Camponeses de Barcouço:
Não vamos morrer agarrados à enxada

José A. Salvador


«Aqueles que ainda dormem o sono da noite fascista que acordem!»

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«Quando pensámos fazer a cooperativa estava mais ou menos tudo interessado. Simplesmente a coisa começou a dividir-se em dois grupos um queria a comercialização; outro pretendia a produção. Os da comercialização começaram-se a afastar: não queriam uma cooperativa de produção para o socialismo. Sairam. Eles só queriam uma cooperativa de comercialização que protegesse os seus interesse, e se aparecessem os intermediários abandonavam-na. Não eram pessoas de direita, mas... Quando foi eleita a comissão pró-cooperativa salão da Filarmónica estava cheio. Eram para aí umas duzentas pessoas. Fomos eleitos três: eu, o Salvador de Barcouço, e o Quim. Desde essa altura, em Março, até 1976 andámos a lutar pela legalização da cooperativa. Alguns estavam contra a cooperativa porque lhes enfiaram na ideia de que todos éramos comunistas. Falam contra a cooperativa mas não é com ideias próprias. Foram picados por pessoas ricas que tiveram o poder na mão: pessoas das juntas de freguesia, das câmaras, das regedorias doutro tempo. Hoje já tudo isso está mais esquecido. Vão compreendendo que não somos contra eles. Achamos que são trabalhadores como nós: não têm domingos, nem feriados. Na cooperativa não está nenhum capitalista. Não está lá nenhum rico. Não está lá ninguém com a ideia de fazer uma cooperativa só dele, ou instrumento dele próprio.»

As palavras são de um pequeno proprietário de Barcouço, hoje dirigente da COBAR, que apesar disso não ignorou as acções desenvolvidas por forças retrógadas que se opuseram à cooperativa.

Para muitos, quando naquela reunião de Março de 75, foi decidida a organização duma cooperativa de produção através da união das terras, isto assustou-os. O «papão comunista» funcionou: receavam ficar sem as terras. Foi neste momento que os camponeses de Barcouço se descobriram sozinhos com o seu projecto de que não desistiram.

A acção da comissão pró-cooperativa prosseguiu em duas frentes essenciais: mobilizar a população esclarecendo-a, e legalizar a cooperativa. Assim se entende o comunicado por ela distribuído convocando os camponeses para uma reunião:

«Vamos usar mais a cabeça e menos as mãos»

«Os camponeses de Barcouço conscientes da situação de miséria em que se encontram, estão decididos a avançar com uma cooperativa. Só uma cooperativa lhes permitirá lutar contra os intermediários e organizar a agricultura, melhorando deste modo a sua vida.

CAMPONESES!

Camponeses, somos nós aqueles que mais trabalham neste país. Trabalhamos 10 ou 11 horas (ou mais) por dia, à chuva, ao sol, sem férias, sem regalias sociais, sem conseguirmos sair da miséria.

Para vivermos melhor será que devemos trabalhar mais? Como podemos nós trabalhar mais?

Não é trabalhando mais nestes bocaditos de terra que passamos a viver melhor. Precisamos é de unir as terras, fazendo uma cooperativa em que sejamos nós a trabalhar e a mandar.

Já imaginaram todas as nossas terras unidas e trabalhadas a máquinas? Quanto lucro a mais teríamos, do que trabalhando esses bocaditos de terra aqui e acolá?

A nossa cooperativa está em marcha. A cooperativa não rouba nem tira as terras, arrenda-as como qualquer camponês arrenda a outro.

Camponeses não vamos morrer agarrados à enxada! Vamos usar mais a cabeçá e menos as mãos.

VENHAM TODOS A REUNIÃO DE SÁBADO, DIA 11, AS 9 HORAS DA NOITE, NO SALÃO DA FILARMÓNICA DE BARCOUÇO:

A Comissão Pró-cooperativa

ESCLARECENDO

Andam por aí a dizer que queremos tirar as terras às pessoas. Parece impossível haver ainda pessoas que pensem tão alto e tão mal. O que nós queremos é desbravar o caminho, que pensamos transformar em auto-estrada, para o futuro dos nossos filhos e netos.

Não compreendem essas criaturas que é mais fácil uma máquina, não tendo empates à sua frente, trabalhar no mesmo número de horas uma área de terra superior a outra sem que se tenha de andar para trás e para diante. Portanto não pensem assim camponeses, pensem em ter com metade do trabalho aquilo que agora tanto trabalho dá.

Nós queremos juntar as terras umas às outras, mas com esta medida: as pessoas não ficam sem elas, pois não queremos tirar nada a ninguém, nem queremos que nos tirem a nós.

Somente a cooperativa lhes pode tirar algum trabalho de cima dos ombros e dar-lhes ao mesmo tempo, mais algum lucro. Não tenham medo de construir o futuro dos nossos filhos. Para a frente!...

Por acaso os senhores que pensam assim tão mal da obra que pretendemos construir, são sócios da Adega «Cooperativa» de Souselas? Então não têm medo de juntar lá o vinho um com o outro? Acaso os que têm cá ficado com ele em casa, têm tirado maiores lucros? Pois não!...

Quem não quiser trabalhar na cooperativa, arrenda as suas terras, como arrenda a qualquer outro, tendo no entanto direitos a levantar produtos na cooperativa com os mesmos descontos. Vamos camponeses!....

A Comissão Pró-Cooperativa.»

A ideia da cooperativa de produção não voltava para trás. À comissão multiplicava-se em reuniões, incluindo as aldeias vizinhas. Adões recebeu-os com entusiasmo e viria mais tarde a constituir uma cooperativa autónoma semelhante. Todavia, a lentidão do processo de legalização obrigava os camponeses mais activos a continuar o trabalho de esclarecimento. Era preciso vencer diversos obstáculos, não sendo o medo um dos menores. A ilustrar o que afirmamos registemos o artigo publicado no «Camponeses em Luta» n.º 2 de 7-11-75 que se interrogava sobre a futura cooperativa.

«Nenhum associado perderá o direito à terra que entregue à cooperativa»

«Para quê a Cooperativa?

Nós que estamos a fazer avançá-la só o fazemos por um motivo, que é tentar melhorar de um modo geral o modo de vida de todos os sócios.

Importa agora explicar como é que podemos fazê-lo.

Desde o momento em que as pessoas façam parte da Cooperativa muitas preocupações que agora as apoquentam desaparecem. Ora vejamos:

Sendo as terras trabalhadas em conjunto, já não há a dificuldade que agora as pessoas têm de, por exemplo, ter água para rega, essa água que tanto sangue tem feito correr por esse país fora. Todos sabem que por vezes as pessoas se zangam por causa da água de rega e isso leva a grandes desavenças entre as pessoas que, quando se exaltam demasiado, se agridem causando por vezes ferimentos e até, nalguns casos, a morte aos seus semelhantes.

Acaba-se o problema de não ter quem lhes compre os produtos, acabam-se aqueles que troçam deles dizendo-lhe que isto ou aquilo não presta, que «ou vende ou leva para casa», etc.

Também não têm o problema da compra de sementes, de produtos químicos, alfaias e tudo o mais necessário à vida agrícola.

As máquinas que serão empregues na Cooperativa trabalharão grandes áreas de terreno dando portanto um maior rendimento o que, representa um mais baixo preço de custo do produto a explorar.

À vacaria que queremos montar será uma unidade moderna com todos os requesitos legais de molde a obter-se a melhor qualidade aliada à mais alta produção.

Os associados que trabalhem na Cooperativa ganharão o seu ordenado e terão no fim do ano a sua parte nos lucros que houver, os associados que não queiram trabalhar mas que arrendem as suas terras à cooperativa, terão direito a comprar nesta todos os produtos que necessitem para seu consumo e de sua família, bem como produtos para aplicação nas suas vinhas e outras culturas que ainda venham a fazer noutros locais fora da área da cooperativa e que não prejudiquem o bom funcionamento desta.

Do mesmo modo, nunca nenhum associado perderá o direito à terra que entregue à cooperativa nem a outros bens materiais.

A nossa ideia é portanto ir construindo aos poucos a forma que permitirá unir todas as pessoas no amor, na igualdade e fora das injustiças sociais. Lutaremos para que não falte assistência médica aos trabalhadores e suas famílias. Ajudaremos as pessoas a aprender novas formas de viver em sociedade. Procuraremos o fim do ódio que mina certas pessoas. Comnstruir-se-á o futuro dos nossos filhos. Mas, para que tudo isto se possa fazer precisamos de ajuda de todos por igual. Já fizemos mapas e medições de quase todas as terras que entram na cooperativa mas infelizmente temos sido sempre os mesmos.

Será que alguns não podem largar a mesa do café ou deixar de ir ao futebol e outros sejam seus escravos largando o descanso, assuntos pessoais e tudo o mais?

Acaso isto será a sociedade justa que todos os explorados são unânimes em querer?

Acabe-se o parasitismo, todos ao trabalho que chegou a hora.

Aqueles que ainda dormem o sono da noite fascista, que acordem!

Em frente com a Cooperativa!

(Um correspondente)»

Mas entre este jornal e a legalização da cooperativa ainda haveriam de correr mais quatro meses.


Inclusão 14/06/2019