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No dia 25 de Abril, eram umas sete da manhã, ia eu para a fábrica, ao atravessar a Praça do Comércio vi um cordão de soldados a impedir a passagem. Fiquei surpreendido porque não tinha ouvido notícias nenhumas na rádio, não sabia nada. A primeira ideia que me ocorreu foi que seriam manobras. Perguntei-lhes o que havia, disseram que não sabiam, estavam ali a cumprir ordens. Quando cheguei à fábrica, a empresa metalúrgica J. B. Cardoso, em Santo Amaro, é que soube: era gente de todo o lado a dizer que tinha havido um golpe militar, a queda do fascismo. Foi uma alegria.
Eu tinha voltado de Paris em 71, a salto, e depois de andar um ano escondido, resolvi ir trabalhar, mas sempre de pedra no sapato, não fosse a PIDE deitar-me a mão. Estava ligado ao PCP(M-L) — fui um dos fundadores do partido, na emigração — e a minha acção na fábrica era principalmente fazer propaganda contra a guerra colonial. Não havia problemas porque os operários eram bastante receptivos a essa propaganda.
Durante aqueles meses a seguir ao 25 de Abril, andei nas manifestações todas e fui eleito para delegado sindical e para a comissão de trabalhadores, que chegou a ter 50 membros. A fábrica tinha na altura uns 500 trabalhadores. Conseguimos aumentos de salários, um refeitório com almoços a preço baixo, complemento de reforma, salário completo a partir dos 21 dias de baixa, água quente no balneário, autorização para trabalhar sentados em algumas secções. E, principalmente, ganhámos a liberdade de palavra, de reunião, de fazer ouvir a nossa voz.
Os patrões tornaram-se todos “democratas”, não queriam sarilhos. A única bronca que houve foi quando não aceitaram uma reivindicação salarial. Fizemos uma greve que deu estardalhaço lá na zona: trabalhávamos 45 minutos; tocava a sirene, parava tudo por um quarto de hora; tocava outra vez a sirene, voltava tudo ao trabalho; daí a 45 minutos tocava a sirene, parava tudo outra vez... Bastou um dia e meio desta música para os patrões cederem.
Ao fim de um ano de mandato, não aceitei recandidatar-me para a CT e CS. Foi assim: veio um papel para as quotas do sindicato passarem a ser descontadas pela entidade patronal. Não concordei, disse que isso ia contra a independência do sindicato perante o patronato. A princípio, ainda houve uns oito que me acompanharam nesta posição; uma semana depois já estava sozinho, mas pus os pés à parede, não aceitei. Nunca mais me contactaram, fiquei fora do sindicato, passaram a isolar-me junto dos companheiros de trabalho, chegaram a rotular-me de “fascista”.
Na origem disto já havia divergências anteriores. Quando foi do “dia de trabalho para a Nação”, disse que não admitia descontos obrigatórios, cada um devia decidir se queria ou não oferecer o dinheiro e que eu, pela minha parte, não estava disposto a dar dinheiro nenhum, porque não havia socialismo nenhum, nem tinha confiança no que iam fazer com esse dinheiro. Tiveram que dar-me razão e o resultado foi que lá na empresa só conseguiram cinco contos.
Fiquei marcado e a partir daí foi sempre a pior. Eu não aceitava o domínio dos elementos afectos ao PC, que levavam tudo para o reformismo. A unicidade sindical, à partida, parecia positiva, mas a classe operária não tinha nenhuma independência, ficava envolvida nos sectores da aristocracia, parecia-me tudo aquilo uma grande caldeirada de classes. Devido a essas posições, passei a ser bastante assediado por operários afectos ao PS mas recusei liminarmente: eram ainda mais reformistas.
Aconteceu, portanto, que quando chegou o 25 de Novembro, eu estava bastante isolado. Tinha abandonado o CMLP quando se decidiu a fusão com os outros grupos, por achar tudo aquilo muito confuso; mantinha contactos com alguns rapazes de outras empresas, como a ENI, que defendiam a necessidade dum sindicalismo independente, mas daí também não saiu nada.
★★★
“Estavam catorze operários de vigilância à obra quando foram surpreendidos por um bando de cerca de cem policias que, chicoteando e insultando os nossos camaradas, os enfiaram dentro de carrinhas sem sequer dar tempo a que se vestissem. Alguns descalços, outros sem roupa, foram espancados mais uma vez dentro dos carros por estes assassinos da PSP. Os fascistas, levando-nos para a prisão enquanto nos batiam, diziam: “Então vocês julgam que a polícia morreu? Mas a polícia está pior do que antes do 25 de Abril!”, “O 25 de Abril fez-vos mal, agora somos nós que mandamos!”
Dentro da esquadra destes bandidos, os nossos camaradas foram enfiados, descalços e sem roupa, às 7 horas da manhã em celas húmidas e terraços de cimento, sendo interrogados: “Então quem são os cabecilhas?”, “Diz-me lá a que partido é que pertences? Quem é que está por trás disto?” “Quem é que leva lá os jornais Voz do Povo, que nós depois tratamos deles?”
(Jornal da greve dos operários da Soares da Costa, 11 de Outubro de 1974)
Inclusão | 23/11/2018 |