidas”. Aquilo era ridículo mas também comovente; estava ali retratada a ingenuidade e fragilidade do movimento. Essa fragilidade enorme, só mais tarde a pudemos medir. As massas confiaram cegamente no poder militar, e quando veio o 25 de Novembro e a tropa se virou, toda a esperança foi aniquilada.
O 25 de Novembro foi o dia mais triste da minha vida. Fartei-me de chorar. Não por temer ser preso — não acreditava nisso — mas porque soube que a festa tinha acabado e a partir daí ia tudo “entrar nos eixos”. Hoje, vinte anos passados, aqueles meses aparecem-me como uma série de vitórias ilusórias — ganhámos as batalhas mas perdemos a guerra. Agora é tudo muito mais triste ainda, porque ninguém tem uma saída para o buraco a que chegámos. Não falo só do governo mas de todo o sistema, das desigualdades crescentes, da corrupção, do cinismo. Comemorar? Só se for o 25 de Abril do ano 2014. Já cá não estarei.
★★★
“O único veículo da liberdade de expressão dos trabalhadores é a sua imprensa própria, facto novo surgido após o 25 de Abril, que a burguesia não pôde até agora recuperar. É esta imprensa a única, realmente, que consegue fugir ao controlo do poder económico, o qual, com a entrada em vigor deste projecto, surge sancionado, protegido e reforçado.
É em torno, pois, da Imprensa popular e dos trabalhadores que estes terão de mobilizar todos os esforços no sentido do seu reforço e consolidação.”
(Declaração de 43 jornalistas a propósito do projecto de lei de imprensa, Outubro de 1974)
Inclusão | 23/11/2018 |