MIA> Biblioteca> Temática > Novidades
Baixe o arquivo em pdf |
AOS OPERÁRIOS E CAMPONESES, SOLDADOS E MARINHEIROS;
A TODOS OS QUE ESTÃO COM O VERDADEIRO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO PORTUGUÊS.
Perante o descontrole e precipitação com que as autoridades deste País analisaram os acontecimentos de 25 de Novembro não considero, pelo carácter irreversível de afirmações e posições políticas já assumidas por altos responsáveis, que estejam restabelecidas condições mínimas que garantam, aos implicados ou supostamente implicados no (precipitadamente designado) golpe, um julgamento livre, responsável e sereno, pelos seus actos.
Numa «revolução socialista», consequente, só o ponto de vista da classe trabalhadora conta.
Os militares presos ou exilados não vão ser julgados sob o ponto de vista da classe trabalhadora.
Também esta contradição será revelada pela História.
Não é para que conste numas averiguações condenadas a não apurarem a verdade que interessa à revolução dos trabalhadores. Não é para que conste em averiguações condenadas a ser feitas para apurar a verdade que quer a burguesia, ou seus lacaios, para dormir com a consciência tranquila enquanto um punhado de militares e civis (presos, procurados ou exonerados) sofre as vicissitudes que um ambíguo processo revolucionário lhe impôs. Não é para que conste nessas averiguações é para os camaradas revolucionários que lavro os meus depoimentos e que julgo contribuirão para o aclarar da verdade do 25 de Novembro de 1975.
Para os revolucionários não fujo à responsabilidade dos meus actos, nem fujo às consequentes autocríticas. E nessa perspectiva a minha recusa em entregar-me aos actuais responsáveis militares. Essa recusa também passa pelo conhecimento que tenho destes e da sua própria recusa em autocriticarem-se dos seus erros e das suas precipitações quer no campo político quer no campo militar.
Dia 25. Poucos minutos depois do almoço, no meu quartel — Escola Prática de Administração Militar — sou informado pelo telefone que os pára-quedistas ainda não tinham feito nenhum comunicado a explicar o porquê da sua acção militar desencadeada na madrugada. Mais fui informado que o Presidente da República em comunicado feito ao fim da manhã repudiava a acção dos pára-quedistas e ameaçava usar todas as forças ao seu dispor para persuadi-los a abandonar as «bases» ocupadas.
Tinha acabado de receber esta informação quando recebo, também pelo telefone, o pedido seguinte: conseguir a todo o custo que dois pára-quedistas que iriam ter comigo lessem na Televisão um comunicado explicativo da sua operação.
Dirigi-me aos estúdios da RTP cerca das 15.00 h. Desde manhã que um destacamento militar da E. P. A. M. fazia segurança àquelas instalações.
Pouco antes das 16.00 h o major Pedroso Marques, presidente da RTP, chamou-me ao gabinete dos Serviços de Informação. Na presença do capitão Canavilhas, tenente Geraldes e tenente Cardeira deu-me a conhecer o teor dum «telex» recebido do Estado-Maior das Forças Armadas, em que este proibia a divulgação de qualquer comunicado que referisse o assunto dos pára-quedistas. Não reagi ao aviso com quaisquer considerações. Já conhecia do antecedente os pontos de vista da maioria dos oficiais da equipa militar dirigente da RTP.
Perto das 16.30 h chegaram os dois pára-quedistas com o comunicado para ler.
Dei ordem a um capitão e a um grupo de militares para deter os quatro oficiais da direcção da RTP no gabinete onde se encontravam ainda.
Aos trabalhadores civis da RTP declarei que necessitava do serviço de todos aqueles que estavam com o Socialismo, com a luta dos explorados e oprimidos. Esclareci que se o Presidente da República tinha direito à Televisão para falar ao País sobre os pára-quedistas também estes tinham o direito de resposta.
Assim uns quantos voluntários logo se apressaram a preparar a parte técnica para pôr no ar o comunicado dos paraquedistas.
Entretanto um dos militares alcança-me para me dizer que o major Pedroso Marques pedia a minha comparência no gabinete onde estava detido. Acedendo ao pedido verifiquei que aquele oficial queria a todo o custo que lhe explicasse o que se passava. Disse-lhe que não tinha tempo para explicações. Já explicara aos trabalhadores. Já sabia qual a sua posição; já ma dera a conhecer uma hora antes quando me chamou. Respondi-lhe, como em Tancos, Vasco Lourenço respondeu a Costa Gomes:
— Não é um acto de indisciplina é um acto político!!!
Pedi-lhes calma e que ficassem ali sossegados por algum tempo. Avisado por um soldado antes de sair, pedi a arma que o capitão Canavilhas trazia escondida à cintura. Retirei-lhe o carregador e devolvi-lhe o resto.
Cinco minutos antes do comunicado dos pára-quedistas ter sido emitido, veio junto de mim um dos trabalhadores da RTP dizer-me que o «carro de exteriores» tinha que sair para Belém para que o Presidente da República proclamasse «estado de emergência, etc., etc.
Saliento, portanto, que o estado de emergência é proclamado tendo em conta só as operações dos pára-quedistas.
Depois de um contacto telefónico para saber o que se passava recebo a indicação de não deixar sair o «carro de exteriores». Acontece que este já tinha saído; entretanto preparava-se para sair um outro com o pessoal técnico de apoio ao primeiro. Impedi que tal acontecesse, mandei recolher o autocarro à garagem e convidei todo o pessoal civil que quisesse a sair das instalações da RTP. Ficaram mais de cem trabalhadores. Eram 16.30 h.
Cerca das 17.00 h sou informado do corte da emissão feito na Lousã. Para Norte o programa dos estúdios do Porto. Para Sul o de Lisboa. Alguém estava a dividir o País em dois!
Perto das 18.00 h recebi um telefonema avisando-me que o Regimento de Comandos se aproximava da Emissora Nacional e da Radiotelevisão Portuguesa e que talvez fosse conveniente mobilizar massas populares para junto das respectivas instalações através dum apelo feito pela própria Televisão.
Rabisquei umas palavras e fiz pessoalmente esse apelo e finalizava-o exortando a que a voz da RTP não fosse uma voz contra os trabalhadores, contra explorados e oprimidos..., não fosse mais um obstáculo a travar o passo à verdadeira revolução socialista...
Cerca das 19.00 h tomei a iniciativa de suspender a detenção aos oficiais da direcção da RTP com a condição de saírem das instalações. Assim aconteceu depois de acalmados os ânimos exaltados do major Pedroso Marques que à viva força continuava a requerer explicações.
Antes do Telejornal li dois comunicados dos Sindicatos dos Metalúrgicos.
Enquanto chegavam notícias de que os Comandos cercavam a antena de Monsanto e apresentavam um ultimato de quinze minutos para que as forças que a guardavam se entregassem. Passaram muito mais de quinze minutos sem que nada de especial acontecesse.
Ás 20.30 h iniciou-se o Telejornal. A meu pedido foi-me dado prévio conhecimento do seu conteúdo. Só retirei do conjunto noticioso o comunicado em que o Presidente da República decreta o estado de emergência.
O que ainda consegui dizer foi uma introdução tentando explicar as contradições do processo revolucionário português reflexo das contradições existentes no interior dum MFA então cada vez mais dividido e moribundo satisfazendo e alegrando assim a direita reaccionária. Processo cheio de ambiguidades mas no qual, sobretudo a grande massa de operários e camponeses não se deixou enrolar, nem anestesiar, pelas confrontações escritas e verbais dos militares. Alguns destes, de facto, nunca em 25 de Abril de 1974 partiram para o SOCIALISMO. São desses que eu falava ao referir o «princípio de Peter»: o limite da sua competência no processo revolucionário socialista português. Neste passo as minhas palavras foram interrompidas. A antena em Monsanto acabara de ficar sob o controle dos Comandos de Jaime Neves.
O que me faltava dizer resumir-se-ia: ao avanço da luta dos trabalhadores opunha-se um VI Governo Provisório defensor dos interesses da burguesia. Este não conseguia governar sem reprimir; sem reprimir os trabalhadores e os militares que estão com eles. Tinha-se decretado o AMI; mas este não conseguiu ser mais do que o Regimento de Comandos da Amadora. O Conselho da Revolução extingue o que não existia: administrativamente desaparece o AMI, na prática continua o Regimento de Comandos. Mas não só isto. Com a nomeação do capitão Vasco Lourenço ressurgem pela voz deste as ameaças de novos saneamentos à esquerda, dos militares aliados à classe trabalhadora, logo que ele assumisse o comando da Região Militar de Lisboa. Prepara-se assim a criação do verdadeiro AMI. Expurgados os militares incómodos, as «novas» unidades de Lisboa serviriam, nos desejos de certo sector civil e militar, para restabelecer a ordem à custa da repressão armada independentemente da vontade de Vasco Lourenço. Isto na sequência da repressão psicológica já desencadeada através do assalto aos meios de informação, escrita e falada, sob o patrocínio do Ministério da Comunicação Social do VI Governo Provisório.
E tudo isto para que teimosamente um VI Governo Provisório anti-popular e anti-operário governasse.
Em vez disso, e sabendo da forte contestação a Vasco Lourenço, o poder político-militar confirma a sua nomeação na noite de 24 para 25.
Nessa mesma noite aguardando no Forte do Alto Duque a decisão do Conselho da Revolução elevado número de oficiais da R. M. L. mais uma vez, representando a vontade das suas próprias unidades, repudiou aquela decisão e decidiu por qualquer manifestação de força que exprimisse o seu descontentamento e servisse de base a novas conversações. Alvitrou-se que na sua luta de contestação contra o general Morais e Silva, as tropas pára-quedistas, solidários com os militares progressistas e revolucionários da R. M. L., queriam mostrar o seu grau de operacionalidade e de disciplina revolucionária em flagrante contraste com o que pensava dessas tropas o seu General-Chefe de Estado-Maior da Força Aérea que por vingança, antidemocrática e anti-revolucionária, as mandou desactivar, desmobilizar, transferir...
Por isso ficou decidido que seriam as tropas pára-quedistas a manifestarem a sua contestação numa vasta operação de neutralização das principais unidades da Força Aérea.
Assente ficou também que as unidades de Lisboa não fariam qualquer operação que servisse de pretexto à direita para a exploração que, se sabia, esta desejava há muito.
Aqui acabaria, mais ou menos, a minha explicação nos ecrans da RTP se não me tivessem tirado a palavra. Também aqui o tempo jogou a favor de quem quis maldosamente ver aquilo que lhe interessava para fins políticos e partidários numa desenfreada e inclassificável especulação.
Exactamente para perturbar o,curso progressista e revolucionário do processo português afastando militares e civis aliados à luta dos trabalhadores.
Assim se entende a desmesurada exploração das sublevações militares de 25 de Novembro: um pretexto para dum só gesto expurgar, prendendo, significativo número de militares que estavam, sem qualquer dúvida, seguindo uma estratégia correcta ou incorreta, ao lado da classe trabalhadora no processo revolucionário português.
Recordo a insubordinação de Melo Antunes, Vítor Crespo, Costa Neves e Canto e Castro desobedecendo ao Presidente da República e à Assembleia do MFA de 25 de Julho!
Recordo a insubordinação conjugada de vários militares em redor das Assembleias de Tancos nos primeiros dias de Setembro. O que viria a ser designado por «golpe de Tancos» não levou ninguém para a cadeia mas logo aí começou a arredar da discussão democrática e revolucionária grande parte dos militares agora presos (ou mandados prender)!
Recordo a insubordinação dos comandantes das unidades do Norte contra o comandante da RMN, brigadeiro Corvacho!
Recordo a insubordinação aos mais elementares princípios da ética militar (e da ética democrática) o assalto e destruição às instalações e material dum órgão militar —a 5.ª Divisão do EMGFA — feita por outro órgão militar: o Regimento de Comandos da Amadora. (A História julgará os papéis dum e doutro no processo português...)!
Recordo a destruição à bomba do emissor na Buraca da Rádio Renascença!
Isto para falar nos actos mais visíveis e ressonantes.
O que se passa em 25 de Novembro não é mais do que outra fase de tentativa de recuperação do processo revolucionário para a direita.
HÁ GOLPE SIM, MAS UM GOLPE DA DIREITA REACCIONÁRIA.
Acusar o adversário político daquilo que se queria que ele tivesse feito serve exactamente para encobrir com todos os meios de que se dispõe (e ao adversário foram retirados) —a força das armas e os meios de comunicação— aquilo que se faz em vez dele.
Desde há muito que a direita tudo fazia para consumar os seus intentos de, pela força, afastar aqueles que já afastara pela via administrativa. Recordemos que nos fins de Setembro já se tentara o que agora aconteceu com a directiva governamental de silenciamento das emissoras a que então militares e trabalhadores se opuseram. Depois veio a noite de 1 de Outubro, foi lançada pelo País inteiro a preparação psicológica para o tal golpe de esquerda. Estive nessa mesma noite reunido com alguns camaradas militares e com responsáveis políticos de vários partidos: MDP/CDE, MES, FSP, LUAR, LCI e PRP. Analisando hora a hora o que se ia passando todos tivemos a sensação de que se de alguma das unidades militares, consideradas progressistas, saísse uma só viatura aí tínhamos os Comandos (que estavam prontos a sair e foram reforçados, nessa noite, em armas) a silenciar, pela força, os órgãos de comunicação social e depois pela manhã teríamos com certeza a declaração de «estado de sítio» e logo a prisão arbitrária dos «implicados» no fantasiado golpe. É que silenciando emissoras e jornais a opinião pública fica ao dispor de quem tem autoridade para os utilizar explorando e especulando o que entender. Os supostamente implicados deixam de ter a liberdade de explicar pelo seu lado o que se passou.
Em 1 de Outubro não chegou a haver os pretextos de 25 de Novembro o que muito deve ter contrariado Jaime Neves que desde sempre quis resolver o problema político pela força. Sugeriu sempre qualquer coisa parecida com um «torneio medieval». O Povo de lado; as unidades militares combateriam para arrumar a questão. É a tese dos «Exércitos» divorciados do «Povo», é a sua tese bem expressa na entrevista que deu há tempos ao «Século Ilustrado».
Por isso Otelo era várias vezes provocado quando o convidavam a tomar o poder. Ainda em recente entrevista que dei ao jornal «Actualidades» denunciei essa provocação. Declarei que a esquerda e os trabalhadores não davam golpes. Precisavam sim de se organizar. Em várias sessões com trabalhadores disse isto e estes sabem bem quem é que hoje lhes mente. É que é mesmo ridículo admitir que a tomada duma RTP ou duma Emissora Nacional ou qualquer outra sublevação do género se destinavam à tomada do Poder. Não seria mais fácil cercar e tomar Belém, ou mesmo antes cercar o Regimento de Comandos?
Quem primeiro matou?
Quem é que saiu para a rua e andou por aí fazendo gáudio das suas Chaimites e espingardas atacando a ferro e fogo? Foi o RALIS, foi a EPAM, foi a PM, foi o RAC, foi a EPSM, etc., etc.?
Quem é que, exactamente na altura em que o comandante da PM, major Campos Andrada, atravessando a parada se preparava para sair e deslocar-se a Belém para falar com o Presidente da República, vê o seu aquartelamento a ser atacado?
Grande golpe instrumentaliza de facto o Regimento de Comandos da Amadora, grande golpe o das individualidades e organizações políticas que assim quiseram pelo inventado argumento e pela força afastar aqueles cuja razão não destruíam na discussão política!
E de todos os que desfilam pela televisão, rádio e jornais quais serão os que de boa-fé interessados no Socialismo se precipitaram na análise dos acontecimentos de 25 de Novembro? O Povo Português saberá distingui-los.
Designar de golpe contra-revolucionário ou de insurreição armada com vista à tomada do Poder aquilo que desapaixonadamente qualquer isento cidadão verifica tratar-se duma insubordinação com objectivos não conjunturais mas sectoriais dentro das Forças Armadas — contestação dos chefes da Força Aérea e do comandante da Região Militar de Lisboa — é servir objectivamente os desígnios da reacção imperialista, é cair na armadilha que, uma vez mais, a CIA preparou. É que de facto «a reacção imperialista persegue e acossa tudo o que existe de progressista e de revolucionário, tenta dividir as fileiras dos trabalhadores e paralisar a vontade de luta dos proletários. Sob esta negra bandeira juntam-se hoje todos os inimigos do progresso social: a oligarquia financeira e a clique militarista, os fascistas e a reacção clerical, os colonialistas e os latifundiários, todos os auxiliares ideológicos e políticos da reacção imperialista».
Li isto há poucos dias.
É perante a ameaça permanente da reacção imperialista aos processos revolucionários tendentes ao Socialismo que temos de situar o que se tem passado, está a passar e vai acontecer em Portugal.
Até aqui a CIA não tem precisado de se esforçar muito para dominar parte dos acontecimentos em Portugal. Tem encontrado, de sobra, instrumentos e veículos para prosseguir e acossar «tudo o que existe de progressista e revolucionário», dividindo «as fileiras dos trabalhadores» e tentando «paralisar a vontade de luta dos proletários».
Após o 25 de Novembro espero que os adversários das ideias que defendo em Portugal, tenham a coragem de reconhecer que ficaram mais fracos, e sós, e que serão os próximos a cair se continuarem a sua fratricida política.
Só a política das classes trabalhadoras — o verdadeiro Socialismo— evitará o regresso ao fascismo.
Só a organização dos trabalhadores, sua confiança e determinação, salvarão Portugal. Maus dias estão para vir; a profunda crise económica —que é também reflexo da crise mundial do capitalismo — não será jamais solucionada vendendo o País ou reprimindo os trabalhadores.
No primeiro caso porque não há sequer poder de compra estrangeiro e no segundo porque os trabalhadores e seus aliados hão-de combater e desfazer o aparelho repressivo que se quiser instaurar
O VI Governo Provisório ver-se-á aflito entre uma coisa e outra.
O VI Governo Provisório vai cair na desgraça atacado pelo capitalismo e pelos trabalhadores.
A luta é de vida ou de morte entre Capital e Trabalho.
Nesta perspectiva o 25 de Novembro não veio resolver nada. Nem para uns nem para outros. Fortalecendo a direita, cega os que historicamente são incapazes de compreender o seu próprio suicídio.
Enfraquecendo desta maneira a esquerda, fica a lição, e o seu estímulo, para os trabalhadores — os verdadeiros revolucionários — se organizarem cada vez mais e não descurarem a vigilância. A LUTA CONTINUA.
Venceremos
(28 de Novembro de 1975)
★★★
Lisboa, 1 de Dezembro de 1975
Exmo Sr.
General Gosta Gomes Presidente da República Portuguesa
1. A minha negativa em respeitar a ordem que recebi para me apresentar na Presidência da República, exactamente pela manhã de 26 de Novembro de 1975 quando já tinha conhecimento da prisão de outros camaradas, transformou-se em firme decisão logo após um mais claro conhecimento da forma indiscriminada e vexatória como militares patriotas e progressistas, com provas dadas da sua coerência revolucionária antes e depois do 25 de Abril de 1974, estavam a ser incriminados, presos e procurados.
2. O teor dos comunicados e notas oficiosas, quer da Presidência da República quer do EMGFA, emitidos logo a seguir aos acontecimentos do 25 de Novembro, reflectindo o pensamento do poder político-militar, não ofereciam, a quem tendo vivido directamente alguns desses acontecimentos e saiba das razões e objectivos que os motivaram, qualquer segurança das suas garantias individuais e do direito à intervenção e assistência de advogados. Logo nos «ecrans» da televisão e nas páginas dos jornais do Norte tive a oportunidade de verificar o elevado grau de distorção da verdade com excessos, especulações e explorações ignóbeis cada vez menos convidativos a alterar a minha decisão e antes pelo contrário cavando profundas preocupações em todos aqueles que lutam pela liberdade do Povo Português e já lutavam antes do 25 de Abril.
3. Não está vigente em Portugal um Estado democrático. Em flagrante oposição ao espírito do programa do MFA, e ao de todos os documentos aprovados ou aceites pela Assembleia do MFA, é arbitrário o juízo de valor atribuído aos actos dos militares e civis presos ou indiciados após o 25 de Novembro. Assim, transfiro o crime de fuga à responsabilidade que me é atribuído para todos aqueles que planearam e executaram a eliminação e neutralização de homens que se opunham e opõem a projectos anti-operários e anti-populares para resolução dos problemas nacionais.
4. Sei quanto tem contribuído para a não resolução das questões de fundo das crises político- -militares a criação e manutenção de situações e estados de equívoco relativamente a pessoas e a organizações progressistas e revolucionárias sejam militares sejam civis. Acrescentado a essas situações, a esse «estado de equívoco», o terror da injustiça e da repressão decorrentes do «estado de sítio» estão criadas as condições para a minha (e doutros) recusa em entregar-me às autoridades. Com pode um militar responsável e livre —que o ser-se livre é um estado de espírito alimentado pela força do ideal porque se combate— sujeitar-se ao enxovalho de prisões e de interrogatórios para justificar crimes que nunca existiram?
Não é por acaso que as forças do capitalismo tudo fazem para atrasar o esclarecimento e adiar, a verdade dos factos enquanto propalam que os militares «fugitivos» já estão na União Soviética, em Cuba, etc.
Não desejando por isso satisfazer tais desígnios coloco à disposição da Comissão de Inquérito para esclarecer a minha actuação em 25 de Novembro o meu advogado constituído...
5. No Estado democrático a autoridade não é imposta e muito menos pelas armas. A autoridade é aceite e impõe-se pela força da inteligência que interpreta os interesses das classes trabalhadoras. Só quando esta autoridade democrática existir é que voluntariamente me apresentarei e a ela unicamente submeto o julgamento das minhas atitudes.
Subscreve-se Manuel A. Duran S. Clemente
(capitão do SAM)
1. Já na clandestinidade encontrei-me no outro dia com um capitão, meu companheiro destas andanças há já mais de dois anos e meio, e disse-lhe:
«—Ainda antes de começar o movimento dos capitães, na Guiné, a condição que exigíamos a todos os militares para ingressarem no nosso grupo de dinamização política, então criado, era a de que todos quisessem em Portugal o socialismo.»
«— Hoje chamam-nos contra-revolucionários!», retorquiu ele.
2. Para melhor compreensão do 25 de Novembro leiam o comunicado das tropas pára-quedistas de Tancos aprovado em plenário que a seguir transcrevo.
Antecedentes
Os acontecimentos de 28 de Setembro, de 11 de Março e da recente destruição da Rádio Renascença em que as forças pára-quedistas foram utilizadas pelos contra-revolucionários vieram consciencializar as Forças Pára-Quedistas para a necessidade imperiosa de não tornarem a deixar-se enganar pela hierarquia e disciplina tradicionais repressivas. Assim desenvolveu-se no interior das Forças Pára-Quedistas uma dinâmica acção de consciencialização política que jamais permitisse a sua utilização contra os objectivos socialistas da Revolução Portuguesa.
Nós Pára-Quedistas estamos com a classe trabalhadora e intransigentes na defesa dos seus interesses. Somos uma força revolucionária ao serviço dos explorados e oprimidos.
Nesta conformidade não podemos aceitar a decisão do CEMFA, General Morais e Silva, em pretender destruir-nos ao despachar a passagem à disponibilidade todas as praças e transferindo os restantes militares e civis. Apoiando a atitude de abandono de 123 oficiais desta unidade desprezando a transferência de serviços e materiais à responsabilidade desses mesmos oficiais. O general Morais e Silva, demonstrou claramente estar do lado dos que defendem a hierarquia conservadora, tradicional e repressiva; hierarquia esta incompatível com a hierarquia consentida e disciplina revolucionária. O abandono desses oficiais e as posteriores tomadas de posição do CEMFA vieram dar ainda maior ânimo a que se instalasse em nós uma forte e consciente disciplina e consequente maior operacionalidade.
Que se passou no 25 de Novembro?
Afirmamos desde já que não se tratou de nenhum golpe militar como estamos a ser acusados.
Não podendo aceitar mais as tomadas de posição do CEMFA, contrárias ao interesse do Povo
Português, decidimos comprovar a nossa operacionalidade e disciplina revolucionária numa vasta operação e neutralização das principais unidades da Força Aérea tendo em vista a contestação directa de um general, militar que se afasta com as suas decisões dos objectivos da revolução democrática e socialista. As ocupações foram executadas com total êxito, tendo nós, inclusivamente recebido a solidariedade da generalidade das praças e de sargentos e oficiais progressistas das bases ocupadas.
Aliás é prova das nossas intenções as explicações dadas a todo o pessoal das unidades logo após a ocupação.
Aproveitamento da operação pelas forças de direita
A meio do dia 25 o CEMGFA, general Costa Gomes, emitindo um comunicado cujo teor não corresponde à divulgação das nossas intenções leva- -nos a confirmar as suspeitas do peso que a direita militar conservadora e tradicional tem no próprio Conselho da Revolução e a sua influência nas decisões superiores.
Para esclarecer o povo português, na tarde do dia 25, decidimos emitir o comunicado explicativo da nossa justa luta. Esse comunicado, direito de resposta, só foi possível ser lido na RTP mediante a solidariedade das unidades progressistas de Lisboa que se colocaram ao nosso lado e deram o seu total apoio à nossa razão, para além das suas posições já assumidas de forte contestação ao VI Governo e à nomeação de Vasco Lourenço para comandante da RML.
É da mais elementar justiça divulgar que estas unidades progressistas de Lisboa se viram de repente atacadas pelo Regimento de Comandos da Amadora — unidade contra-revolucionária e fascista — sem que se justificasse da parte dessas mesmas unidades qualquer operação golpista ou semelhante, como agora descaradamente são acusadas.
Golpe sim é aquilo que o Regimento de Comandos, essa unidade de mercenários, tenta executar, se não como é que se pode compreender que estejam a ser presos ou tenham mandato de captura os oficiais e sargentos progressistas e revolucionários com sobejas provas dadas na sua luta ao lado dos explorados e oprimidos deste país.
Para o lugar destes militares estão a ser nomeados reconhecidos reaccionários.
Nós Pára-Quedistas reafirmamos estar com todas as forças revolucionárias portuguesas não permitindo o golpe fascista que paira sobre o povo português e alertamos todos os militares para que nos acompanhem.
Tancos, 27 de Novembro de 1975.
Aprovado em Plenário Geral de Pára-Quedistas na Base-Escola de Tancos.
3. Também constitui peça importante e esclarecedora da necessidade do 25 de Novembro o célebre «plano dos coronéis»:
BASE I — Controlo do SDCI (Serviço de Detecção e Controlo da Informação);
BASE II — Controlo dos Serviços de Relações Públicas e Dinamização das FA (CODICE — 5.ª Divisão);
BASE III — Formação dum verdadeiro AMI;
BASE IV — Criação dum eficaz corpo de Polícia de Choque;
BASE V — Modificação da política governamental quanto ao MPLA (para pior);
BASE VI — Ocupação militar da rádio e televisão;
BASE VII — Dissolução ou extinção de unidades militares progressistas. Saneamento à esquerda;
BASE VIII — Controlo absoluto do Conselho da Revolução. Afastamento de Fabião e Otelo. Isolamento e neutralização da Armada;
BASE IX — Colocação nos lugares-chave do «grupo dos nove» e de homens da sua confiança;
BASE X — Campanha de desinformação nos órgãos de comunicação social. Resolução dos casos «República» e «Rádio Renascença».
Se nos recordarmos que este plano foi elaborado em meados de Setembro, a seguir ao golpe de Tancos, temos que entre dois golpes (de 4 de Setembro a 25 de Novembro) tudo foi esmeradamente executado.
4. Garanto-vos que sempre me preocupou aquela «boca»(!) do comandante das forças do AMI que destruiu o emissor da Rádio Renascença:
«— Depois do dia onze acaba-se com toda a esquerda militar revolucionária!!!»
Assim o divulgou um camarada pára-quedista. Quinze dias mais tarde esta «boca» torna-se realidade.
5. O Estado-Maior-General das Forças Armadas e outros departamentos militares estavam sempre a sossegar os portugueses desmentindo os previstos golpes da direita.
A propósito do 25 de Novembro volto a pôr a questão:
É muito estranho que órgãos como o EMGFA desmintam um golpe. À excepção de estarem metidos nele!
Por outro lado se na direita havia rumor de golpe da esquerda porque é que o EMGFA nunca se apressou a desmentir?
Dá que pensar, não dá?
6. No dia 25 de Novembro à tarde um familiar duma colega de trabalho da minha mulher telefona-lhe aflita do Porto:
«— Avisa o Manuel Clemente que vai ser preso. Uns quantos militares (designa-os) preparam um golpe para os prender! Eu nem estou de acordo com as ideias dele mas...»
ESCLARECEDOR e elucidativo!
7. O que é que significaria aquela história do plano que estaria pronto no dia 8 de Novembro e depois era só carregar no botão?!
Carregar no botão pode ser qualquer destas atitudes:
Qualquer destas medidas tinha o sabor a provocação.
8. Porque é que se deslocaram para a Base Aérea de Cortegaça no dia 24 de Novembro mais doze helicópteros armados de canhão e seis caças «Fiat»?
9. Porque é que no dia 24 à tarde foram montados dois Postos de Comando, em ligação, um no Palácio de Belém e outro no Batalhão de Comandos na Amadora?
10. Porque é que o levantamento reaccionário na região de Rio Maior na noite de 24 para 25 que conduziu ao corte de todos os acessos rodoviários e ferroviários a Lisboa não suscitou nenhuma medida de emergência?
11. Em telegrama enviado ao Conselho da Revolução uma agência noticiosa da Alemanha Federal ligada à CIA, no dia 20, anuncia eminente golpe comunista em Portugal. Manobra já bem conhecida destinada a cobrir e acelerar o golpe da direita.
12. Portugal não será o Chile da Europa.
Todavia é preciso lutar para que:
13. Fala-se em grandes manobras militares para Janeiro de 1976. Acto final da «reestabilização» política em Portugal a favor dos exploradores?
ESTAS E OUTRAS SÃO NOTAS PARA MEDITAR - (2-12-75)
A certo passo do comunicado do Presidente da República em que declara o estado de sítio lê-se:
«... passa a vigorar o estado de sítio parcial. Como corolário ficam legalmente restringidos os direitos de liberdade de reunião, de manifestação e de expressão. Estas medidas devem ser interpretadas como o desejo de garantir a ordem, a tranquilidade e o direito ao trabalho das classes laboriosas afectadas pela actual situação.»
Perguntamos:
Quantas Comissões de Trabalhadores foram consultadas?!
Quantos sindicatos foram ouvidos?!
Uns e outros, quantos se haverão pronunciado pelo desfavorável ambiente de trabalho criado pela contestação militar a Vasco Lourenço e a Morais e Silva?
Tudo isto causado em 25 de Novembro pelas reivindicações das tropas pára-quedistas, pelas ocupações das bases aéreas, pela atitude de solidariedade na luta por algumas unidades militares?!!
A «hierarquia do medo» (como diz um jornalista amigo) não nos quebra a capacidade de sabermos quais as respostas e de continuarmos a raciocinar.
Será desnecessário interrogarmo-nos sobre que espécie de trabalho refere o comunicado se deduzirmos que a ordem e a tranquilidade apontadas não são as que interessam às classes laboriosas, à sua vontade e à sua liberdade. Os trabalhadores já tiveram oportunidade de se consciencializar que a ordem e a tranquilidade que desejam têm outra ligação com o trabalho que produzem. Qualquer destes factores — ordem (tranquilidade) /trabalho — não é ditado por quem quer que seja e muito menos (qual paternalismo ofensivo e anti-democrático) em seu nome declarado um «estado de sítio» que os trabalhadores não reclamaram para a satisfação dos seus verdadeiros interesses de classe. E depois que ganhavam eles com a impossibilidade de expressão, reunião e manifestação colectiva?
Vejamos passados oito dias a quem aproveitou o «estado de sítio»?
Às classes laboriosas?
NÃO.
À grande parte de militares que estavam com as classes laboriosas?
TAMBÉM NÃO. Esses estão quase todos presos!
Mas o comunicado vai mais longe. Considera a ordem, a tranquilidade e bem assim o direito ao trabalho das classes laboriosas afectadas por uma «actual situação». Reportando-se portanto ao dia 25 de Novembro o comunicado sobrevaloriza a situação resultante da «rebelião armada» e subestima a razão porque essa situação irrompe. Como não é caracterizada essa «actual situação» ela só poderá entender-se como a decorrente dos acontecimentos militares que substancializam o 25 de Novembro na óptica do poder político-militar, isto é, a sublevação dos pára-quedistas, a prevenção de algumas unidades de Lisboa, as ocupações da RTP e da EN.
Mas nós sabemos que outro «estado de sítio» era urgente declarar há muito. Que outra ordem — a ordem democrática — se impunha construir. Assim como outra disciplina — a verdadeiramente revolucionária — e outra autoridade — a autoridade aceite—se impunham promover. E, como corolário, sabemos que a liberdade de reunião, de manifestação e de expressão se impunha retirar, isso sim, aos inimigos do processo revolucionário, aos verdadeiros contra-revolucionários que ardilosamente, auxiliados pelo capitalismo nacional e internacional, tudo faziam e continuam fazendo para enfraquecer e travar a Revolução Socialista. Eles é que mexeram os cordelinhos do 25 de Novembro e são a razão forte de toda a desordem e intranquilidade existentes.
A crise entre sectores do MFA, colocando-se uns contra os outros, deve-se a eles.
A crise entre as forças da democracia deve-se a eles.
Quem tenta desviar a revolução portuguesa da perspectiva socialista para a perspectiva social-democrata?
Quem opõe ao movimento operário e popular uma coligação de forças conservadoras e reaccionárias?
Quem tenta o desvio num consequente processo de descolonização?
Quem faz proliferar os saneamentos à esquerda no meio militar e no meio civil?
Quem desde há muito se prepara para destruir os sectores da esquerda?
Quem desde sempre se esforça desesperadamente por anular as conquistas revolucionárias?
Quem provoca os desvios da plataforma programática do VI Governo?
Quem incentiva a viragem à direita da política governamental provocando forte resistência dos trabalhadores?
Eles é que são os inimigos da Revolução Socialista Portuguesa; é que têm de ser apanhados, presos e interrogados. Não somos nós.
Nós e os restantes portugueses — militares e civis — que queremos a democracia, que queremos o socialismo temos é que nos unir em vez de nos degladiarmos. Em vez de nos dividirmos em prisioneiros e em carcereiros.
Não somos demais unidos para combater os autênticos inimigos do Povo Português.
(2-12-75)
Ao avanço do processo revolucionário português opôs-se um projecto político-militar fabricado por uma opção de classe a qual nada tem a ver com a defesa dos interesses das massas trabalhadoras.
Que os mentores desse projecto individualmente tomem consciência de não terem tido a coragem de abdicar de privilégios que o estatuto social de burguês lhes concede parece assunto restrito à sua esfera particular. Agora que esses, sendo militares, no desempenho de máximas funções para que foram escolhidos por um movimento revolucionário tentem impôr ao Portugal um modelo de governação social-democrata, que recuperará imediatamente o fascismo, é assunto de interesse colectivo cuja responsabilidade histórica o Povo Português há-de julgar.
Toda a manobra de desestabilização levada a efeito pelo triunfalismo partidário após as eleições com o apoio de muitos militares (considerados apartidários e independentes) e ainda de organizações da direita mais reaccionária, contou com o beneplácito dos militares em quem o MFA, como movimento revolucionário, depositou confiança e responsabilidade do mais alto significado patriótico. Depois das eleições e após sucessivas crises, aparentemente motivadas pelas forças partidárias triunfantes em frequentes litígios com as decisões progressistas e revolucionárias das assembleias do MFA, é concludente verificar-se a mudança de opinião desses mesmos militares antes e depois do «Golpe de Tancos». Antes era muito difícil o restabelecimento da ordem democrática à falta de meios materiais e humanos. Depois de Tancos já o «estado de sítio» e a «repressão» são perfeitamente viáveis. Surge o AMI e reforçam-se as forças militarizadas. Antes em nome da liberdade de expressão era impossível processarem-se jornais e individualidades que caluniavam o V Governo e o seu Primeiro-Ministro, que atacavam o MFA e os seus elementos mais destacados com todo o género de provocações e incitamentos à insubordinação. Depois do «Golpe de Tancos» a primeira medida é a censura militar e as severas medidas para os órgãos de comunicação que não aplaudissem o VI Governo e o novo MFA.
Antes os militares deviam fugir ao contágio do simples cumprimento a militantes de partidos políticos. Depois tornou-se banal a presença de dirigentes do PS, do PPD e de outros ainda mais à direita ao lado das entidades militares em comícios e manifestações, e, não só!
Até ao «Golpe de Tancos» a desestabilização político-militar por forma a derrubar-se o V Governo e a desintegrar o MFA tinha que desenvolver-se e acelerar-se. Depois tudo se faz (em aparente contradição) para aguentar o governo social-democrata promovendo de imediato a reconstituição de forças repressivas profissionais para dar serventia à burguesia.
E o 25 de Novembro só viria comprová-lo.
Por outro lado todos os portugueses sabem da influência que o processo de descolonização exerce sobre o nosso processo revolucionário. As ofensivas da reacção em Portugal eram coincidentes com as tentativas de neo-colonização nos territórios em vias de independência. Os avanços do nosso processo revolucionário fizeram-se sentir positivamente na Guiné (onde o MFA não admitiu fantasias) e bem assim em Moçambique; aos recuos do processo português, logo os legítimos representantes dos povos de Angola e de Timor tiveram de se opor, afirmando-se determinados na sua libertação perante as invasões estrangeiras e a hesitação dos responsáveis portugueses.
Ninguém duvida que é o mesmo imperialismo capitalista que pretende continuar a explorar Angola e Timor e a dominar Portugal. São os lacaios desse imperialismo servidos por poderosas máquinas de acção psicológica e de repressão à inteligência que levam muita gente a confundir os verdadeiros interesses do Povo Português com os interesses da social-democracia europeia. Isto numa primeira etapa. Em seguida tudo estará mais facilitado para a total repressão fascista.
Ninguém duvida que são os mesmos que fizeram campanha para dissolver o MFA que tudo fizeram para perturbar a descolonização em Moçambique, na Guiné, em Cabo Verde e em S. Tomé e Príncipe.
Na assembleia do MFA nunca foi debatida em profundidade a orientação do processo descolonizador. A assembleia foi sempre colocada perante decisões consumadas nesta matéria.
Porquê o silêncio oficial ante as invasões a Angola e a Timor por forças estrangeiras e mercenárias?
Porquê a ausência de informações sobre o golpe neo-colonialista de 11 de Agosto em Dili?
Porquê a incapacidade de preparar a transferência da soberania em Angola de modo a evitar o êxodo maciço dos brancos?
Porquê o erro de insistir em conciliações com grupos fantoches negando o reconhecimento da FRETILIN e do MPLA?
A estas questões dá resposta o projecto político-militar posto a descoberto mais descaradamente depois do 25 de Novembro.
O aparente recuo da revolução possibilita o cumprimento de mais umas quantas directivas desse projecto burguês. Só na aparência os interesses das massas trabalhadoras são considerados, com uma linguagem enganadora, para ludibriar grande parte dos militares ainda interessados no Socialismo.
Desconcertantemente a maior parte dos militares, sargentos e oficiais de carreira, actua por bem; é bem intencionada na revolução democrática. Mesmo nas suas actuações incorrectas por educação defeituosa, por anos e anos de reservas mentais, por toda uma consciencialização «ocidental e cristã», esses militares estão convencidos que interpretam justamente os anseios do povo a que pertencem. Mas quase sempre diluem as suas atenções e energias em questões de pormenor. Deixam então para outros as questões de fundo no quadro duma luta que parecem querer ignorar: a luta de classes.
Terão eles — os militares — dúvidas de que a maioria dos portugueses é explorada? Que os que mais trabalham são os que menos privilégios auferem?
Terão eles — os militares — dúvidas de que exactamente essa maioria, sendo a classe explorada, deseja alterar esse tipo de existência de vida?
E que é esse desejo da maioria outra coisa que se não querer a revolução?!
O que acontece no entanto é existirem vários graus de disposição nas pessoas para tomarem parte nessa mudança social, para tomarem maior ou menor consciência da necessidade dessa mudança. Esse grau de disposição e de consciência depende de inúmeros factores sobejamente conhecidos: hábitos anteriores, o receio do desconhecido, a influência do parente mais velho ou melhor instalado na vida, os conselhos do padre reaccionário, do cacique e senhor influente, etc. etc... todo um sem número de entraves a condicionar no próprio homem explorado o seu grau de exigência para se libertar. E assim a libertação fica a meio caminho, sobem-se alguns degraus, manhosamente com roupas diferentes mas com os mesmos sorrisos do fascismo (explorador e criminoso) a exploração permanece.
E é destas limitações que não se libertam grande parte dos militares. Pior ainda, colocados por exigências de serviço em contacto com os militares fortemente conservadores, elitistas e reaccionários essas limitações acomodam-se. E aí os militares democratas e progressistas nem sempre tiveram ao longo do processo português a actuação mais feliz para com alguns camaradas de armas. Inexperientes «da revolução», entusiasmados com o processo, com a dinâmica das massas, com a maravilha das mutações que quebravam tantas grilhetas e correntes alguns dos militares revolucionários assustaram e afastaram da revolução muitos camaradas encostando-os ao inimigo. A dignidade do verdadeiro militante da revolução democrática impõe que muitos se auto-critiquem por isso.
Esse inimigo esteve sempre vivo no interior das Forças Armadas. Alguns militares ficaram incomodados com o 25 de Abril. Já tinham a sua vida moldada ao regime anterior. A perspectiva de actuação do novo sistema trouxe-lhes fortes perturbações. Movimentaram-se desde logo para contrariar o processo revolucionário. À medida que os meses passavam inventariavam os outros militares descontentes; aproximavam-se destes e cativavam-nos para o seu projecto político-militar.
O embrião deste movimento é o «Corpo do Estado-Maior do Exército». Nesta «elite» de oficiais se encontram das melhores cabeças do exército e os mais dotados tecnocratas das Forças Armadas com várias especializações nos E. U.A., R. F. A., França e Inglaterra. Este «corpo» ao ser extinto após o 25 de Abril não ficou satisfeito com a iniciativa do MFA. Estou, no entanto convencido que a maior parte destes oficiais reagiu com dignidade à extinção. A princípio alguns até eram do MFA. Mais tarde as vicissitudes do processo revolucionário tornaram-se incompreensíveis ou intoleráveis à sua formação rígida e à sua especialização tecnocrata e deu-se a inevitável ruptura com os desígnios progressistas e revolucionários do processo português.
Em volta do seu projecto se juntaram depois os militares indiferentes que usam e abusam do pretexto «não percebo nada de política» e ainda depois mais tarde os militares frustrados em seu dizer «incapazes de levar a política até ao fim».
Uns e outros inconscientes de que a demissão da política por parte dos militares é exactamente a política da direita. Dizer «não percebo nada de política» é a política de deixar certos políticos servirem-se dos militares para esmagar os interesses dos trabalhadores. Desistir de levar uma política progressista e revolucionária até ao fim, e optar pelo regresso aos quartéis, é a política de proporcionar que outros conduzam os destinos do País de acordo com a sua política antipopular e anti-operária.
Quando em Agosto de 1975 estas três espécies de militares — os tecnocratas, os indiferentes e os frustrados — se encontraram estava fortemente ameaçado o processo revolucionário; os primeiros sabiam-no bem. Congregaram-se então estes militares em volta do conhecido «Documento dos Nove» com evidente oportunismo. Mas já outro documento não menos importante começara a circular precisamente um ano antes. Esse documento intitulado «FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS» com o visto do CEMGFA, general Costa Gomes, percorreu o País e as colónias. Todo o seu conteúdo tinha por objectivo a liquidação do MFA revolucionário quatro meses depois da queda do fascismo. Invocando que «o programa do MFA não estava a ser respeitado» nesse documento apontava-se para a «extinção da Comissão Coordenadora» do próprio MFA, criticava-se (?) que esta comissão fosse «porta-voz do movimento» sob o pretexto de que não era ela «democraticamente representativa dos oficiais do MFA». Condenava-se as «reuniões nitidamente políticas de oficiais, sargentos e praças». Mais referia, entre outras enormidades, que alguns oficiais representando o MFA «vêm assumindo posições marcadamente políticas comprometendo deste modo a isenção política assumida pelo MFA» e mais adiante fala de «tomadas de posição marcadamente políticas por entidades no desempenho de funções exclusivamente militares».
Esse documento terminava por propor a regra das eleições ditas democráticas nas Forças Armadas para tudo, e mais qualquer coisa, mesmo antes dum difícil e sério saneamento, «o rápido restabelecimento duma hierarquia e disciplina em bases sólidas», alargar o MFA a todos os militares por juramento, «medidas drásticas» contra a chamada não «isenção política» do MFA e todo o poder à Junta de Salvação Nacional. (Simultaneamente no Brasil, Galvão de Melo, porta-voz de Spínola afirmava que no dia 25 de Agosto acabava-se com a Comissão Coordenadora e com o MFA). Isto ainda em 1974, note-se bem.
Os militares progressistas nessa altura tiveram força para neutralizar o conteúdo de tal documento mas os militares que o subscreveram são os autores do projecto político-militar totalmente posto a descoberto com o 25 de Novembro. Tiveram um ano para o trabalhar e para em seu redor organizar o ataque ao MFA como movimento revolucionário. Analisaram bem os pontos fracos dos militares mais empenhados num processo revolucionário autêntico. No dia 25 de Novembro, e seguintes, foi só cumprir o que tinham planeado. Estou vendo agora ocupar lugares da maior responsabilidade exactamente alguns dos militares mais activos na recolha das assinaturas do documento de Agosto de 1974.
Acabou-se então certa hipocrisia? Não totalmente. Há o receio da reacção das massas trabalhadoras enquanto a máquina repressiva não se consolidar. Para esses militares a tarefa urgente é a profissionalização dos «comandos», dos «fuzileiros», dos «pára-quedistas», guarnecer mais a PSP e a GNR, ter a máquina pronta para sustentar o seu projecto político-militar.
Corresponderá tal programa à construção duma sociedade democrática antifascista? Ou sujeitar-se-á novamente a sociedade portuguesa aos horrores do fascismo sob nova capa?
Os militares tecnocratas e aqueles que consigo são arrastados pouco receiam dum novo fascismo. Pouco se interessam por investigar os horrores do fascismo, da repressão psicológica à inclassificável tortura física para manter a exploração. O fascismo também se especializou em cativar certos militares com a técnica mais requintada de aproveitamento das fraquezas do ser humano. Sabemos bem que se não tivesse sido a guerra de libertação dos povos das colónias os militares sustentavam ainda o fascismo com a mesma «inocência» com que hoje grande parte deles se deixa instrumentalizar. Ditam-lhes palavras diferentes mas os objectivos continuam sendo a exploração dos trabalhadores para a manutenção dos privilégios de todas as camadas da burguesia.
E nós sabemos o esforço que foi preciso fazer para durante tantos anos capacitar os militares para o derrube do regime fascista de Salazar e Caetano. Sabemos bem que o mais difícil não foram as operações militares da madrugada de 25 de Abril. O mais difícil foram as longas operações de mentalização dos militares de carreira durante muito tempo antes dessa madrugada. Se foi em volta dum programa — o Programa do MFA — que se uniram os militares para o 25 de Abril a revolução democrática portuguesa a partir desse dia é obra de todos os portugueses, civis e militares, e obedecerá ao programa unitário e revolucionário que a maioria dos portugueses (os mais desfavorecidos, os explorados) traçar. Assim aconteceu e está acontecendo. Não importa que um conjunto de cidadãos se considerem «Forças Armadas Portuguesas» e se divorciem das realidades a que pertencem, e parecem pretender ignorar, embora falem muito delas. As Forças Armadas não constituem conjunto à parte do Povo Português como outro «estado» dentro dum ESTADO, nem os seus dirigentes poderão afirmar que os civis não têm nada a ver com o que se passa com os militares. Sabemos bem o que representa este divórcio: é a «colonização» dum povo por um «exército».
Depois do 25 de Novembro assistimos perigosamente ao desenvolvimento desta tendência encoberto por frases como a do «regresso ao espírito do 25 de Abril». Isto é esclarecedor da falsa posição revolucionária de tais cidadãos que pretendem confundir toda a grandeza duma imparável Revolução Democrática feita pelo Povo com a limitada e retrógrada óptica duns quantos militares conservadores e reaccionários.
A revolução não regressa ao invocado espírito de ontem. A revolução é feita todos os dias para amanhã. E depois que espírito é esse se não o duns quantos militares!? Sobram outros militares cuja acção para o 25 de Abril não está a ser considerada parte integrante desse espírito. Estão presos, exilados, clandestinos...
Mas o espírito do 25 de Abril não é propriedade de um conjunto de militares tal como esses militares não são propriedade dumas Forças Armadas separadas do Povo.
O espírito do 25 de Abril é do Povo Português.
As Forças Armadas Portuguesas são do Povo Português.
O projecto reaccionário do 25 de Novembro de 1975 será desmascarado e repudiado exactamente pelo Povo Português e por todos os militares que estão verdadeiramente com ele na defesa dos interesses das massas trabalhadoras.
(4-12-75)
Inclusão | 24/04/2019 |