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Seis dias depois dava-se o 25 de Novembro. Penso que é bastante esclarecedor ler esta entrevista para se aquilatar dos meus intentos não conspirativos e para se ver bem como a esquerda militar não se preparava para nenhum golpe de sua autoria e que mais uma vez não contou com a manhosa e réptil direita.
«ACTUALIDADES» — Como é que se podem explicar as divisões actualmente existentes no seio das Forças Armadas?
DURAN CLEMENTE — Ao avanço das conquistas dos trabalhadores logo a direita instrumentaliza a ingenuidade ou falta de consciência política dos oficiais. Sobretudo dos oficiais do MFA.
Como as Assembleias do MFA, que nós utilizávamos como garantia, como reserva para correcção de erros, deixaram de existir as decisões do Conselho da Revolução são muito mais vulneráveis do que na altura em que elas eram prioritariamente discutidas na Assembleia.
Com a história do Grupo dos Nove terminaram as Assembleias do MFA e as decisões passaram a ser exclusivamente tomadas pelas cúpulas sem passarem pelas bases...
«ACT.» — Considera, então, que a Assembleia do MFA representava as bases?
D. C. — Quando?
«ACT.» — Por exemplo em Tancos.
D. C. — Em Tancos, não. Antes de Tancos... de certo modo. E porquê de certo modo? Porque o MFA era uma vanguarda das Forças Armadas. Veja por exemplo o caso da Marinha. Não foi permitido que o MFA da Marinha se diluísse na Marinha. Devíamos ter impedido que o MFA se tivesse diluído nas Forças Armadas. Mas diluiu-se. Isso porque era difícil fazer-se um saneamento. Difícil e até injusto. Havia muito militar indeciso e hesitante que não seria justo sanear unicamente por esses motivos. Contudo haveria que preservar a vanguarda e não a deixar diluir nas Forças Armadas.
Claro que isto não acontece por acaso. São as forças de direita, as forças contra-revolucionárias que dando-se conta do espírito revolucionário do MFA se esforçam por o diluir nas Forças Armadas. E começam as eleições. E à medida que começam as eleições e começa a haver um certo «basismo» o MFA, como vanguarda, perde força e começam a ser postos de lado indivíduos que estiveram desde princípio, que muito antes de 25 de Abril conspiraram.
É claro que se tivesse havido uma revolução cultural nós poderíamos ter ido para o eleitoralismo puro. Nessa altura poderíamos ir. Mas isso demora sempre anos. Não é depois de 48 anos de obscurantismo que se pode passar a eleições sem se correr o risco de se estar a instrumentalizar a ignorância e a inconsciência política.
Portanto quando a Assembleia do MFA era constituída por elementos com base numa escolha revolucionária ela tinha força. E força revolucionária.
Depois, com a entrada dos elementos «eleitos»...
«ACT.» — Compreendo. Contudo foi, parece-me, o documento do «Grupo dos Nove» que veio apressar a actuação das forças de direita, não?
D. C. — Para mim o documento do «Grupo dos Nove», para além de enfermar das questões de fundo, mas discutíveis no plano teórico, enferma de uma coisa grave do ponto de vista democrático: não é discutido.
É marginalizada uma corrente. Não digo que seja a corrente progressista porque não me cabe fazer um juízo de valor, mas é marginalizada uma corrente na discussão do documento.
Ele entra nos quartéis por determinada via, é sujeito à assinatura sobre pressões psicológicas de vária ordem, tais como soldados que assinam porque querem sair e assinam em troca do «passaporte» (isso aconteceu em várias unidades) outros que assinam com receio de serem considerados «radicais» mas sem receberem resposta às questões apresentadas aos comandantes, etc Ou seja, passámos novamente ao tipo de repressão psicológica e o «Documento dos Nove» tem consigo um tipo de repressão psicológica como documento referendado que é.
«ACT.» — O «Grupo dos Nove» apressa o avanço das forças de direita. E se para a grande maioria do Povo não é estranho que, por exemplo, Charais, Pezarat Correia e Sousa Castro assinem o Documento já não é muito fácil compreender a tomada de posição de Melo Antunes. Isso porque um elemento em que muitos confiavam lidera um grupo que abre as portas às forças reaccionárias. Não considera que foi isso que o «Documento dos Nove» possibilitou?
D. C. — Penso que sim. Sabe porquê? As pessoas pouco consciencializadas politicamente, e com muitas reservas mentais, são manejadas pela direcção internacional capitalista. Não tenho dúvidas nenhumas. Ainda num dia destes, num telefonema me garantiram: «O Vasco Lourenço não quer ir para Governador Militar de Lisboa.» Mas não. Se alguém lhe disser: «Vai, que é para servir o processo» ele vai. Mesmo contrariado.
Isso só vem demonstrar que certo tipo de militares com determinadas reservas, certos tipos de alienação, certa maneira de ser herdada do antigo regime, são facilmente manipulados.
E quando arrogantemente garantem que «não senhor, nós temos perfeita consciência daquilo que as forças políticas pretendem» é uma forma pouco humilde, do ponto de vista revolucionário, que os desvia das questões de fundo.
«ACT.» — Acha que é com base nessa «instrumentalização» que se pretende o afastamento do General Otelo.
D. C. — Ah, sim! Acho que sim. Embora eu tenha uma opinião muito pessoal acerca disso. Eu acho que a cada conquista das classes trabalhadoras responde a direita com uma manobra de diversão que afasta as atenções das vitórias conseguidas para outros aspectos menos importantes.
Reparem que o afastamento do General Otelo quer do COPCON ou mesmo só do Governo Militar de Lisboa faz com que os jornais só falem um único dia da grande manifestação em Lisboa. No dia seguinte era o General Otelo que surgia como grande notícia.
E porquê o General Otelo?
Porque eles sabem duma certa inconsciência ideológica do General Otelo, e porque se ressentiram das suas últimas tomadas de posição em Beja e na mensagem que enviou para o Terreiro do Paço, havia que irem precisamente ao General Otelo.
Com isso tentaram: no máximo afastar o General Otelo e, no mínimo fazer passar para plano secundário a grande vitória que foi a manifestação de domingo.
São manobras de distracção.
A manifestação foi domingo. Na segunda-feira os jornais trataram dela mas, nos dias seguintes, tiveram que se debruçar sobre o caso do General Otelo e sobre o golpe.
«ACT.» — Continuemos com o General. Uma das hipóteses que lhe puseram foi «tomar o poder». Concretamente o que é que entendiam com a tomada do poder pelo General Otelo?
D. C. — Pretendiam uma precipitação e causar ainda mais divisionismo. O Poder não se toma por decreto. Toma-se depois de uma organização. Isso foi uma rasteira. Uma provocação. A esquerda não se prepara para tomar o Poder através de um homem que tem força. A esquerda organiza-se para tomar o Poder. E é isso que vai fazer.
A tomada do poder está a acontecer.
«ACT.» — E não há o perigo da demora que essa organização exige permita a possibilidade de um golpe de direita anterior ao da esquerda?
D. C. — A organização leva-nos, também, à defesa da Revolução.
A verdade é que a direita joga, também, com o dizer que tem muita força. Que o fascismo tem muita força, que o ELP tem muita força, que o MDLP ou lá como é que chama isso tem muita força, etc... E que a guerra civil é uma tragédia...
São manobras de distracção. É a técnica das grandes catástrofes.
O Sr. Sá Carneiro, por exemplo, revela, com certo descaramento, a «força» do PPD, do CDS e da direita.
Isto é uma manobra de pressão e de «impressão». Nós também estamos em crer que isto não corresponde à verdade.
Ele diz muitas vezes que há-de fazer avançar o PPD sobre Lisboa. Talvez não fosse má ideia. Nós opúnhamos os metalúrgicos, os homens da construção civil e todos os operários.
Talvez acabassem de vez com esta chantagem psicológica.
«ACT.» — O «golpe» que os camaradas do «Diário de Notícias» e do «Século» anunciaram como possível para o dia 19 tinha algum fundamento.
D. C. — Tinha, tinha. Aí posso-lhe revelar algumas coisas Isso está na sequência das «manobras», do silenciamento da Rádio Renascença que era uma emissora que chamava a atenção para estas coisas, etc...
As «manobras» tinham um fim político muito claro. Era muito estranho aquele «plano» de isolar o Alentejo e Lisboa.
Daí a ideia de que na altura do exercício se passaria à prática e se procederia a um pronunciamento. A técnica do pronunciamento é muito usada na América Latina e é muito usada quando não se pode contar com as bases, com os soldados.
Era o que Spínola queria fazer em 11 de Março. Tomava o RALIS e, depois, os comandantes das Regiões Militares pronunciavam-se. Um pelo menos pronunciava-se. Era o de Tomar que até fugiu com ele. E depois teria força para negociar com o Presidente da República.
Com as «manobras» aconteceria isso. Falhou porque foi detectado a tempo mas o brigadeiro Charais disse publicamente a uma pessoa da máxima confiança que havia um plano que estaria pronto no dia 8 e depois era só carregar no botão.
Entre várias medidas a tomar uma era a de cortar o acesso dos bens de primeira necessidade a Lisboa. Como o leite. Bastava sublevar a zona de abastecimento de leite através de uma greve reaccionária. E era fácil. A zona é pequena. Bombarral, Cadaval e pouco mais.
«ACT.» — E qual é a posição do major Melo Antunes nesse golpe? Ele desmente a sua intervenção...
D. C. — Um golpe não se confirma, faz-se. Assim como não se desmente. É muito estranho que órgãos como o EMGFA desmintam um golpe. À excepção de estarem metidos nele. Eu começo a duvidar dos órgãos que desmentem os golpes.
Têm autoridade para desmentir um golpe?
Ou não têm e o desmentido é inócuo ou têm autoridade e estão metidos nele.
«ACT.» — Se a Assembleia do MFA funcionasse revolucionariamente parece-me que homens como Pezarat Correia, Sousa e Castro, Charais, Pires Veloso e outros teriam que abandonar os postos-chaves que ocupam. Não? Não são eles elementos que podem provocar um golpe de direita?
D. C. — Pois são. Eles são representantes da corrente que tomou o MFA ambíguo e pouco determinado nas suas actuações. E esta pouca determinação tem reflexos internacionais. Portugal não consegue fazer acordos comerciais com os Países Socialistas porque eles verificaram que havia uma ambiguidade no poder político-militar português.
O MFA, que eu considero morto, quis sempre estar bem com Deus e o Diabo. Era o Movimento das «terceiras vias». O das «vias originais». Quanto a mimm só há duas vias a dos explorados e a dos exploradores.
«ACT.» — Essa ambiguidade criou dificuldades aos acordos com os países do terceiro mundo ou aí houve outras razões?
D. C. — Parece-me que as relações com os países do terceiro mundo, que são quase todas socialistas, foram adulteradas propositadamente para se poderem, depois, desculpar de uma nova actuação em Portugal.
Procura-se explicar que devido a impossibilidade de negociar com os países socialistas há a necessidade de recorrer às sociais-democracias. E nós sabemos o que isso significa.
«ACT.» — Mas isso leva-nos mais longe. À necessidade do derrube do VI Governo no caso de se pretender atingir o socialismo no País. Confere?
D. C. — A continuação do VI Governo tem um aspecto pedagógico muito importante é que as pessoas indecisas vejam, na realidade, como é que funcionam as sociais-democracias. Repressão, medidas antidemocráticas, oposição às lutas dos trabalhadores, etc.
«ACT.» — E considera que o VI Governo é social-democrata?
D. C. — Considero que este Governo é pró- -social-democrata. A grande maioria dos seus componentes são social-democratas embora alguns se digam socialistas.
«ACT.» — E como o MFA repetiu várias vezes que a social-democracia era inviável no nosso País...
D C. — E foi mais longe. No Plano de Acção Política (PAP) disse-o claramente. Aliás há discursos do Almirante Pinheiro de Azevedo e do General Costa Gomes que acabam com: «por uma sociedade sem classes». Assim até vamos mais longe que o socialismo.
«ACT.» — Daí as horas contados do VI Governo?
D. C. — Daí as horas contadas do VI Governo. Aqui é uma questão de tempo. O tempo joga contra nós e a favor. A favor porque nos podemos organizai4 e analisar a actuação do actual Governo. Contra nós porque o capitalismo não está parado. Não vai dar o Poder de bandeja. Eles armam-se e armam-se psicologicamente.
Daí o assalto à Informação.
É por isso que eles não podem com o «Diário de Notícias», com o «Diário de Lisboa», com o «Século», com o «Actualidades», com todos os órgãos de informação progressistas.
«ACT.» — Continuemos numa análise futurista. Queda do VI Governo e substituição por quem? Não peço que seja profeta mas, quanto a si, como base numa linha política que considere correcta, quem deveria tomar o Poder? Um Governo Popular?
D. C. — Um governo revolucionário que não permitisse boicotes às medidas revolucionárias que tomasse. Que fizesse um saneamento profundo no aparelho de Estado e seguisse o documento-guia Povo-MFA.
Que Governo?
Talvez ainda não seja possível ter um Governo totalmente revolucionário mas um Governo com força, com homens de esquerda...
«ACT.» — Mais uma acha para a fogueira. Um outro V Governo?
D. C. — Talvez. Talvez outro V Governo. Embora houvesse pessoas que eu pessoalmente contestasse a fazerem parte do...
«ACT.» — Bem, não falo em pessoas. Digo linha de actuação.
D. C. — Linha de actuação, sim. Se possível mais revolucionária. Mas já era muito bom que tivesse o espírito progressista e revolucionário do V.
«ACT.» — Mas vejamos. Num domingo o PS, com o PPD, CDS, AOC, PCP(m-l) promoveram uma manifestação de apoio ao VI Governo e quase enchem o Terreiro do Paço. No domingo seguinte os trabalhadores promovem uma manifestação a fim de contestarem o VI Governo e enchem o Terreiro do Paço. Numa análise apressada, mas que as serve, as força de direita falam num equilíbrio de forças. Pessoalmente entendo que as forças trabalhadoras não se podem comparar com as forças parasitárias. Contudo acho que a diferença de ideias tão profunda entre dois grupos numerosos levará inevitavelmente ao confronto armado?
D. C. — Não. Não aceito isso. Isso são análises que, como disse, servem as forças de direita. Análises eleitoralistas. Temos é que distinguir a qualidade das pessoas que estão na manifestação.
E isso vê-se, até, pelas palavras de ordem. Numa manifestação os exploradores noutra os explorados.
A primeira manifestação engloba ainda um imenso número de pessoas com falta de análise política manobradas pelas direcções.
Eu muitas vezes pergunto-me: «Onde estão as pessoas que leram o programa do Partido Socialista?» O programa do Partido Socialista é um programa progressista. As pessoas não o leram.
«ACT.» — E a direcção não o seguiu.
D. C. — E a direcção não o seguiu, disse muito bem. Muitas vezes criticam as minhas posições porque as consideram partidárias e eu pergunto-Ihes: «Onde é que está no programa do Partido Socialista algo que recrimine a minha actuação?» e eles não respondem. Uns porque não leram o programa outros porque sabem que eu tenho razão.
A direcção do Partido Socialista terá que responder por isto.
O Sr. Mário Soares é, efectivamente, um traidor da Revolução Portuguesa.
«ACT.» — Já nem fala de Sá Carneiro?
D. C. — Do Sá Carneiro já nem falo.
«ACT.» — Então e o CDS? Eu lembro-me que a Assembleia do MFA lutou pela ida do CDS às eleições. Isso numa altura em que a Assembleia do MFA ainda se poderia considerar revolucionária. Foi muito antes de Tomar. Ora se fala assim de Soares e Carneiro, do Freitas do Amaral...
D. C. — Tem toda a razão. A ala mais progressista da Assembleia repudiou sempre essa conciliação. Mas como o MFA foi sempre um Movimento ambíguo
«ACT.» — Vejamos as soluções que aponta. Seguir o documento-guia aliança Povo-MFA. Mas, segundo as suas palavras o MFA, está morto.
D. C. — Mas as Forças Armadas não.
«ACT.» — E delas teria de nascer, se bem compreendi, um MFA revolucionário e vanguardista?
D. C. — O MFA era um Movimento de oficiais. Faz-me lembrar coisas em que eu não arrisco mais. Não me digam que dele faziam parte sargentos e praças porque não faziam. Teremos que lutar com agrupamentos de soldados consciencializados. Também não quero esquerdismos...
«ACT.» — Os SUV's?
D. C. — Provavelmente os SUV's, mas os SUV's na acepção de «Soldados Unidos Vencerão» sem serem uma organização de classes. Uma organização aglutinadora dos estratos diversos das Forças Armadas: soldados, sargentos e praças.
Eu submeto-me à direcção dos soldados desde que eles me deixem colaborar também a mim.
«ACT.» — E se submeterem à orientação dos trabalhadores?
D. C. — Quando falo em soldados é enquanto representam a classe trabalhadora fardada.
Essa a grande diferença que existe entre nós. O chamado grupo «gonçalvista» estava pelas estruturas criadas pelos trabalhadores e na disposição de aderir a elas. A outra facção não. A facção de Melo Antunes propunha dar todo o poder à pequena e média-burguesia e os trabalhadores teriam que aderir. Isso foi dito várias vezes.
«ACT.» — Apesar de tudo o VI Governo, constituído na sua grande maioria pelo «Grupo dos Nove» a quem acusa de responsáveis pela crise militar, pelo menos em larga medida, e pelos partidos de Soares e Carneiro, a quem apelida de traidores da Revolução Portuguesa, continua...
D. C. — Pois continua, continua. Mas tem os dias contados.
19 de Novembro de 1975
Inclusão | 24/04/2019 |